ACÓLITOS - Conto de Terror - Hugo César Peixoto Coutinho
ACÓLITOS
(Hugo César Peixoto Coutinho - 10º
Lugar no Concurso Bran Stoker de Contos de Terror)
Era
sábado, no final da tarde, pouco antes da missa, quando ele surgiu na porta da
sacristia querendo falar com o pároco. A senhora que organizava as túnicas
estranhou, o observou dos pés à cabeça. Ele estava vestido com calça e camisa
de linho branco, tudo impecavelmente passado, com todos os vincos marcados.
— Posso
ajudar, filho?
— Só com ele
mesmo. E eu não tenho mãe — respondeu sem olhar nos olhos e sentou no banquinho
perto da porta. Vou esperar aqui.
Mal
o padre entrou, o rapaz levantou-se em sua direção e, olhando para o chão,
começou a dizer a que tinha vindo. Soube que estão precisando de acólitos aqui,
quero ajudar a vocês e a mim, disse com uma assertividade e um tom, até
impositivo, que em nada combinava com aqueles olhos arroxeados, a pele muito
branca e um aspecto cansado que lhe davam uma aparência bastante frágil para um
adolescente. Em poucas palavras, combinaram de começar na noite seguinte. O
rapaz disse que já sabia de cor todo o ritual, mas foi exigência do sacerdote
que, pelo menos na primeira semana, ele fosse acompanhado por outro coroinha, a
fim de evitar qualquer problema, e depois os dois revezariam os dias da semana.
Era
verdade, logo no primeiro dia, o novo ajudante mostrou que sabia cada
movimento, cada gesto, e cumpria suas tarefas na missa com maestria. O tutor
não precisou dar uma orientação sequer, nem encontrou espaço para participar da
cerimônia. Ficou chateado, e depois, na sacristia, comentou com alguém, mas
para que todos ouvissem: Ele precisa aprender a dividir as tarefas! E tem que
vivenciar a liturgia, fazer as coisas com o coração. Ser acólito é isso, não é
só cumprir as funções. Como resposta, apenas um olhar demorado do novato e um
silêncio que durou até todos irem embora.
Não
se sabe se por constrangimento, raiva ou por qual motivo que seja, aquela foi a
última vez que o coroinha mais experiente foi visto na igreja. Dizem que desde
aquela noite ele mal saía do quarto, não queria comer, e passava o dia coçando
uma ferida que adquiriu no pé direito. É um sara-morreu, disse a beata das
túnicas, ele está com vergonha de vir ou não está podendo andar direito. Na
ausência do tutor, o novato assumiu todas as cerimônias da semana sem maiores
preocupações. Quieto e atento, fazia tudo no momento certo, na medida certa,
nem parecia que estava ali há tão pouco tempo.
Passaram-se
semanas e ninguém tinha do que reclamar, nem o que elogiar. Discreto, quase
passava despercebido durante as missas, exceto por um motivo: sempre durante a
consagração da hóstia e do vinho, ele apertava os olhos como se não conseguisse
enxergar o que estava diante de si, tentava proteger o rosto com uma das mãos
enquanto, com a outra, tocava a campainha, aqueles sininhos dourados, com força
desproporcional. Pouca gente percebia, porque era o momento do ritual em que a
maioria dos fiéis está de olhos fechados ou de cabeça baixa. Quem notou foi a
senhora das túnicas, que passou a observar e uma noite achou por bem alertar o
padre, pois as pessoas poderiam estranhar e, em cidade pequena, aquilo seria
prato cheio para as más-línguas.
Na
noite seguinte, enquanto o rapaz esperava a hora certa para tocar os sinos
chamando os fiéis, o sacerdote subiu as escadarias da torre e pediu uma
conversa rápida.
— Pode falar.
— Jovem, vim
agradecer pelo trabalho que você tem feito na igreja. Todos estamos muito
felizes com sua dedicação, você faz tudo impecavelmente, sempre muito atento.
— Obrigado.
— E olhe que
eu achei que ficaria difícil para você fazer tudo sozinho, e todos os dias.
Mas, desde que o seu colega decidiu sair, graças a Deus, você tem…
— O senhor
não veio aqui para falar isso.
Eram
seis horas da noite, em ponto. O padre encostou-se na parede tomando um pouco
de distância e o rapaz começou fazer bailar as cordas e os sinos. Os morcegos
apareceram em voos desesperados em volta da dupla, e a melodia ecoou pela torre
e preencheu toda a igreja, a praça principal e as casas ali perto. Quando o eco
daquele chamado perdia força para o silêncio, o rapaz olhou nos olhos do pároco
e esperou.
— Por favor,
não encare isso como uma crítica, é apenas curiosidade. Percebi que você fica
um pouco inquieto durante a consagração, e às vezes toca a campainha mais forte
ou por muito tempo, ou melhor, sem seguir um pulso. Isso pode atrapalhar um
pouco e desconcentrar quem quer estar perto de Deus naquele momento tão
importante. Então, posso contar com você para ter mais atenção nestes
instantes?
— Sim.
— Ótimo,
obrigado! Então vamos lá, pois falta meia hora para o próximo toque e dá tempo
você ir em casa tomar um café ou ficar lá pela sacristia conversando,
descansando… Não precisa esperar aqui, no meio desses morcegos fedorentos.
Vamos?
— Vou esperar
aqui.
Na
missa daquela noite, o acólito permaneceu toda a consagração de olhos fechados
e cabeça baixa, tocou os sininhos corretamente, só pelo que ouvia. Depois da
cerimônia, ganhou elogios do padre e da senhora, na sacristia, enquanto dobrava
a túnica e ajeitava a camisa branca de linho que nunca estava amassada. Ajudou
a fechar a porta da igreja e, antes de tomar seu rumo pelas ruas estreitas,
observou o padre partir sozinho na kombi branca e a idosa entrar em casa, que
era ali ao lado, e fazer chiados com a boca para chamar os gatos.
No
dia seguinte, era só sobre o que se falava na pequena cidade. Dona Gertrudes,
esse era o nome dela, estava no hospital se recuperando do choque de ter
encontrado os gatos, todos os cinco, decapitados sobre a mesa de jantar. Diz-se
que assim que a dona entrou em casa, estranhou não ter sido recepcionada pelos
bichanos, como sempre faziam. Foi em um dos quartos, passou pela sala e depois
na cozinha, onde só precisou acender a luz para dar de cara com a cena. Ela
gritou e começou a chorar, depois tudo ficou em silêncio e os vizinhos
decidiram arrombar a porta para acudi-la. O estranho é que os corpinhos dos animais
estavam distribuídos como se formassem uma estrela, junto com os talheres e
cacos de um prato branco, e o pior: não havia vestígio algum de sangue.
À
noite, o rapaz assumiu o posto na sacristia, organizou as vestes, sua e do
sacerdote, e com uma toalha nas mãos para não manchar os objetos litúrgicos,
deixou tudo pronto para a missa, na mesinha perto do altar. A celebração foi
rápida, e o sermão bem curto, mas antes da benção final, o assunto principal
veio à tona no pedido de oração pela recuperação de Dona Gertrudes.
— Não se sabe
como, nem por qual motivo, sabe-se apenas que essa chacina — assim o crime foi
denominado pelo padre — aconteceu enquanto ela estava aqui servindo a Deus e à
nossa comunidade. As portas não foram arrombadas, não encontraram as cabeças
das pobres criaturas, nem sequer um pingo de sangue. Espero que não tenham sido
usadas para rituais obscuros, mas seja o que for, nossa fé é mais forte.
Dona
Gertrudes saiu do hospital depois de alguns dias, mas não quis voltar para
casa, foi passar um tempo com a filha. Deixou de ir à missa e não gostava de
receber visitas. O coroinha assumiu a sacristia e as missas definitivamente.
Chegava no final da tarde e só saía depois de deixar cada coisa bem dobrada,
bem guardada e bem limpa. Tudo transcorreu bem durante semanas, até o dia em
que o padre chegou e encontrou a igreja ainda fechada, dez minutos antes da
cerimônia.
— O que é
isso, rapaz? Não quer que tenha missa hoje? Virou o bispo e agora decide se
abre ou não a igreja?
— Só sou um.
— Pois dê seu
jeito ou deixe claro que não quer continuar e que vai negar um pedido de Deus.
É voluntário, é pela comunidade e tem que ter vocação. Se não tiver…
— Não se
preocupe — disse o rapaz, arrastando a porta pesada.
— Se não
tiver, e sem boa vontade, é melhor não continuar.
— Vou tocar o
sino.
Tocou
mais duas vezes e o início da celebração foi adiado por meia hora. Mas pouco
adiantou, só quatro pessoas atenderam ao chamado e, durante a leitura do
evangelho, chegou mais uma, a mulher recolhia as ofertas. O padre, bem mais
calmo e reflexivo, conduziu a missa com tranquilidade e fez um sermão bonito
sobre a conversão do apóstolo Paulo. Na consagração, quando quase todos estavam
de olhos fechados, um vento frio fez as folhas do missal avançarem e as chamas
de algumas velas apagarem.
De
olhos fechados, com as mãos estendidas sobre a hóstia, o sacerdote continuou o
ritual já memorizado. Depois, segurou o cálice com as duas mãos e repetiu as
palavras de Cristo. Isto é o meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança, que
será derramado por vós e... Não percebeu o acólito ao seu lado, com os braços
estendidos e com o manustérgio enrolado nas mãos.
— Dê-me o
cálice!
O
padre conseguiu afastá-lo com uma das mãos e apoiar o cálice no altar. Depois
de alguns empurrões, ambos caíram e os fiéis tentaram se aproximar, sem
entender o que se passava. Não conseguiram dar mais que dois passos naquela
direção, pois em um movimento brusco com as mãos, o acólito fez surgir as cinco
cabeças dos gatos, exatamente uma para cada fiel que ali estava, bem a vista de
todos. Os dois homens e as três mulheres começaram a tremer as pálpebras
freneticamente. Correram pela igreja, todos juntos, no mesmo sentido e no mesmo
ritmo, e de repente pararam em frente a um dos quadros da via-crúcis. Ajoelhavam
e levantavam repetidas vezes, estendiam os braços para a imagem e gritavam como
se fizessem súplicas.
As
luzes se apagavam e acendiam de acordo com a força do vento. No chão, o padre e
o acólito trocavam socos, arranhões e dentadas, faziam o que dava para tentar
imobilizar um ao outro.
— Em nome de
Jesus, vá embora — disse o padre com a mão na testa do inimigo, que não perdeu
forças, mas se distraiu. O sacerdote levantou-se com dificuldade, conseguiu
alcançar a galheta com água, arrancou a tampa e jogou o líquido no rosto do
jovem. A pele branca do rapaz parecia ferver, bolhas surgiram imediatamente,
seguidas de um grito horrendo de dor ou desespero.
De
pé, o velho pegou o cálice e o estendeu na direção do vampiro — ele agora sabia
— e moveu a cabeça para os lados, demonstrando desprezo. O ser continuava
deitado, com o rosto inchado de bolhas e os olhos avermelhados. A respiração
ofegante era denunciada por um grave som gutural, que perdia força aos poucos.
— Que Deus
tenha piedade de ti. Era o vinho consagrado que querias, o sangue, o sinal da
aliança eterna. Bebendo aos poucos, talvez conseguisse resistência a tudo mais
que é sagrado. Mas não venceste minha fé.
Dito
isto, levou o cálice até a boca e bebeu todo o vinho de uma só vez. Uniu as
duas mãos próximas ao rosto e fechou os olhos em agradecimento, com a cabeça um
pouco baixa. Olhou para os lados, viu o crucifixo sobre o altar e o empunhou
com firmeza. Agachou-se próximo ao vampiro e fez algumas preces. É pelo
descanso de sua alma. Levantou a pequena cruz e quando desceu a mão na direção
do peito do rapaz caiu sem sentidos.
O
sangue espirrou, vermelho vivo, de dentro de um corte profundo pouco acima da
orelha. Os olhos ficaram estáticos, a respiração cessou. Um pé ferido que se
movia lentamente sobre o líquido viscoso que se espalhava pelo chão. Uma mão
forte e branca soltou o castiçal ensanguentado no chão e puxou o jovem vampiro
pelo braço, ajudando-o a sentar.
— É preciso
aprender a dividir as tarefas. É raciocinar, fazer as coisas com a mente. Foste
com muita sede ao pote. Terias morrido.
— Perdão,
senhor.
— Amanhã
partiremos. Ganharás mais forças em novas terras. Agora venha, bebamos este
líquido precioso antes que os cinco despertem ou que alguém apareça e encontre
esta sujeira no chão — disse o acólito mais experiente, o tutor.
Hugo César Peixoto
Coutinho ingressou na literatura em 2007, ano em que teve dois textos
publicados na Coletânea Textos de Humor, do 5º Festival Recifense de Literatura
(PE). Recebeu menções honrosas no Prêmio UFF de Literatura (RJ), em 2008 e
2011, na categoria contos. Em 2009 venceu o 7º Concurso de Contos Luís Jardim
(PE) e o I Concurso Nacional de Literatura Jorge Ribeiro (RS). Recebeu menção
honrosa no 10 º concurso Mário Quintana (RS) em 2014. Recentemente lançou o
primeiro livro de contos, A La Ursa Quer em Euro.
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