A SOMBRA - Conto de Terror - José Manuel Fonseca Almeida
A
SOMBRA
(José
Manuel Fonseca Almeida - Menção Honrosa no Concurso Bram Stoker de Contos de
Terror)
O sabor
ligeiramente salgado daquele líquido morno, fluido, que lhe invadia a boca e
descia pela garganta, trazia-lhe reminiscências de memórias de um prazer
adjacente à alimentação. Algo mais do que a satisfação de uma necessidade
básica de sobrevivência.
Eram recordações
perigosas para alguém na sua condição.
Nunca voltaria a
ser o que antes fora e desejá-lo retardava a sua evolução dentro da forma atual.
Este fraquejo,
momentâneo, trouxe-lhe uma revolta interior que logo se transformou em irritação. Largou
o braço da vítima com desprezo, como se assim arrancasse definitivamente todas
as metástases que ainda lhe faziam aflorar o passado ao pensamento, como um
tumor que teima em continuar a crescer mesmo depois de cortado.
O sangue jorrou
da artéria sujando-lhe o rosto e a roupa.
Estava ainda
viva?
Mais algumas
golfadas de sangue emergiram daquele braço inerte.
A sua mão direita
ainda apertava aquele pescoço frágil de mulher. Voltou o olhar para aquele
rosto de olhos muitos abertos e fixos de espanto, de medo. A boca entreaberta
parecia ainda querer expulsar o grito que ficara bloqueado na garganta
apertada. Mas os lábios estavam imóveis, mudos. Estava morta. Porque não
haveria de estar? Sempre sucumbiam ao terrível poder da sua mão. As unhas,
garras, apenas afloravam à pele. O que os derrotava, homens, mulheres, mais
velhos ou mais novos, era o aperto. Morriam por asfixia.
O que teria de
diferente esta mulher? Tentara libertar-se daquela mão, como sempre fazem.
Tivera os espasmos que sempre têm. Depois imobilizara-se, como sempre se
imobilizam.
Até hoje nunca
olhara o rosto deles depois de se alimentar. Sempre partia sem sequer olhar
para trás. Tê-lo feito deixava-o pouco à vontade. Não gostava de alterar a
ordem habitual dos acontecimentos.
A imagem do
rosto daquela mulher levou-o novamente ao passado em que, envolto numa névoa
ténue, outro rosto de mulher lhe sorria, lhe dizia palavras que não ouvia mas
adivinhava o significado. Desse rosto parecia sentir um calor que passava para
o seu próprio rosto, uma suavidade que acalmava o seu espírito.
Estendeu a mão
para o acariciar. Então o rosto contorceu-se, o sorriso deu lugar a uma
expressão de terror e os olhos, que antes pestanejavam suavemente, tornaram-se
fixos e enormes. Via a sua mão destroçar aquela garganta. Queria parar, mas a
mão possuía uma vontade própria.
Daqueles olhos
agora inexpressivos ainda rolaram algumas lágrimas antes do calor dar lugar ao
frio.
Frio. O presente
era um corpo frio, o seu, que se alimenta tornando frios outros corpos.
Porque o atormentavam
agora estas memórias? Já tantos anos tinham decorrido desde que o calor o havia
abandonado.
Limpou a boca
com um gesto rude da mão, levantou-se e começou a andar sem olhar para trás
tentando assim um retorno definitivo à normalidade das coisas. Aquela rua era
quase tão escura como a sombra do que fora, antes, a sua alma. Os seus sentidos,
sublimados pela sua actual condição, mantinham-no informado de todos os
detalhes sonoros, olfactivos, visuais. Sabia que não havia ninguém ao longo de
todo o caminho.
Ao fundo, numa
pequena janela, cintilava uma luz fazendo distorcer a imagem do contorno do
telhado.
Distorcer? Era impossível
a sua visão ser distorcida. Um instinto residual fez com que levasse os dedos
aos olhos.
Espanto, fúria,
medo, esperança, todos estes sentimentos lhe percorreram o corpo reunindo-se
num grito, num rugido, num uivo que gelou o sangue das criaturas que o ouviram.
Os olhos estavam
molhados.
José Manuel Fonserca Almeida,
natural do Porto/Portugal, e residente na visinha Vila Nova de Gaia, é um treinador de basquetebol com grande
interesse pela literatura, contos e poesia em particular. Ler e escrever sobre
‘terror’ foi uma forma de, em criança, afastar os medos do desconhecido e do
sobrenatural e hoje é um exercício para desenvolvimento da criatividade.
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