A JUSTIÇA DO SULTÃO MURAD - Lenda - Conto de Horror - Anônimo do séc. XIX
A
JUSTIÇA DO SULTÃO MURADE
Anônimo
do séc. XIX
No
reinado do sultão Murade I[1],
vendo-se um turco sem mulher e sem filhos, e querendo ir de romaria a Meca,
julgou que a ninguém melhor podia confiar o que de mais precioso tinha do que a
um hoggia, isto é, doutor em leis.
Entregou-lhe, pois, algumas joias dentro de um saquinho, e pediu que as tivesse
em boa guarda até a sua volta, com a condição de ficar delas herdeiro, se
durante a projetada viagem ele viesse a falecer.
O
peregrino voltou felizmente de Meca e, querendo receber de volta o que havia
confiado ao hoggia, exigiu a fiel
entrega do seu depósito; mas o doutor, com sangue frio imperturbável, lhe
respondeu que nada sabia do que o outro pretendia, deixando-o, assim, sobremodo
surpreendido com uma réplica de todo inesperada.
Como
o negócio se tratara só entre eles, dissimulou o peregrino o seu pesar e,
passados alguns dias, procurou o grão-vizir[2], a
quem relatou o que ocorrera.
Vendo
o grão-vizir que o negócio era delicado, e que o doutor negaria facilmente o
que ninguém presenciara, respondeu ao peregrino que por alguns dias tivesse
paciência, prometendo que levaria o seu o seu caso ao grão-senhor[3].
Este, informado da questão, ordenou ao vizir que, com cautela, investigasse o
caso em profundidade; que mandasse procurar o doutor e fizesse amizade com ele,
e que lhe desse esperança de ocupar cargos elevados em seu sultanato.
Alguns
dias se passaram, enquanto o grão-vizir representava o seu papel. O doutor o
fez chamar junto de si. O vizir louvou-lhe o talento e a conduta. Embalando-o
com promessas, deu-lhe a esperança de que, um dia, poderia prostrar-se aos pés
do Sultão, pois não seria justo que um espirito tão sublimado permanecesse
oculto a sua alteza o grão-senhor.
O
doutor, encantado com tal discurso, julgou-se já na maior grandeza, sobretudo
desde que viu que o vizir o faria seu hoggia
ou, como nós diremos, seu mordomo.
Mas
não pararam aqui as coisas. O vizir, por ordem secretamente recebida do grão-senhor,
mandou que o doutor lhe desse conta de quantos casos criminais acontecessem. O
grão-senhor, ouvido o relatório do hoggia,
lhe perguntava a sua opinião além do o castigo que o culpado mereceria pelo
crime comprovado, sendo sempre a execução da pena realizada em conformidade com
a sentença apresentada pelo hoggia, a
quem o sultão havia nomeado magistrado-relator, e a quem dera emprego em sua casa.
Cinco
ou seis meses haviam decorrido sem que se mostrassem indícios da apropriação
indébita. Mas cumpre ter em vista que o peregrino dera ao grão-senhor exata
descrição dos objetos que havia guardado no saquinho. Entre outros, fez ele
especial menção a um tes-buch de
primorosíssimo coral. Este tes-buch é
uma espécie de rosário de noventa contas, que serve aos muçulmanos para repetirem
certas palavras, tiradas de sentenças do Alcorão. Este rosário se divide em
três partes de trinta e três contas cada uma, que são separadas por um cordão,
e tem por pingente um grande coral, seguido de uma esfera de igual matéria e de
espantosa magnitude. Os turcos devotos levam sempre um rosário domo este na mão
quando vão visitar alguém, sobretudo quando se dirigem a grandes autoridades.
Um
dia em que o hogia levou este rosário
ao palácio do sultão, o grão-senhor viu perfeitamente o objeto, e julgando, com
razão, que talvez fosse o do queixoso, louvou, na presença do doutor, a sua
rara beleza. Submisso, o doutor se apressou a oferecer-lhe a joia, e o grão-senhor
a aceitou com sinais de gratidão. Mas não lhe bastava um só indicio; outros
queria ter. Como sabia que no saco havia um anel, obra de antigo e excelente
mestre (os turcos, quando atiram com o arco, trazem o anel no polegar), esperou
por outra ocasião para melhor descobrir a velhacaria, e provar cabalmente o
crime praticado. Proporcionou-a o sultão, dias depois: mandando vir um dos seus
pajens, que manejava bem o arco, foi à praça de Girit, onde também tomou um, porquanto não havia no império quem,
no exercício do arco e da flecha, o excedesse em força ou destreza. Ao dobrar o
arco, queixou-se porque o anel machucava-lhe o dedo, bem certo de que o doutor,
que ali se achava, e lhe já tinha oferecido o seu rosário, não deixaria de adulá-lo,
presenteando-o com o anel que subtraíra ao peregrino.
—
Será possível — disse o grão-senhor — que já não haja artista que faça um anel
tão perfeito como o finado Mohamed?
O
doutor, a quem faltava agudeza para conhecer a trama que lhe urdiam, querendo
insinuar-se mais nas boas graças do sultão, logo declarou possuir um anel daquele
artista, que havia muito conservava, e que, se a sua alteza isso agradasse, incontinenti lhe traria.
Aceitou-o
o grão-senhor e, retirando-se o doutor do palácio, mandou logo chamar o vizir e
o peregrino. Com o rosário na mão, como quem orava, esperou para ver se o
peregrino o conhecia. Este reconheceu-o
prontamente, bem como o seu anel. E, mandado vir o doutor, o sultão perguntou-lhe
a pena que merecia aquele se apropriasse de bem cuja guarda lhe fora
confiada. Tão longe lhe estava da
lembrança o que fizera no passado que, para mostrar grande justiça e severidade,
logo disse que tal transgressor mereceria ser pisado vivo em um gral[4]. A
estas palavras, o imperador o fez prender, mandou que guardas armados fizessem
buscas em sua casa, e sendo encontrado tudo que pertencera ao peregrino, o doutor
foi punido segundo a própria sentença que proferira. Para este efeito, furou-se
uma pedra em figura de gral, onde o hoggia
foi lançado nu e pilado vivo pela mão do algoz. Este gral ainda existia ainda
há duzentos anos, época em que foi visto por Tavernier[5].
Fonte: Museo Universal,
n. 2, 15 de julho de 1837.
[1]
Terceiro soberano do Império Otomano, e primeiro a adotar o título de sultão, reinou
entre 1359 e 1389.
[2]
Primeiro-ministro do Império Otomano.
[3] Ou
seja, o sultão.
[4] Recipiente
côncavo que serve para triturar ou pulverizar ingredientes com pilão.
[5] Jean-Baptiste
Tavernier (1605 – 1689) foi um aventureiro francês e pioneiro do comercio com
a Índia.
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