O MONSTRO DE LULWORTH COVE - Conto de Terror - Adnelson Campos



O MONSTRO DE LULWORTH COVE

(Adnelson Campos, Menção Honrosa no Concurso Bram Stoker de Contos de Terror)


O velho senhor aguardava pacientemente a chegada do bisneto que fora até a praça de cinemas comprar ingressos. Parecia indiferente ao tumulto gerado pelas pessoas que lotavam o lugar. A lembrança do filme assistido há poucos minutos deu lugar a imagem da fera de boca aberta e com os dentes cheios de sangue saltando em sua direção.
O pensamento foi interrompido pelo abanar dos bilhetes. O gesto do rapaz provocou um sorriso imediato no bisavô.
- Pronto, aqui estão!
- Muito obrigado, meu filho!
- Vô, me diz uma coisa, não é exagerado assistir um mesmo filme oito vezes?
- Ele me traz boas lembranças e é a oportunidade de resgatar um pouco do amor que já ocupou este desgastado coração.
- Então a Rose DeWitt lhe despertou paixão?
- Ela me fez lembrar certa pessoa.
- Espere aí, esta pessoa não é a minha bisavó?
- Você ainda viveu pouco, meu filho. Não há como comandar o coração, escolher o sentimento que temos pelas pessoas. Os muitos anos passados ao lado de sua bisavó foram felizes, mas antes dela, conheci uma garota, numa viagem entre a Inglaterra e a América do Sul. Em 1913, um ano depois do naufrágio do Titanic.
- Esta história está ficando interessante. Desculpe-me, mas sempre achei o senhor um pouco frio e não imaginaria uma história de paixão do Sr. Liam O’Connell.
- Talvez por que esta história não seja mais de terror do que de amor.
- Sempre senti inveja de quem teve a oportunidade de ouvir histórias sobrenaturais, contadas a luz de velas ou de uma fogueira pelo pai ou pelo avô.
- Só que a minha não é invencionice e talvez seja melhor que você não a conheça.
O rapaz continuou a acreditar que fosse confusão mental do velho. Talvez os filmes assistidos repetidas vezes lhe dificultassem diferenciar o real do imaginário.
- Está tarde, vô. O shopping vai fechar. E isto já não é mais hora de criança como o senhor estar na rua. Vamos descansar, quem sabe a Kate Winslet aparece no seu sonho.
- O nome dela era Christina Fisher.
- Que coincidência! É uma parte do nome da minha garota: Joyce Christina Fisher Baltimore.
- Talvez não seja uma mera coincidência.
- Da forma que falou, até senti um arrepio!
- Talvez seja melhor que você conheça a história. Você lembra do lugar onde seu pai morou, à beira mar?
- Sim, nunca entendi por que decidiram mudar. Eu gostava tanto do lugar!
- Me leve até lá!
- Mas vô, são muitas horas de viagem, só chegaremos ao amanhecer.
- É melhor que o Sol já tenha nascido até lá. Será mais seguro.
- Minha mãe vai me matar por isso! O que eu não faço pelo senhor!
O’Connell estava ansioso e preocupado com a informação do bisneto. Não resistiu ao cansaço. Acordou com o rapaz lhe oferecendo um copo de café e rosquinhas. O velho resmungou alguma coisa em relação ao copo, preferia sua velha caneca.
Liam pediu que fossem até a enseada. A areia pedregosa e escura lembrava uma praia, que frequentava quando criança em Lulworth Cove. Talvez por isso o pai de Liam O’Connell houvesse escolhido o lugar para morar. A casa deles, mais simples ficava no final da praia, a esquerda de quem do mar olha. Bem no meio da praia havia uma casa de tijolos à vista, bem construída no melhor estilo inglês.
- Veja, garoto! Esta casa de tijolos a vista era a do pai de Christina. O velho Fisher fez jus ao sobrenome, abriu uma companhia pesqueira e durante um bom tempo levou uma bela vida, até que todos descobrissem o segredo que guardavam.
- Eu lembro da casa, quando pequeno. O jardim era mais vistoso, não havia muros. A grama era muito bem cuidada. Veja! Agora lá funciona um restaurante. Quer dar uma olhada?
Liam assentiu com a cabeça. Apanhou a bengala e caminhou lentamente, apoiando-se no braço do bisneto.
- Lá havia um balanço. Da rua eu acompanhava o vai-e-vem de Christina e seus longos cabelos, quase ruivos, soltos ao vento. Me assustava quando a fera rosnava.
- Então isto era o que o aterrorizava. Um simples cão?
- Não um simples cão. Acredito que preciso voltar no tempo, contar-lhe o que aconteceu a partir daquele verão de 1913. Mas antes vamos entrar.
O jovem bateu à porta. Uma velha senhora atendeu, informando que o restaurante ainda estava fechado. Liam se desculpou e disse que o jovem estava prestando um favor a um velho em seus últimos momentos de vida e que gostaria de satisfazer um desejo de infância, de conhecer a mansão dos Fisher por dentro.
- Então o senhor conhece a mansão faz muito tempo?
- Desde 1915, quando a construção foi finalizada.
- Era vizinho? – questionou a mulher.
- Desde que chegamos da Inglaterra.
- Puxa! Tanta gente conhece a casa hoje em dia. Por favor, entrem. Só desculpem pela falta de arrumação. Ontem atendemos até tarde.
O ambiente era decorado como no começo do Século XX. Os móveis perfeitamente conservados, as pinturas na parede eram da mesma época. Os olhos cansados de O’Connell fixaram-se no porta-retratos que repousava no anteparo sobre a lareira. O jovem repetiu os gestos do bisavô, olhando a fotografia com o queixo caído.
Na imagem colorida, uma jovem aparentando idade entre dezesseis e dezessete anos, usando um vestido vermelho com detalhes dourados sentava-se na praia de cascalho escuro. Parecia pensativa. Os longos cabelos, quase ruivos, lhe cobriam parte do rosto, soprados pelo vento. A pele clara das pernas e braços deixados a mostra pelo vestido evidenciavam o frio que dominava o ambiente, mesmo num dia claro de aparente verão.
- Esta é Christina Fisher, uma das filhas do homem que construiu a casa. O senhor a conheceu? – perguntou a velha senhora.
- A senhora deve estar enganada, este é um retrato de minha namorada, Joyce. Acho que a fotografia foi tirada aqui mesmo. Vejam o cascalho escuro e o mar calmo!
- Não, meu garoto, a senhora tem razão. Esta é a praia de Lulworth Cove, no sul da Inglaterra. Reconheço o rochedo ao fundo.
- Espere aí, nessa época já haviam fotografias coloridas?
- Poucas, mas haviam. A senhora pode fechar a porta por um instante e depois acender a luz?
A mulher fez como Liam pediu. Ela já sabia qual seria o resultado. Com a luz artificial a imagem perdeu o colorido, recuperando suas cores quando a luz natural voltou ao ambiente.
- Esta era a técnica que pouquíssimos conheciam na época, tão comum hoje.
- Mas a roupa não é um pouco ousada para a época? – insistiu o rapaz.
- A coragem de Christina era algo que impressionava a todos, a beleza também. As mulheres são mais lindas aos dezessete. Christina era ainda mais especial.
- O que a senhora sabe mais sobre os Fisher? – perguntou o jovem.
- Não muita coisa. Contam que a bela jovem era amaldiçoada, possuía uma cruz a carregar. Melhor não falar mais sobre isso. Dizem que os fantasmas de Christina, seu pai e dos outros dois irmãos ainda rondam a casa. Outros dizem que o monstro ainda surge em determinadas épocas do ano e quando ele vem, pessoas começam a desaparecer e somente são encontrados os ossos, frescos e roídos por dentes afiados. Há quem diga que no quarto do filho mais velho de Fisher, em noites de Lua Nova, escorre sangue pela parede.
- Pelo jeito gostavam de apavorar as crianças em sua época vovô!
- Acredite, meu jovem. Havia algo de estranho nesta família.
- Vamos Henry! Obrigado, senhora! Foi muito gentil em nos permitir a entrada.
- Não há de que! Qual o seu nome mesmo?
- Liam O’Connell
- O’Connell? Foi um O’Connell que arruinou a vida dos Fisher. Como teve coragem de voltar aqui?
- A história tem várias versões, depende de quem a conta. Pretendo agora contar a minha para o meu bisneto. Tenho certeza que não a convencerei do contrário, já não consegui mudar a opinião de outros na juventude. Mesmo assim, obrigado.
O’Connell respirou fundo a brisa que soprava do mar e começou a contar a história que dividira com poucos, até então. O rapaz ouvia tudo atentamente, sem imaginar que sua vida seria impactada pelas revelações de seu bisavô.
Liam completara seus dezoito anos. Depois da morte da mãe, ele, o pai e dois irmãos mais novos resolveram tentar a vida na América. Não sabiam, mas a decisão foi acertada, pois no ano seguinte explodiria a Primeira Guerra Mundial, evento que modificou a vida de muitas pessoas da família que lá ficaram.
Embarcaram em um navio da Royal Mail Lines. Liam e sua família trocaram parte da passagem por serviços, enquanto a Família Fisher, duas irmãs gêmeas e um rapaz mais velho, viajou como convidada da Companhia Marítima, tendo em conta a influência de Fisher entre os agentes marítimos da época. O novo negócio de Fisher na América do Sul traria vantagens para a Inglaterra também.
Liam ajudava na arrumação das cabines, assim, conheceu a maior parte dos passageiros. Visitou quase todos os lugares do navio, menos dois pontos. A cabine dos Fisher e um dos boxes do compartimento de cargas. Vários marinheiros diziam que à noite, no compartimento de cargas podia se ouvir uivos e arranhões nas chapas de aço da estrutura. Havia ordens expressas do capitão de que ninguém se aproximasse do local.
A única pessoa que entrava no local era Christina Fisher. Levava uma cesta e provavelmente alimentava a criatura que lá ficava. Foi numa dessas ocasiões que Liam a viu pela primeira vez. Depois disso, sempre que possível, esperava, escondido atrás de algumas caixas, pela passagem da garota. Embora tenha ensaiado várias vezes, nunca teve coragem de abordá-la durante o período da viagem. Num desses momentos, a garota o percebeu, lhe direcionou o olhar e sorriu. Foi o bastante para confirmar o sentimento dele.
Na véspera da atracagem no porto de destino, houve um incidente a bordo. Um dos marinheiros que tomava conta dos compartimentos de carga havia desaparecido. Quase todos desconfiavam de queda ao mar. Tiveram certeza de que não foi o que ocorreu quando encontraram sua roupa estraçalhada e manchada de sangue dentro de um dos botes salva vidas. Num outro barco, encontraram ossos roídos. Havia pelos longos no local também. Acreditaram que algum cão subira a bordo, quando o navio ainda estava atracado no porto. Um cão não poderia ter feito todo aquele estrago. Também não havia uma fera embarcada. Era o que se imaginava. Procuraram e nada encontraram.
Quando desembarcaram, o jovem O’Connell pensou que nunca mais fosse reencontrar Christina. Se enganou, se tornaram vizinhos, estudando na mesma escola. A menina falava pouco, se escondia por detrás dos longos e lindos cabelos. Se isolou quando as primeiras mortes aconteceram. Nunca mais cruzou o olhar com O’Connell.
Nesta época, Liam auxiliava o padre na igreja da vila. O Padre João Bosco era um estudioso de fenômenos sobrenaturais, segundo ele, causados pela presença do Diabo na vida da comunidade. Era um exorcista.
Rastreando as pistas chegou a uma conclusão: o demônio aparecera na figura de um cão. O Sinistro havia escolhido a pacata enseada para espalhar o terror. Cada descoberta ele dividia com Liam. Segundo João Bosco, ele tentou estabelecer um vínculo entre os novos moradores do lugar e o monstro. Desconfiou dos O’Connell, mas eles eram católicos fervorosos. Já os Fisher, pareciam guardar segredos. O padre escreveu uma carta para a igreja de Lulworth Cove. Recebeu uma resposta.
Segundo o relato do vigário octogenário, coisas estranhas aconteciam no lugar há séculos. Suspeitava-se que existisse um lobisomem, pelas características de como fazia suas vítimas. Mas não combinava com os relatos de livros antigos, em que a mistura de homem e lobo surgia nas noites de lua cheia. Todos os crimes aconteciam em noites sem lua. Quem avistou a criatura, a identificou como um cão enorme. Havia suspeitas, porém nunca conseguiram provar nada contra uma família tradicional. Porém, quando decidiram deixar a cidade e se mudar para a América do Sul, as mortes nunca mais aconteceram.  Os filhos de Adam Fisher eram amaldiçoados, segundo o padre inglês.
O padre João Bosco não tinha mais dúvidas e passou a tramar armadilhas para dar fim aos Fisher e garantir a volta da tranquilidade à Enseada. Liam tentava convence-lo do contrário, o sentimento que nutria pela jovem Christina o empurrava neste sentido. Não havia maldade no rosto dela.
O padre João Bosco explicou para ele sua teoria. “A jovem Christina possui um fardo a carregar, a missão dela é cuidar do cão. Ela não tem opção. Já a outra, a gêmea, ela tem pacto com o sinistro. Um dia vai gerar o monstro que perpetuará a espécie”. Liam questionou como uma mulher e um cão poderiam gerar descendentes. Bosco afirmou que o cão não era sempre cão, nem sempre o demônio. Era o irmão mais velho. Se transformava quando chegava a Lua Nova. A única forma de libertar a todos, era cravar no peito do primogênito de Fisher uma bala de prata, depois nos descendentes eventualmente gerados, pois todos carregavam a maldição.
Bosco fundiu algumas peças de prata em forma de bala e carregou os cartuchos em sua espingarda. E armou emboscada. Porém, quando iria atirar, foi visto pelo filho de Fisher, que repentinamente transformou-se na fera e agora parecia incontrolável. O cão gigante, apanhou o padre e o fez em pedaços. Enquanto era estraçalhado, ele gritava palavras de exorcismo, até que o sangue o sufocou e o calou de vez. O velho Fisher, que também presenciava a cena, começou a correr. De nada adiantou, com apenas algumas patadas, foi nocauteado e dilacerado pela fera descontrolada.
Liam apanhou a arma e fez pontaria. Quando o monstro saltou em sua direção, apertou o gatilho e por sorte, atingiu o alvo. O cão transformou-se em homem e caiu inerte.
Depois daquele dia, a irmã de Christina desapareceu. Christina culpou Liam pela desgraça da família e nunca permitiu que ele explicasse o que havia acontecido. Ela fechou-se na casa o máximo que pode, nunca se relacionou com ninguém, não deixou descendentes, morreu aos 81 anos, em 1987. Dizia o padre de Lulworth Cove, que a cada duas gerações os Fisher teriam entre seus descendentes uma nova fera. Christina não queria dar continuidade a maldição. Porém, sua irmã não tinha o mesmo pensamento e garantiu a descendência dos Fisher.
- Espere aí! Quer dizer que a minha Joyce pode ser uma descendente dos Fisher?
- Isto, meu filho. Talvez uma bisneta de Joyce Fisher, irmã de Christina.
- Vejamos. Se um novo monstro nasce a cada duas gerações...
- Sim, um filho da sua Joyce pode ser um novo cão sangrento.
- Vô, eu iria contar no jantar de hoje à noite. Eu e Joyce...vamos ter um filho!


Adnelson Campos é adminis­trador, especialista em gestão empresarial pela ESAG/UDESC e especialista em Gestão e Audi­toria Ambiental pela FUNIBER. Trabalha na Petrobras desde 1986, onde exerceu diversas fun­ções gerenciais. Atualmente é ge­rente de manutenção da Unidade de Industrialização do Xisto em São Mateus do Sul (PR). Casado com Denise, pai de Lucas, Viní­cius e Helena, começou a escre­ver histórias de ficção em 2012, com diversos textos selecionados e publicados em antologias impres­sas e digitais. É autor do livro “Histórias que as estrelas contam – um pouco de astronomia para adolescentes”. www.adnelsoncampos.com.br




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