ESPÉCIME - Conto de Terror - Alex Rebonato




ESPÉCIME
(Alex Rebonato, Menção Honrosa do Concurso Literário Bram Stoker de Contos de Terror)



Consigo abrir um pouco os olhos, mas o que vejo me assombra mais do que os pesadelos obscuros que infestam a escuridão do meu sono constante.
Não há janelas, apenas grades e, depois delas, paredes. As luzes são poucas e não revelam nada. As sensações se confundem. Meus sentidos dormentes são, inicialmente, tão misteriosos quanto o homem mascarado que aparece sempre quando desperto e, logo, me põe de novo para dormir.
A escuridão avança lenta e constante.
Os raros momentos de lucidez começam confusos. Lembranças. É nisso que procuro me concentrar. No começo. Como, diabos, fui parar nessa situação?
É difícil retomar o raciocínio quando acordo. Sei que logo alguém virá, e vou ser posto para dormir sem chance de conversa. Sei quem sou, embora não me lembre de detalhes. Não consigo me lembrar do meu nome, ou do nome dela.
Consigo ver seu rosto claramente. Ela sorria alegremente em meio às árvores. O ódio me impele contra as amarras, mas não tenho forças suficientes para arrebentá-las. Mais mascarados entram em cena, mas não consigo ver quantos eles são. Sombras se movem rapidamente e logo volto a sonhar com ela.
O sol se punha atrás das montanhas, deixando um rastro dourado nas águas límpidas e rápidas do riacho próximo. Ela tira várias fotografias do lugar, minhas e de si mesma. Vejo meu rosto na tela da câmera. Deus, como pareço feliz.
Acordo subitamente, gritando e forçando meus braços e pernas. Sinto a tensão provocar resultado quando as algemas cederem o suficiente para que eu veja minhas mãos. Elas são grandes, peludas, com dedos longos terminando em unhas pontiagudas e alvas como ossos velhos. Vejo de relance a ponta do meu pé esquerdo, que não parece um pé. Nem sinto como se fosse meu. O pé direito, que não consigo ver, só me causa dor.
A correia que prende minha cabeça está menos apertada e consigo levantar um pouco a cabeça. Vejo largas tiras passando transversalmente meu peito, abdômen e cintura. Outras devem passar por minhas coxas e canelas, mas essas eu mais sinto do que vejo. Há também tubos presos em minhas veias.
Meu desespero é breve, porém autêntico. Tento gritar. Logo me injetem algo e tudo fica escuro novamente.
A barraca estava sob uma grande árvore frondosa. Nós havíamos limpado o local e recolhido lenha para uma pequena fogueira. A noite já ia alta e a lua despontava quando nos preparamos para dormir. Mesmo estando quente, vejo-a calçar as botas dizendo que alimentaria a fogueira antes de deitarmos. Lembro-me de insistir para que deixasse como estava, mas ela é teimosa e acredita que o fogo espantará possíveis predadores. Quando faço piada sobre os diversos predadores que as florestas capixabas podem esconder, ela se zanga e diz que a fumaça manterá os mosquitos afastados e, que eu, um rato de escritório, sou preza fácil para este tipo de predador.
Descubro que posso ganhar alguns instantes de lucides de mantiver meus olhos fechados quando acordo. Eles acabam percebendo, de qualquer maneira, mesmo que eu fique imóvel. Com o tempo extra, fica mais fácil me localizar. Estou descalço e meu pé direito coça, embora eu não o alcance com o esquerdo. Pelo tato das mãos percebo as profundas fissuras no colchonete que me serve de cama, onde minhas palmas descansam impotentes.
A lua galga sua jornada celeste, completamente cheia, lançando sobre nós uma luz brilhante que ultrapassa facilmente os galhos da castanheira.
Eles não conversam entre si quando entram na sala que estou. Um deles – ou doutor – veste um jaleco branco, às vezes aberto, por onde posso ver suas roupas civis. Os outros, embora usem também as mascaras de proteção, usam roupas comuns, geralmente camufladas, mas sem um padrão que eu possa identificar. Calculo que não são oficialmente militares, embora portem armas pesadas. Apontam para mim como se eu fosse uma ameaça. E quando me balanço na maca ele se empertigam, dando passinhos assustados para traz.
Como posso causar medo neles, se estou tão vulnerável?
Sinto cheiro. Cheiros diversos, variados, saborosos. Esquisitos também. O de suor, claro. Urina, mas essa é minha. O suor deles é diferente – exala medo – mais medo do que de costume, eu consigo sentir. Minha boca saliva, um deles fez a barba a pouco tempo, eu sei porque sinto o cheiro da espuma de barbear, e deve ter se cortado no processo. Sangue. Minha boca se abre ainda mais e consigo umedecer meu nariz com a linha. Isso deixa os odores ainda mais fortes. Ainda mais feroz se torna a fome.
Eu tina certa hiperatividade. Algo sobre meus lobos frontais serem menos desenvolvidos do que os de uma pessoa “normal”, por isso nunca consegui fixar minha atenção em uma coisa só. Vivia praticando hobbies que me mantivessem em movimento, pedalava, corria, mantinha uma lista de jogos para computador que eu variava constantemente e, um cachorro para me manter ocupado.
A dificuldade em me concentrar permaneceu apesar das circunstancias. Sei que os homens armados aparecem ao mesmo tempo em que a sensação estranha e eufórica de medo, certeza, raiva e fome.
A consciência das coisas se torna mais ampla conforme o tempo passa. Minha própria forma se altera, agora é possível compreender. Vejo as coisas como nunca havia visto antes. Isso me causa tanto incômodo quando as amarras que me mantém deitado. A liberdade, imposta dessa maneira tão ampla, pode ser tão claustrofóbica quanto um buraco escuro.
Os momentos de lucidez parecem maiores, mesmo com o doutor sendo tão veloz quanto antes em me aplicar seu soro. Meu cérebro é outro agora, mas eles não sabem disso. Inevitavelmente, acabo dormindo de novo.
O farfalhar no mato próximo faz com que ela se assuste, e eu ponho a cabeça para fora da barraca para tentar ver o que o produz. A escuridão é densa, mas os passos ao redor não se aproximam. Ela alimenta a fogueira e corre para dentro da barraca. Enquanto ela tenta se aquecer imagino ter visto o brilho do fogo renovado refletido em um par de olhos grandes, tornados vermelhos pelo fogo. Mas o relance foi tão breve que o ignoro como sendo fruto da imaginação.
À noite, no entanto, enquanto durmo, sinto uma familiaridade que não deveria sentir. Às vezes, meu cachorro entrava no quanto, durante a noite e quietinho se aconchegava ao meu lado entre as cobertas. O que perturbou meu sono trouxe a mesma sensação, mas com características distintas que fizeram brotar um horror crescente que posteriormente me fez acordar. Não era meu cachorro, eu sabia. Ele nunca havia ficado muito tempo sem banho, e o cheiro era extremamente desagradável. O calor era familiar, mas muito mais intenso. O barulho é que se destacava mais nitidamente. Não ganidos agudos de medo e solidão, mas pressões constantes e ritmadas. A batida de um coração? Não, é alto demais. Eram húmidos, crocantes às vezes. Mordidas? Talvez. Mastigação. O que ela estaria comendo em plana madrugada?
Minha nova ampla consciência aparece quando abro os olhos. O barulho dos disparos é alto como os trovões da tempestade. Sinto como se tivesse ligado uma televisão que estava no volume máximo ao ser desligada e o que ela transmite é um filme de ação exagerado, bem no meio de uma das cenas de tiroteio.
É como se eu continuasse estático, mas percebo meus membros se movendo com uma força que nunca tive. São grandes e cobertos de pelos negros. Vejo, centímetro a centímetro, meus dedos se alongarem em garras sobre-humanas. As amarras se desfazem e com movimentos rápidos os homens próximos se tingem de vermelho.
O ser que me tornei consegue sair da maca. O doutor, que estava encolhido em um dos cantos com uma grande seringa na mão, parece desesperado. Seus olhos estão grudados em mim mais ostentam uma expressão de pânico total.
Esforço-me ao máximo para controlar esse corpo grotesco. Viro-me na direção do charlatão que usa mascara de medico e consigo me sentar. Vejo-o bem de cima como se eu tivesse adquirido uma estatura superior, enquanto ele despeja lagrimas de medo. Assim que tento ficar de pé, perco o equilíbrio.
Não por causa da falta de uso das pernas, mas pela falta que há logo abaixo do meu tornozelo direito. Enquanto caio, sinto a dor de um disparo em minhas costas. Girando o tronco, consigo abocanhar um dos braços do médico e lançar minhas garras no rosto do atirador. Arrasto a presa em minhas mandíbulas, mas o medico espeta aquela agulha, que mais parece uma ponta de lança, em mim.
Os disparos anteriores quase não foram percebidos. Se me acertaram eu nem tive conhecimento. Mas esse último não só acertou como foi doloroso. Queima como fogo. Eu despenco com tudo em meio aos gritos de dor e como ultima brincadeira, antes de apagar novamente, aperto a mordida o máximo que posso.
Fecho os olhos sorrindo dessa vez.
O barulho aumenta quando me viro de lado dentro da barraca e acabo acordando com um rosnado. A fogueira, quase extinta, fornece uma iluminação parca que adentra pelos rasgos que o monstro fez na porta da barraca para entrar. O rosto da jovem está virado para mim, os olhos abertos, mas sem expressão. Estão opacos, já sem vida. A criatura não se dá ao trabalho de parar sua refeição que consiste em partes do corpo que antes pertenciam à mulher que eu amo. Eu grito.
O monstro se parece com um lobo, mas anda como gente. Seu focinho avantajado, adornado por presas afiadas que mastigam carne humana, sustenta olhos grandes que brilham com bestialidade e razão. Essa dicotomia me assusta mais do que tudo. Se fosse apenas um lobo ou mesmo um urso dentro da barraca, minha lógica urbana trataria do assunto de forma racional e poderia ser possível superar o trauma com ajuda apropriada. Mas aqueles olhos transmitiam consciência. Eu grito e esperneio e a criatura uiva.
Ela aperta minha face com uma pata – com a mão – que cobre facilmente todo meu crânio e bate algumas vezes minha cabeça contra o solo até que meus gritos se tornem apenas resmungos. O monstro olha da moça para mim, depois de mim para a moça. O brilho de entendimento em seus olhos me aflige, pois ele fala de crueldade. Ele larga minha cabeça, mas agarra minhas pernas e sem qualquer cerimonia abocanha meu pé direito com a mesma facilidade que um acidente com uma serra elétrica arrancaria.
Meus gritos encontram passagem novamente por uma garganta seca, desta vez contendo, além de horror, a força de uma dor excruciante.
Escuto disparos enquanto a criatura admira minha condição deplorável, e antes que eu compreenda o que as vozes que se aproximam dizem, sou arremessado para fora da barraca como um boneco, um cadáver já sem vida, pois não tenho qualquer reação.
Acordo, fora da maca, com os gemidos do médico. Estou assustado e com frio e tremo incontrolavelmente.
O lugar está uma bagunça de corpos, sangue e buracos de bala. O medico se arrastou para perto do homem que derrubei por ultimo e está tentando pegar a arma de sua mão morta.
Sento-me e percebo o quanto emagreci. A propósito, analiso minhas mãos, meus braços, pernas e o resto do corpo, e parecem normais de novo. Controlo a tremedeira o melhor possível e me apoio à maca tentando me erguer. A compreensão aumentada das coisas continua comigo e sinto os odores com total precisão, como antes. São tão fortes e fáceis de notar que quase formam rastros em pleno ar para que eu possa segui-los.
O doutor me vê e começa a chorar. Tenta desgrudar os dedos rígidos do soldado morto do cabo do revolver. Eu procuro me adiantar para impedi-lo, mas com um só pé, jamais conseguirei.
 “O que é tudo isso?” eu pergunto, levantando as palmas abertas para que ele entenda que não quero mais problemas.
“Você se transformou” ele responde. Com a mão que lhe resta consegue finalmente empunhar a arma. Eu me sento em frente a ele, ouvindo os batimentos do seu coração se acelerarem.
“Do que você está falando? Que droga é essa?” eu prossigo.
Ele engatilha a arma. “Nós somos caçadores” ele quebra o silencio. “Estávamos atrás daquela fera ha muito tempo. Infelizmente não conseguimos pega-la antes que ela pegasse vocês”.
“Logo outros estarão aqui. Não é pessoal, rapaz, você precisa entender. Você está contaminado. Foi a primeira vez que conseguimos um espécime para estudar”. Ele ergue a arma e eu protejo meu rosto com os braços mesmo sabendo que isso é inútil, por reflexo.
Quando ele sorri, eu baixo a guarda. “Isso?” ele mostra a arma. “Não é para você. São balas de prata, tenho certeza de que você sentiu o tiro.” Ele interrompe a gargalhada demonstrando muita dor.
“Não, não é para você” ele repete. “É para mim.”
Ele diz e, antes que eu possa fazer qualquer coisa, ele leva a arma até sua têmpora, fechando os olhos lacrimejantes. Antes de apertar o gatilho, diz apenas uma palavra:
“Lobisomem”.

Alex Rebonato é capixaba, formado em História, RPGista, Aikidoísta, Asatrúar, e escritor nas horas vagas. Tem contos publicados am antologias como “Teslapunk”, “Mundo ao Contrário”, “Canarinho” e “Antologia Sombria”.



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