FOGO E FERRO - Conto de Terror - Patrícia Figueiredo Haddad



FOGO E FERRO

(Patrícia Figueiredo Hadad - 8º Lugar no Concurso Bran Stoker de Contos de Terror)

Quanto mais corria, mais a estrada de pedra parecia se estender ao longo do aclive. A garota nunca havia conhecido o mar, porém uma vez lhe disseram que, por mais que você tentasse voltar para a praia, as águas salgadas insistiriam em te puxar de volta para o fundo. Era assim que ela se sentia: no limiar de se afogar em meio ao cansaço, à dor e à vergonha.
Os calos e as bolhas nos pés latejavam dentro do sapato, mas Isabela não parou para descansar: o clamor cada vez mais alto da população era o estímulo que precisava para apertar o passo. Em meio à pressa, suas pernas fraquejaram, o pé se enfiou numa falha e ela desabou sobre as pedras frias da rua.
As estrelas no céu rodopiaram e se misturaram com os anéis de luz dos postes e com as casas pálidas que ladeavam a estrada. Seus olhos, até então anuviados, deixaram escorrer lágrimas, formando trilhas nítidas em seu rosto empapado de poeira e suor. Estava queimando; mas não fisicamente, era como se estivesse com febre ou possuísse fogo nas veias ao invés de sangue: seu corpo ardia desde o fundo dos olhos até os pés. Um gosto metálico invadiu a sua boca.
Seus cabelos foram repuxados por uma força invisível que a arrastou pela rua. Parte do vestido rasgou e os joelhos esfolaram, enquanto a garota guinchava e se revirava como uma minhoca. As veias do seu rosto e pescoço incharam prestes a explodirem, desenhando uma topografia que lembrava a rachadura de um espelho, e a língua envergou para trás até alcançar a úvula. Ela apertou os cabelos ao redor dos punhos, tentando libertá-los, mas um a um eles eram arrebentados de sua cabeça. Sua garganta explodiu num grito de dor, ela apalpou o cocuruto à procura das suas madeixas, mas encontrou apenas uma lisura engrolada em sangue fresco. Quando recobrou o controle de si, estava sentada sobre os fios espalhados no chão. Ela os tocou desesperadamente, tentando juntá-los, sem saber exatamente o que faria com eles.
Meu cabelo..., lamentou em seus pensamentos, se recordando do tempo em que se admirava no espelho e penteava os cabelos com aprumo, madeixa por madeixa, deixando-os escorrerem macios e fartos pelas suas costas. Agora jaziam mortos no chão, escuros como um amontoado de larvas.
Apalpou o topo da cabeça: alguns fios haviam permanecido, mas estavam extremamente grossos; a textura lembrava o couro das botas que o seu pai costumava usar. Descendo as mãos até o rosto, percebeu que as veias salientes das bochechas, nariz e testa também haviam adquirido a mesma textura, num prolongamento das fitas duras do seu cabelo. O gosto metálico se intensificou dentro da sua boca e, quando tentou fechar a mandíbula, os dentes se pressionaram contra uma haste metálica. Tateando o rosto, constatou que usava um cabresto, formado pelo que antes fora o seu cabelo e as suas veias. E a sua língua havia se transformado num freio de ferro.
Ela tentou se livrar daquela estrutura apertada, enfiando as unhas debaixo das cordas e ferindo a própria carne, mas o cabresto não estava apenas encaixado em sua cabeça: ele fazia parte dela. O estrondo da multidão irrompeu. Estavam próximos, muito próximos. Isabela revirou o rosto imaginando de qual esquina iriam surgir. Ela se levantou num salto, tentando manter as pernas firmes e a dor do cabresto longe dos pensamentos, e tornou a correr.
O telhado da igreja despontou mais além. Calor se espalhou pelo peito da garota, regado a esperança. Ela acelerou o passo, de repente não sentindo tanta fraqueza no corpo; e, passo a passo, ora tropeçando em uma pedra sobressalente, ora esticando as pernas em passadas hábeis e velozes, ela finalmente conseguira ficar frente-a-frente à porta da igreja. Isabela ergueu o punho para bater, mas hesitou. Aquela construção de madeira e pedra que se erguia diante dela era tão acolhedora quanto medonha.
Ela frequentava a igreja desde criança. A mãe costumava guiá-la pela estrada de pedra segurando-lhe pela mão — as saias longas roçando-lhe as pernas e o rosário enrolado no pulso — e o pai seguia ao lado, com a bíblia abraçada contra o peito e a mão livre acenando para os conhecidos que encontravam. A princípio Isabela ia à igreja para rezar, mas depois que o padre Agenor começou a celebrar as missas, ela passou a ir por outro motivo.
Fechou os dedos numa concha e bateu na madeira, salpicando-a com sangue. Aguardou por um tempo, mas a única resposta que lhe veio fora o eco da sua batida no salão do outro lado da porta. Ela bateu novamente, em vão. Seus dedos coçaram nervosamente a palmilha do sapato: Agenor estava na igreja, ela tinha certeza que ele estava. Ela bateu na porta mais uma vez, e outra, cada vez com mais força, até que as duas mãos esmurrassem a madeira inúmeras vezes. Mas Agenor não veio em seu socorro. A garota tentou gritar o nome do seu amado, mas não tinha mais língua, e o freio de ferro limitava os movimentos da sua boca. Ela apalpou o próprio corpo com nojo: ele provavelmente avistara a sua terrível aparência da janela e deixara de amá-la. Estava só.
Outra crise de ardor invadiu o seu corpo. Ela cambaleou até o gramado do cemitério ao lado e tentou se apoiar numa lápide, mas as mãos escorregaram e foram procurar apoio no chão. O que ela viu pressionando a terra foram cascos ao invés de dedos. Antes que pudesse apalpar aquelas patas para se certificar de que eram reais, antes que gritasse, antes mesmo que entendesse o que estava acontecendo, toda a sua cabeça, desde o pescoço até a ponta do nariz, se inflamou em chamas monstruosas. Ela desabou no chão, mais pesada do que costumava ser. Os ossos da coluna e das pernas estalaram em múltiplas fraturas, seu corpo todo coçou insuportavelmente e o rosto era um caldeirão rubro de lágrimas e suor.
Escutou o clamor da multidão revoltada, que já devia estar em frente à igreja. Isabela não se importou, não queria mais se esconder: sob as condições atuais seria uma misericórdia se a matassem. A cabeça finalmente explodiu e as quatro patas pegaram fogo. Embora não tivesse mais cabeça, o cabresto e o freio de ferro continuavam lá, dançando em meio às chamas e, embora não tivesse mais boca, gritou; gritou o mais alto que pôde na tentativa em vão de expulsar todo o seu sofrimento. Seu berro foi desafinando até se tornar um relincho.
A população se aglomerou em seu entorno, vários rostos curiosos e espantados a observavam de cima. Em suas mãos portavam facas e machados. Isabela se levantou num salto, as pessoas se afastaram num pulo. O corpo dela ainda ardia, mas já não doía tanto, sentia-se vigorosa. Ela os ouviu murmurarem “mula” antes que as palavras, em uma fração de segundos, deixassem de ter qualquer significado aos seus ouvidos, tornando-se sons, apenas. Os rostos, aos poucos, também foram se tornando estranhos frente ao seu olhar distorcido pelas chamas. Um casal de velhos se destacou no meio da multidão: dentre todos os outros, eles pareciam os mais tristes. De certo modo, eles lhe eram familiares. Os braços roliços da mulher e a barba grisalha do homem lhe davam vontade de se aconchegar sob uma sombra e dormir ao som do canto suave dos pássaros. Ao se virar, Isabela encontrou outro rosto que lhe prendeu a atenção. Era um homem, de rosto belo e olhos tão azuis quanto um dia de verão. Ele abriu a boca quando se encararam. Ela tentou se aproximar, mas ele desenhou o sinal da cruz com os dedos e se escondeu em meio aos demais.
Um dos humanos rugiu, erguendo a sua arma. Os demais acompanharam o seu gesto. Isabela empinou sobre as patas traseiras e relinchou. As pessoas se afastaram assustadas. Os cascos flamejantes encontraram novamente o solo e ela partiu numa corrida veloz, em direção a lugar nenhum. Não havia mais limites, ela era livre: tão solta quanto as chamas que valsavam sobre o seu pescoço. Suas pernas fortes quase flutuavam sobre o chão, pintalgando o solo com pequenas faíscas.
Ao alcançar o cume de uma serra, ela assistiu à paisagem vasta ao seu redor. A pequena cidade estava vermelha, lhe saudando com lambidas as altas do fogo, que a transformavam num passado varrido pelas cinzas.


Patrícia Figueiredo Haddad é engenheira, estudante de canto, atriz, cinéfila e, acima de tudo, escritora. Patrícia publicou o seu primeiro conto pela Editora Oito e Meio em 2015 e atualmente está trabalhando em seu primeiro romance fantástico, com previsão de término para 2018. Desde criança, sempre gostou de criar histórias, inspiradas principalmente pela sétima arte, por animações japonesas e da Disney e livros que marcaram a sua vida, como Harry Potter e As Crônicas de Gelo e Fogo. É apaixonada por cães e unicórnios.


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