HECATOMBE - Conto de Suspense e Terror - Emerson Cássio Maia Carvalho



HECATOMBE

(Emerson Cássio Maia Carvalho - 12º Lugar no Concurso Bram Stoker de Contos de Terror)


Tim, fez o sininho do elevador.
Logo que as portas se abriram, o velho Senhor B. encarou o longuíssimo corredor e, antes de iniciar seus passos vagarosos, pôs-se a pensar. Olhando para o carpete vermelho que mais parecia a língua carcomida de uma monstruosa serpente, ele se esforçou para entender — estruturando mentalmente inúmeras pressuposições — o porquê de aquele prédio antigo ainda possuir energia elétrica. Mas, para além de qualquer ponderação, o que mais o intrigava era o fato de as velhas engrenagens da casa de máquinas não terem se despedaçado e as caldeiras explodido, como presumivelmente devia ter ocorrido, pois, afinal, já tinha se passado tanto tempo de uso desde a queda dos homens.
Foda-se! Que vá tudo pro inferno! — praguejou o Senhor B.
Assim que começou a caminhar, as portas enferrujadas do elevador se fecharam tão logo feito mais um tim, e a luz fosca e tremulante das lâmpadas fluorescentes no teto iluminaram seus passos à medida que seguia, arrastando a perna direita, pelo corredor repleto de portas de apartamentos com plaquinhas numeradas nos dois lados. Tudo, pois bem, era engolido por um silêncio que se quebrava apenas pelas gotas d’água que caíam do teto e se estatelavam contra o carpete, por certo o produto de algum encanamento estourado. E como a água era bombeada até àquela altura se tratava de outra questão, inquietante, que perturbava cada vez mais o Senhor B e o fazia pensar em coisas macabras.
Então, durante alguns segundos, o corredor ficou imerso pela escuridão, e seu coração bateu mais rápido ao invés de parar — como o Senhor B. acreditava piamente que aconteceria ante aquela situação. As pessoas são devoradas pelas criaturas das trevas, de modo que se seu coração parasse, assim de súbito, estaria livre das agonias de uma morte terrível. E mil coisas poderiam ter se passado em sua mente, mas tudo o que pensou foi em sua velha mãezinha sorrindo para ele, uma lembrança remota de seu tempo de menino, quando havia música e risos, quando havia sol e vida. E logo que as luzes tornaram a iluminar o corredor e seus olhos cansados voltaram a enxergar o ambiente, ele riu feito um lunático do próprio medo, pois sabia que não poderia se render ao desespero e à covardia.
Senhor B prosseguiu coxeando pelo corredor. Trazia consigo um grande saco de linho. Precisava ir embora dali. Já não era mais seguro permanecer no prédio. Encontrou um novo refúgio e precisava ir para lá antes que os sinais se intensificassem e a Morte, por fim, revelasse sua face atemporal e lhe desse o beijo derradeiro.
Quem é que está aí? — questionou uma voz esganiçada de garota.
Mas o Senhor B nada respondeu. Também não era nada seguro falar alto por ali. Os demônios podem estar à espreita, atentos a qualquer estrato fônico.
Quem é que está aí? — tornou a exigir a voz, mais alto. — Vamos, responda logo!
1405... 1406... 1407. A porta estava entreaberta e o Senhor B entrou no apartamento 1408 com os nervos à flor da pele. Já não tinha mais saúde para andar daquele modo; e apoiar o peso sobre a perna inválida lhe causava dores que, a depender da situação, poderiam durar horas inteiras e o faria chorar lágrimas de sangue feito um menino. E, definitivamente, era prejudicial para a sua sanidade ter que explicar tantas e tantas vezes, para a idiota à sua frente, o quanto era perigoso falar mais alto do que um muxoxo, em especial quando os sinais estavam mais acentuados e se aproximava o dia da Avaliação.
Silêncio! — ordenou. — Silêncio! — repetiu o Senhor B., sustentando a rispidez.
Assim que viu o velho, a garota transformou seu rosto carregado de expectativas para uma expressão monótona, uma face de indiferença.
Ah, é só você.
Desejava que eu morresse, maldita?”, pensou o Senhor B.
A garota o encarou por alguns instantes, revelando indiferença em seu rosto anguloso e emoldurado por uma cabeleira acaju e desgrenhada, as sobrancelhas quase unidas. Segura da presença do Senhor B., continuou a fatiar batatas e depositá-las na panela borbulhante no fogão. Havia meia dúzia de frutas e legumes sobre o balcão da pia, completamente suja pelo sangue de uma galinha sem pescoço que pendia de um paneleiro. Mas onde ela havia encontrado? Senhor B. deduziu que a pouca coragem que a garota possuía a levou a invadir e assaltar algum dos apartamentos do prédio. Talvez, pensando melhor, a encontrou ao passo que se esgueirava pelas ruas e vielas do bairro à procura do irmão. Ela, porém, teria coragem suficiente para ir até as ruas? O sol não aparecia já beirava um mês, e a garota tinha medo do escuro e do que habitava nele. Ademais, beiravam duas semanas que não encontravam uma única alma viva.
Ouvi vozes enquanto esteve fora — contou a garota. — São sinais, não são?
O que você acha? — Após sentar-se no sofá, queixando-se de dores na perna, devolveu o Senhor B. com outra pergunta, absolutamente impaciente, revirando o saco que trazia e insultando suas desventuras.
A garota levou à panela a galinha e, em seguida, questionou:
Trouxe alguma coisa?
O velho nada respondeu, apenas continuou a revirar o saco: celulares, livros e mais livros. Não havia muito o que prestasse. Nada que pudessem comer.
Quando vamos partir?
O velho manteve o silêncio. Revirava o saco com a curiosidade de uma criança guiada pela esperança. Parou o que fazia somente quando, uma hora mais tarde, se serviu do arroz, do feijão e do pedaço farto da galinha malcozida e repleta de penugens.
A comida não está nada boa — exprimiu o velho com a boca cheia.
Arrume outra — sugeriu a garota, fazendo o garfo tilintar no prato. Não havia tocado na comida e seu olhar era direcionado para o quarto ao lado engolido pela escuridão.
O rapaz apareceu? — indagou o Senhor B.
A garota fez que não com a cabeça. Seu olhar era sombrio.
Já faz três dias — disse com, ao menos pelo o que Senhor B. pôde perceber, um tom de lamento, distante da imagem fleumática que tentava sustentar. — E já faz cinco dias que estamos aqui. Cinco malditos dias! E dentro de dois... — Ela se manteve em silêncio, levou os olhos para a comida pouco convidativa em seu prato e, por um momento, ficou absorta em seus pensamentos. — Quando vamos partir? — Sua voz era autoritária.
Amanhã — disse o Senhor B. em resposta. — Encontrei uma boa casa há alguns quarteirões daqui — continuou após mastigar e engolir. — Está vazia.
Tem comida?
Não.
Ainda tem água?
Não. Mas posso consertar o encanamento.
E por acaso o senhor sabe mexer com encanamentos?
O velho nada disse. Apenas comia como um cachorro revirando o lixo.
E energia?
Calada!
Vários minutos de silêncio depois, ao terminar o jantar, o velho pediu:
Me fale das vozes.
A garota empurrou o prato e encolheu-se na cadeira de longo espaldar.
Não eram bem vozes. Apenas sussurros. Sussurros ininteligíveis, como gemidos. Mas ouvi coisas sendo arrastadas no andar de baixo. São sinais, não são? Estão aparecendo com mais frequência...
O velho absorveu a informação, refletiu e fez um muxoxo escandaloso. Sim, eram sinais. Sinais mandados por Deus que, em sua infinita misericórdia, alertava que o prédio estava prestes a receber uma comitiva de demônios e, se quisessem sobreviver, precisavam se retirarem para um novo abrigo em que nunca estiveram antes, protegido por orações e com o sangue de um cordeiro abatido em nome Dele, no qual não poderiam habitar por mais do que doze dias. E começaria tudo de novo: uma nova procura por um local em que nunca tivessem posto seus pés amaldiçoados, e, neste ínterim, uma legião de demônios rumaria dos círculos do inferno em busca da Avaliação dos pecadores e, por conseguinte, a condenação final.
Arrumou suas coisas? — perguntou o Senhor B.
A garota confirmou balançando a cabeça para cima e para baixo.
Ótimo! Não vamos demorar muito. Amanhã mesmo vamos embora daqui. Algum desses moribundos pode ocupar a casa que encontrei.
Mas nós também somos moribundos”, Senhor B. pensou melhor.
O silêncio, mais uma vez, passou a reger o ambiente. A garota se trancou em um quarto e o Senhor B. pôde jurar que a ouviu chorar, embora abafasse os prantos com um travesseiro. Ultimamente vinha chorando muito, logo após o sumiço do irmão. Senhor B. encontrou os dois perambulando por uma rua, enquanto voltava de mais uma procura por comida, e jurou que eram criaturas infernais que vinham a seu encontro para levá-lo para diante da Grande Ceifadora. Desfeito o susto, os trouxe até aquele prédio e formaram um grupo. E tal e qual Senhor B. costumava fazer, o garoto saiu à procura de comida, mas não voltou e, passados três dias, tanto o velho quanto a garota sabiam que não mais retornaria.... Não na forma humana.
Senhor B. deitou-se no sofá rendido pelo sono que, sem que pudesse detê-lo, lhe atingiu em cheio. Ao passo que roncava como o escapamento de um carro velho, trovões estremeceram o prédio na base e raios incendiaram o céu. Senhor B. despertou apavorado, choramingando enquanto clamava misericórdia ao grande Deus. Por um instante não se lembrou de onde estava e, então, um medo absoluto envenenou seu coração e botou lágrimas em seus olhos. Notou que uma tempestade furiosa desabava, uma orquestra fúnebre que pairava sobre aquele distrito e portava maus agouros.
Garota, acho melhor irmos andando...
Senhor B. seguiu até o aposento onde a garota costumava dormir. A porta rangeu quando foi aberta e, após tatear a parede, ele pressionou o interruptor. A luz piscou antes de se apagar novamente para nunca mais se acender. Não havia ninguém por ali, porém. Nos poucos instantes de claridade, Senhor B. viu uma grande mala abarrotada de roupas sobre uma cama desforrada. A chuva penetrava pela janela aberta e formava poças no assoalho.
Garota! — Senhor B. esforçou-se para ser ouvido por meio de um fiapo de voz. Tão logo a ausência de sua única companhia empurrava-o contra a angústia, passou por sua mente que poderia estar morta tal e qual o irmão. E o velho gritou ao não conseguir suportar essa ideia, contudo não obteve resposta.
Ele revistou o apartamento. Nada. Espreitou pelo corredor. Nada. O desespero o assaltava, instigando-o a ter os mais nocivos pensamentos. Após muito refletir, resolveu descer até o térreo. Com sua costumeira e patológica vagarosidade, entrou no elevador e observou os números referentes aos andares decrescerem lentamente. O bramido das engrenagens que precisavam de óleo o assustava como nunca antes. No sétimo andar, porém, as portas se abriram e os olhos do Senhor B. foram convidados a observar um longo corredor engolido pela penumbra, ladeado por portas fechadas e, no fim, uma única entreaberta que convocava uma nesga de luz tremeluzente a se arrastar com alternados trechos de escuridão pelo piso de mármore. Ele tornou a apertar o botão que indicava o térreo, mas a estrutura metálica não se mexeu. Estava preso naquele andar, e o apartamento iluminado no final do corredor assaltava sua curiosidade.
Senhor B., que já havia percorrido todos os andares do prédio em busca de suprimentos, não sabia da existência de mais nenhum habitante. Pelo que constava todos partiram em busca de um novo abrigo. Ou morreram por ali mesmo, antes que o Senhor B. chegasse. Não obstante, por que aquele único apartamento estava iluminado? A dúvida era um dos lados de um pêndulo que oscilava a favor do medo que ulcerava o coração do Senhor B. Tencionado a aplacar suas dúvidas insalubres, ele decidiu averiguar. Andou com seus passos lentos, a respiração ofegante, os olhos quase sem piscarem encarando a porta ao fim do corredor. Parou algumas vezes para olhar para trás, constatar que o elevador ainda se encontrava parado no andar aguardando seu retorno. E ao chegar ao seu destino não renegou uma antiga prece de seu tempo de menino.
Senhor B. empurrou a porta e ela produziu um leve rangido. Munido de uma coragem frágil, ao investigar o lugar Senhor B. percebeu que estava vazio, todos os quartos categoricamente desabitados. A sala era iluminada pela luz bruxuleante das lâmpadas de um lustre que pendia do teto, uma corrente de vento gelado invadia o recinto pelas janelas quebradas. O banheiro empestava todo o apartamento com o fedor de podridão. Além do próprio Senhor B, não havia vida alguma por ali, nem mesmo pulsando nas plantas ressequidas nos cachepôs.
Apertando as têmporas, Senhor B. então sentiu a visão ficar momentaneamente escura e a audição ser invadida por murmúrios ininteligíveis. Seus pelos arrepiaram e ele sentiu o frio rolar por sua espinha e espalhar-se em ondas copiosas por seu corpo. Da perna inválida surgiu uma pontada excruciante que quase o derrubou no chão. Precisava sair dali. Eram os sinais se apresentando...
Fazendo a mais possível força que sua idade e saúde podiam proporcioná-lo, o velho Senhor B. correu cambaleando pelo corredor, as paredes porosas o ajudando com o equilíbrio. Das paredes, em contrapartida, brotaram suspiros e gemidos, de modo que ele retirou imediatamente suas mãos como se as tivesse tocado em uma coisa nojenta. A luz intermitente do apartamento produzia sombras de formas monstruosas, e o corredor parecia se comprimir em função de um súbito frio boreal que rachava os ossos. A todo instante, o Senhor B. remetia preces a Deus e a todos os santos mais do que em qualquer outro momento de sua vida diminuta, rogando por uma absolvição celestial.
De repente, o sininho do elevador retiniu um conhecido tim e as portas do elevador se fecharam antes que ele pudesse alcançá-lo. Senhor B. esmurrou aquele grande cubo de metal oxidado e lançou pragas e todo tipo de impropério. A luz, no fim do corredor, continuava a tremeluzir e o ar, antes gelado e seco, ficava estranhamente quente e úmido. Então, os sussurros que a garota havia testemunhado irromperam intercalados por risadas e urros guturais. E para quebrar o suspense que se solidificava cada vez mais, a luz que provinha do apartamento desocupado se tornou vermelha, embebedando o corredor com uma tonalidade próxima de sangue, e depois se apagou.
Tudo eram trevas. As vozes se calaram e o silêncio se ergueu soberano e tumular. Não se escutava nem mesmo o barulho da tempestade. No entanto, decorrido algum tempo, o Senhor B. ouviu o som de passos pesados. De imediato, seu coração rufou feito tambores e o suor se derramou copioso por seu corpo e empapou suas vestes. Ele pressentia que muito brevemente estaria embalsamado pela Morte, no inevitável encontro terrificante com seu ceifador e seu beijo final. Quando se prostrou de joelhos e clamou, mais uma vez, por uma intervenção divina, a luz no fim do corredor novamente tremeluziu e se acendeu. A sete palmos de distância de onde estava, ele contemplou uma entidade com uma cabeça de chacal e coberta por uma mortalha carmesim, um dos longos braços apontando para a extremidade do corredor. E quando todas as luzes do prédio se acenderam, quando criaturas humanoides de chifres abriram as portas dos apartamentos e se revelaram como arautos do submundo, quando pôde ouvir os sinos das igrejas em ruínas berrando nos campanários, anunciando para os vivos acerca das legiões de demônios que vagavam pela terra, o velho Senhor B. soube, sem saber como sabia, que já não pertencia mais àquele mundo desgraçado. Não era nem mesmo memória.


Graduando em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Emerson Cássio Maia Carvalho atualmente é bolsista de iniciação científica com o projeto intitulado "A prisão escrita na literatura brasileira", patrocinado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PIBIC/CNPq. De agosto de 2016 a julho de 2017 foi bolsista de iniciação científica do projeto de pesquisa "Escritores falam de sua terra", também financiado pelo PIBIC/CNPq e com o qual recebeu Menção Honrosa. É, ainda, membro voluntário do projeto intitulado Pelas Letras!, desenvolvido na APAC-Santa Luzia. Ademais, em 2014, foi um dos vencedores do 9º Prêmio Maximiano Campos de Literatura e possui um artigo publicado na Revista do Instituto de Ciências Humanas da PUC Minas, intitulado “As muitas vozes em ‘A Rainha de Maio’: análise do fenômeno/estratégia da intertextualidade”.


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