MAU EGÍPCIO - Conto de Terror - Wellington Oliveira
MAU EGÍPCIO
(Wellington
Oliveira, Menção Honrosa no Concurso Literário Bram Stoker de Contos de Terror)
—
Mãe, diga que não há uma múmia aqui — Melina implorou amedrontada. As ricas mãe
e filhas, donas de um império de pedras preciosas agora desciam acompanhando o
guia por aquela tumba em Cairo Copta.
—
Minha filha, isso pode ser uma informação toda nova e chocante para você, mas
eles não colocavam pedras valiosas dentro de sarcófagos para honrar o descanso
eterno de berinjelas e repolhos, então... Sim. Eu terei que arrancar o meu
diamante de alguma carcaça em deterioração envolta em esparadrapos.
—
Estamos perto — o guia egípcio Anum se pronunciou e segundos depois os membros
da equipe já tomavam a frente empurrando o pesado e alto portal rochoso à
frente deles que se tornava invisível ao ser engolido pelo impiedoso breu.
Todos
adentraram o que parecia ser uma espécie de saleta, igualmente escura como o
corredor que vinham percorrendo antes, mas ali pequenos pontos coloridos e
luminosos reagiam ao contato dos feches de luz das lanternas. Eram as pequenas
pedras preciosas incrustadas no sarcófago dourado de pé, encostado á parede ao
fundo da saleta negra.
Eles
imprimiram um esforço descomunal e retiraram a tampa dourada do sarcófago. O ar
se tornou estático. Melina apertou o braço de sua irmã Leandra com força. Todos
erguiam suas lanternas lentamente para encontrar o interior do sarcófago. Um
suspense cortante. Até que foi revelado. A múmia de coloração terracota. Corpo
muito alto e esguio. Por mais que sua estrutura óssea estivesse corroída em
vários pontos e as ataduras de linho que a encobriam por inteiro estivesse
muito frágeis, era impressionante o seu estado de conservação. As luzes das
lanternas focaram especialmente e em conjunto no crânio revelando a mandíbula
deslocada com poucos dentes exposto de forma intimidadora. Dois diamantes cor
azul turquesa fincados no lugar dos olhos e o tão cobiçado diamante vermelho
fincado no meio da testa.
Ao
encarar os besouros que agora se movimentavam, brotando do interior da boca
torta da múmia, Melina afundou seu rosto no ombro de Leandra. Olhos apertados
em pavor. Eleonor não conseguia ver mais nada além do brilho avermelhado do
diamante que cintilava especialmente para ela. Foi se aproximando lentamente
como se a pedra a chamasse. Ela agarrou o diamante vermelho e puxou, tentou
torcer, sua face se contorcia em esforço sem que nem a pedra e nem a múmia
sequer se movimentassem.
—
Eu quero o diamante, sua pilha de ossos desgraçada! Merda! — Eleonor liberou o
grito. – Arrastem essa porcaria para fora daqui. Joguem no caminhão e levem
para a casa.
—
Eu não acredito que vamos levar isso. Não acredito que ficará na casa onde
estamos hospedadas. — Melina protestava em revolta.
* * *
—Incompetentes!
—Eleonor gritou feroz no porão da casa onde estava reunida com a equipe de pesquisadores
e Anum naquele instante ao redor do sarcófago fechado. — Como assim não
conseguem extrair o diamante com as ferramentas?! Importem da Rússia, do Japão,
do inferno! Eu quero a minha pedra! Eu vou entrar no meu avião com as minhas
filhas no fim dessa tarde e voltar para o Canadá com o meu diamante como
planejei. Fim da história. Que conversa é essa agora de preservação da múmia?
Arranquem de qualquer jeito. As malditas autoridades locais não souberam de
nada de qualquer forma para fiscalizarem. Eu mesma decepo a cabeça enfaixada e fedida
cheia de bichos e sei lá mais o que, jogo na minha bolsa e levo com diamantes e
tudo mais. Vocês duvidam? Arrumem uma solução até o fim da tarde ou estão todos
demitidos.
Logo
era o fim da tarde. Sozinho no minúsculo quarto único onde morava, Anum observava
compenetrado o noticiário na TV.
—
Não há previsão para a retomada do funcionamento do tráfego aéreo no Egito.
Após o fenômeno das mortes em massa no Velho Cairo, outro fenômeno alarma os
cientistas locais. Os sistemas das aeronaves passaram a não responder mais no
início dessa tarde ao atingirem determinada altura. Após quatro pousos forçados
logo depois da tentativa de decolagem, o serviço aéreo do país foi cancelado
por tempo indeterminado.
Com
a mão cobrindo os lábios, Anum caminhou até a janela. Olhou para a fora, para o
céu alaranjado de fim de tarde. Aproximava-se lá no alto uma revoada
inacreditável de pássaros que encobriam uma boa tarde do céu tamanha era a
quantidade, até que ao sobrevoarem próximo ao seu casebre começaram a
assustadoramente despencar sem vida de encontro ao chão em fortes impactos. Anum
caminhava de costas, se afastando da janela, com olhos enormes que presenciavam
a chuva pesada de aves mortas.
* * *
Eleonor
sentia a eletricidade correr em seu interior. Na cozinha ela abriu a primeira
gaveta do balcão e remexeu os talheres provocando grande barulho até retirar de
lá uma grande faca. Ela bateu a gaveta e correu até ao salão principal. Abriu o
portão no chão que dava ao porão. Em uma mão a grande faca. Na outra uma
espaçosa bolsa de couro.
Ela
desceu os degraus. Acendeu o restante das luzes lá embaixo e quando o sarcófago
repousado horizontalmente a encarava ela já o encarava de volta. A decisão
pulsava em seus olhos. Empurrou a tampa pesada. A tampa de argila empurrada por
completa encontrou o chão e se despedaçou em uma dezena de grossos pedaços.
Eleonor encarou o interior do sarcófago com os olhos que clamavam pela
concretização de seu objetivo. Cabeça cortada, armazenada dentro da bolsa,
levada para o Canadá com o diamante inestimável. Mas ele a encarou de volta. O
vazio do sarcófago. A múmia não estava mais lá. E nesse instante bolsa e faca caíram
de suas mãos devido ao choque.
Lá
em cima, dois pontos azuis cintilavam ao mesmo tempo porque se aproximariam
nesse instante daquela área da suíte onde a luz que emanava do banheiro já
iluminava, revelando tudo. O brilho vermelho se pronunciou também e no segundo
seguinte estava lá. A face da múmia animada com movimentos vagarosos. O azul era
o brilho dos diamantes celestes que ficavam no lugar de seus olhos e o brilho
vermelho vinha do diamante fincado em sua testa. Estava a centímetros de Melina. Altíssimo.
Dois metros de altura certamente. Estendia seu braço esquerdo putrefato
lentamente na direção dela.
No
porão, Eleonor corria em direção à escada e ao pisar no primeiro degrau o ruído
atrás dela a impediu. Virou-se para ver. O piso começava a rachar. Rachaduras
brotavam e se alargavam. A mão constituída de restos de carne putrefata, ossos
a mostra e ataduras rompeu então a barreira brotando da superfície. Braços
cobertos por ataduras emergiam, cavavam. Dois braços, seis braços, quatorze
pares de braços. Os crânios atados e deformados surgiam, os corpos se erguiam e
saiam do chão por inteiro. Gritando,
Eleonor subiu correndo deixando o porão. Lá em cima bateu a porta de acesso,
trancou. Correu em direção à escrivaninha no canto, atirou a faca ao longe,
abriu a minúscula gaveta e resgatou um revólver. Foi inevitável não olhar para
fora. Toda a extensão do extenso gramado do bonito jardim se movimentava.
A
porta de acesso ao porão no salão recebia as violentas pancadas. O trinco
balançava, as múmias no jardim se levantavam, o trinco se rompia. As múmias lá
fora caminhavam em direção a casa. A porta do porão estava liberada. As mãos
cadavéricas quebravam os vidros e as múmias lá fora também invadiam a casa
adentrando pela janela.
Eleonor
apertou o revólver em sua mão e subiu a escada veloz como nunca antes. Ao
alcançar o corredor lá em cima, a imagem chocante. A porta da suíte se abria e
a múmia saía de lá carregando uma Melina desacordada em seus braços. Caminhava
a passos lentos. Eleonor se atirou dentro do closet ao seu lado antes que
pudesse ser vista. Leandra surgiu. Caminhava igualmente lenta atrás da múmia,
seguindo. Ela segura um vaso anil e agora o erguia. Estava prestes a atirá-lo
contra a múmia, contra aquele monstro horrível. Salvaria sua irmã. Mas Eleonor
a puxou pelo braço provocando um grande susto. Segurou o vaso. Agora ela a
mantinha refugiada consigo dentro do closet.
—
Deixe que a leve.
—
Mãe?!
—
Leandra, use sua cabeça. Eu não sei o que é tudo isso. Só o que sei é que eu preciso
acreditar em algo real. Agora é preciso ser fria. Isso vai dar em algum lugar.
Seguimos essa coisa e não fazemos nenhuma besteira precipitada. Do que adianta?
Nós somos atingidas também e ninguém é salva.
Eleonor
abriu a porta do closet antes apenas encostada vagarosamente. Levando Leandra
pela mão seguiram com cautela até a escada. Olharam lá para baixo. A múmia mais
alta do que todas as outras cruzava agora a porta levando Melina e as outras
saiam a acompanhando.
* * *
Eleonor
e Leandra chegaram aos arredores da tumba e estavam impressionadas com o clarão
turquesa que brilhava tão forte lá dentro e que era expulso pela entrada. Era
estranho caminhar por aquele corredor onde antes haviam seguido sem ver um
palmo a sua frente, agora absolutamente visível ao longo de todo o seu trajeto
graças ao clarão azulado que vinha da saleta ao fim. Eleonor entrou na saleta
como se sua vida dependesse disso e o cenário de calamidade a encheu os olhos
da pior maneira possível. À esquerda, o guia Anum estava de pé encostado na
parede com os braços levantados, acorrentado pelos pulsos por grossas correntes
de bronze. As múmias menores se amontoavam à direita e no centro da saleta o
foco da poderosa iluminação turquesa. A alta múmia. O brilho vinha dos
diamantes que ficavam no lugar de seus olhos. Brilhavam como a luz de dois
faróis com a capacidade de cegar. A múmia ainda tinha Melina nos braços, mas
ela estava acordada. Os olhos dela eram incapazes de fugir da direção da múmia.
Hipnotizada. Eleonor apontou a arma.
—
Sra. Eleonor! Não! Precisa entender... — Anum implorou.
—
O que vai me dizer? Hã? Que essa coisa quer a minha filha porque ela se parece
com a reencarnação do amor dele de vidas passadas? Isso não é porra de um
filme!
—
Não. ELE QUER MATÁ-LA! — Anum gritou o
mais alto que pôde. – Ele acha que Melina é a reencarnação da mulher que o
condenou, que o fez ser mumificado vivo. Os parentes dele deixaram a pintura da
mulher em seu sarcófago para que ele a encontrasse e se vingasse quando seu
lugar de descanso eterno fosse violado e ele voltasse à vida.
—
Largue a minha filha! — Eleonor gritou.
Mas
a múmia não parava de erguer Melina ainda mais no alto.
Ela
fez o disparo. Acertou o interior da boca da múmia e ela tombou caindo para
trás ainda segurando Melina que caiu por cima do corpo de ossos apodrecidos e
frágeis. As múmias aglomeradas ao lado lentamente se desintegraram. O brilho
dos diamantes foi apagado. Leandra liberou sua irmã das mãos em garra sem movimento,
mais ainda apertadas da múmia e as duas se abraçaram. Eleonor encarou a múmia aniquilada e estirada
no chão por alguns segundos. Pisou em seu crânio que espantosamente havia
tomado à consistência de finas cinzas e se desintegraram com imensa facilidade.
Ela recolheu os diamantes. Eleonor só tocou suas filhas nos ombros e exaustas
elas seguiam para fora da saleta.
—
Não é assim que termina! — Anum berrava. — Liberamos o mal. É incontrolável!
—
Escute bem, homem – Eleonor se permitiu retornar apenas para dizer suas últimas
palavras. Implacável. – É simples o que aconteceu aqui. Sequestradores
promoveram um atentado, foram malsucedidos, eu nunca contratei você e nenhuma
equipe para procurar nada. Eu não estou indo embora levando coisa alguma. E
você nunca vai se pronunciar sobre nada... A não ser que queira ser internado
em uma clínica psiquiátrica.
* * *
À
beira da piscina do resort seis estrelas naquele dia ensolarado, Melina estava
encantada pelo menino loiro de cinco anos de idade que ouvia uma música alta em
um radinho antiquado sentado ao seu lado. Era Gene Kelly cantando “It’s
Wonderful”.
—
Que música mais bonitinha — Melina disse sorridente e acabou fazendo com que o
menino corresse para o interior do hotel levando seu radinho, envergonhado.
No
momento em que o menino subiu a escada o som da ferramenta do lapidador atingindo
o diamante roubado da múmia por Eldora ecoou imediatamente seguido do estrondo
de muitas pancadas que mais parecia o som de muitas coisas pesadas atingindo o
chão. O menino parou, olhou para trás, coçou sua bochecha, confuso. A música simpática
em seu radinho não cessava. Ele resolveu continuar. Ao chegar ao corredor do
primeiro andar logo viu a camareira atirada no chão com sua face esverdeada e
deformada. Ele podia ter gritado, chorado, mas continuou a andar, coçou sua
bochecha mais uma vez e foi até o quarto onde os seus pais estavam.
Ao
entrar encontrou seu pai e sua mãe igualmente atirados no chão com suas faces
distorcidas. A confusão impedia que ele necessariamente se apavorasse. Correu
até a janela. Ao olhar por ela, lá embaixo, viu os corpos boiando na piscina e
todas as outras pessoas à beira dela estáticas. Uma revoada inacreditável de
gaivotas despencava do céu claro naquele instante e as aves brancas atingiam o
chão, mortas.
Um
barulho aconteceu atrás dele, mais alto do que a música alegre em seu radinho.
Ao se virar, no entanto, tudo o que ele teve tempo de ver foi a comprida
atadura de linho encardida, pesada de terra seca, que agora se movimentava
desaparecendo pouco a pouco no interior do closet escuro.
Como
um gatinho curioso que segue uma linha de barbante em movimento, o menino,
segurando seu radinho, seguiu a atadura e adentrou o closet engolido pela
escuridão.
A
voz de Gene Kelly assobiando contentemente no radinho foi se tornando mais e
mais baixa.
Wellington
de Sousa Oliveira, 25 anos, mora em Cabo Frio/RJ e é
estudante de graduação em curso Letras/ Inglês. É autor publicado das obras Sobre Mães, Filhos, Esposas & Maridos
(Editora APED), Ghattu (Editora
Multifoco), além de contos dos mais variados gêneros e crônicas em coletâneas.
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