LADRÕES DE CADÁVERES - Narrativas Verídicas de Horror - Henry Frichet

LADRÕES DE CADÁVERES

Henry Frichet

(? – 1941)

Tradução de autor anônimo do início do séc. XX


Há bem pouco tempo, os jornais parisienses anunciavam que a sepultura da encantadora atriz Lantelme havia sido profanada por ladrões, que a escavaram, a fim de roubarem as admiráveis joias que morta levava consigo. A pobre carne adormecida sofreu o odioso contato de mãos ávidas, mas o medo—o medo que apaga a razão — obrigou os ladrões a abandonarem os sinistros despojos, e eles fugiram apavorados…

Os autores desses odiosos atentados foram, em todos os tempos, qualificados de “vampiros”, naturalmente porque evocam a ideia desses monstruosos morcegos da América Equatorial, que se alimentam do sangue dos viajantes que dormem pelo caminho. Na Idade Media, dava-se também o nome de vampiros aos pretendidos fantasmas que surgiam da sombra dos túmulos, e cuja existência fluídica era conservada pela absorção do sangue dos seres que eles escolhiam para suas vítimas.

Os horríveis detalhes do atentado, de que acima nos referimos, traz à baila outros crimes análogos, alguns deles típicos. O que se passou sobre a sepultura de Mme. Lantelme não é um fato isolado: a corrupção dos costumes, a preguiça, o amor do lucro, todos os vícios, enfim, não datam de ontem nem de anteontem. Sempre, sempre, entes sem eira nem beira muitíssimas vezes têm tido ocasião de espoliar os pobres mortos que, por um sentimento de piedade, são enterrados com as suas preciosas joias que adoraram em vida.

Em 20 de Setembro de 1752, o Parlamento condenou ao suplício da golilha, à marca do ferrete e a três anos de galés um coveiro de Paris chamado Charles Regnault, por ter tentado despojar um cadáver no cemitério de São Sulpício. O cadáver era o de uma moça rica, enterrada com uma esplêndida cruz de ouro incrustada de diamantes.

À noite, Regnault começou a escavar a terra que encobria o esquife. Esse homem não tinha os nervos sensíveis: era um velho coveiro, cujo longo exercício de sua profissão acabou por empederni-lo. Demais, para um trabalho dessa ordem, ele, que gostava de bebidas alcoólicas, bebera, naturalmente, mais que de costume nessa noite, a fim de criar mais coragem para os seus sinistros planos.

De repente, porém, ele foi obrigado a suspender sua obra: parecia-lhe ter ouvido um angustioso gemido Mas, não! Nada! Colou o ouvido à terra e nada, ainda!… Pensando ser vítima de uma alucinação, continuou a escavar a terra a grandes enxadadas. Enfim, um golpe surdo fez-se ouvir: o instrumento acabava de encontrar o caixão. O coveiro acendeu uma lanterna, abriu o esquife e arrancou o sudário que cobria a morta. Estupefato, porém, ele viu que as mãos da defunta não estavam cruzadas sobre o peito, não obstante a palidez do rosto, que era a de uma pessoa sem vida.

Aproximando mais a lanterna, suspendeu-lhe um braço e, pela rigidez deste, verificou que estava realmente na presença de um cadáver.

Preparava-se ele para tirar o colar, quando lhe pareceu ver o peito da morta levantar-se ligeiramente.

Os lábios retomaram subitamente as cores naturais e os olhos se abriram. A moça ergue-se a meio, solta um grito angustioso e cai de novo, dura, morta realmente desta vez.

O coveiro fugiu, cheio de medo.

Condenado, como dissemos, a três anos de galés, ele não chegou a cumprir a pena: a loucura atacou-lhe o cérebro.

Quem ousaria afirmar que os casos de morte aparente não são mais frequentes do que se supõe?


*

Mas o mais singular atentado — pelo menos nas suas inesperadas consequências — foi o cometido por um monge do mosteiro de Sain-Just sobre o túmulo de Carlos V.

O ilustre defunto estava vestido com as suas vestes reais e imperiais, cheio de suntuosos colares, joias raras e com todas insígnias que eram os atributos de sua soberana autoridade.

Todas as noites, cada um por sua vez, os monges eram obrigados a velar, orando, diante do catafalco colocado em frente do altar-mor.

Ora, um desses monges resolveu subtrair o cioso anel que ornava o dedo do augusto finado.

Armado de um martelo, de tenazes, de tesouras e de pinças, quando já todo o convento dormia em religioso silencio, só, à luz vacilante dos círios mortuários, ele começou o seu infernal trabalho.

Grande era a sua emoção. O seu crime, revelado, seria punido de morte, e ele sabia que não só naquela capela, como em todos os outros mosteiros, as mais grossas paredes podiam muito bem ter olhos e orelhas.

Acabava ele de despregar a tampa do esquife, quando uma tábua se partiu. Vendo-se perdido, o monge não pensou senão em consumar o seu delito e fugir com o objeto furtado.

O esquife é, finalmente, aberto.

Enorme, horrível, o queixo saliente do imperador defunto cai sobre a peito; a grande boca, aberta, parece proferir uma ameaça. Um olho está meio aberto.

O sinistro ladrão encontra grandes dificuldades para separar-lhe as mãos, em torno das quais está enrolado um pesado rosário dos irmãos de Saint-Just. Para arrancar o anel, quase é preciso quebrar um dedo. E o olho aberto de Carlos V está cheio de cólera…

O medonho queixo não se teria mexido? Loucura! Mas uma dobra do sudário roçou o rosto do monge.

— É o vento que sopra através da vidraçaria mal junta — pensou ele —; não é senão isso.

De repente, e ao mesmo tempo, dois círios se apagam. O monge supôs ouvir abrirem a porta da sacristia. Nada! É a ventoinha que range sobre o telhado… E ele tem medo — um medo atroz — e começa, então, a pregar de novo o esquife.

Cada martelada fá-lo tremer, mas o esplêndido anel — uma fortuna — está em seu poder.

— Já está aqui — disse ele, metendo a mão no bolso.

Não! Não está no bolso!

E durante muito tempo — os minutos são séculos — ele o procura numa crescente exasperação

— Terei ficado doido? — pergunta de si para si.

De súbito, vê a joia brilhar no seu dedo

— Ah, enfim! E agora partamos, partamos o mais depressa.

Todavia, ele presta ouvidos, mas ninguém vem; somente ouve o ruido de seu coração. As pernas parecem querer faltar-lhe e ele já se sente desfalecer. O último círio acaba de se apagar. À pressa, o monge procura sair, beber um pouco do ar fresco da manhã, escapar a esse horrível pesadelo!.

Impossível! Uma mão vigorosa agarra-o, não obstante os esforços para desvencilhar-se! A mão é mais forte; o punho de Carlos V, que despedaçava barras de ferro, é sólido e não o deixará mais! Um grito de raiva, de desespero e de loucura, repercutiu sob a abobada da capella.

Uma hora depois, quando os monges do convento entraram para assistir à missa da manhã, com estupefação, viram o seu irmão Baptiste meio estendido sobre as lages, com a cabeça virada contra o esquife real. Morto! Uma ponta do habito estava presa sob a tampa do caixão, pregado, sem dúvida, precipitadamente.

— Justiça do rei… — disse o prior, enquanto erguiam o cadáver.


Fonte: “O Gato”/RJ, edição de 28 de setembro de 1912.

 

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