O SACRIFÍCIO PARA O CHUPA-CABRA - Conto de Terror - Henrique Santos



O SACRIFÍCIO PARA O CHUPA-CABRA

(Henrique Santos, Menção Honrosa do Concurso Literário Bram Stoker de Contos de Terror)

 

Quando criança, eu costumava sentar na calçada junto com os adultos e com os velhos para ouvir suas histórias e lendas. Como eu queria que eles estivessem mentindo! O curioso nisso tudo é que, para o meu azar, eu não aprendia as valiosas lições que nelas continham. Na hora de meu deitar, quase sempre eu ia dormir com medo. Acho que por que no fundo eu sabia que essas terras têm dessas coisas. O interior onde eu moro é cheiro de segredos, e eu descobri isso da pior forma possível.

Foi naquela maldita noite, depois de brincar com os amigos. Eu estava indo para o curral com meu vô, que andava lentamente com a ajuda da bengala, quando ele me começou a me contar uma história que tinha acontecido com ele:

—Meu filho, existe muita coisa que você não sabe. Algumas delas, graças a Deus, a gente pode evitar; outras, não há como fugir. É o caso do chupa-cabra.

Desconfiado e já começando a ter medo, eu perguntei:

—Como assim, vô?

—A noite e seus animais guardam inúmeros segredos. Seus bichos são perigosos e obscuros. Eles guardam os mistérios da noite. Alguns são trazidos pelas fases da lua, como a de hoje; outros, pelos homens. Por isso, respeite a noite e nunca faça mal às suas criaturas.

—Explica melhor, vô.

—Nunca mate um morcego ou uma coruja, aliás não mate nenhum animal à noite, nem pra comer.

—Por quê? —perguntei gaguejando.

—Mistérios dessas terras, meu filho. A morte deles traz os bichos das sombras, além de mal agouro!

—Quais bichos, vô?

—Espantalhos, lobisomens, carrancas, visagens, almas de bicho, chupa-cabras e outras criaturas que você nunca ouviu falar.

—Deus me livre, vô! E esses bichos matam?

—Podem matar sim, dependendo do que você fez. Eles são muito perigosos.

—Mas, vô, o senhor realmente já viu algum bicho desses? —perguntei querendo não acreditar nessas coisas.

—Sim. Uma vez eu atraí um chupa-cabra para essas terras por ter matado uma coruja.

—Como foi isso, vô?

—Meu filho, o interior do Ceará é repleto de mistérios e coisas sombrias. Eu sabia que não era bom matar corujas, pois meu pai já tinha me avisado. Mas eu era teimoso. Uma vez eu e os filhos do Zé das tapiocas saímos para caçar passarinhos para vender na feira de domingo. Lembro como se fosse hoje. Era tardinha, acho que seis horas, a hora do anjo, e o céu estava vermelho cor de sangue, o que já é um mal sinal. Foi nesse momento que avistamos uma coruja pousar no toco da cerca de arame farpado. Eu e os outros estávamos atentos com baladeiras nas mãos. Lembro de todos terem hesitado em atirar nela, mas eu, querendo mostrar coragem, mirei na alva coruja e sem demoras atirei. A pedra foi certeira. De longe se viu apenas ela caindo e uma pena voando com o vento. "Acertei!", eu gritei. Logo fomos à procura dela. Pelo tiro, ela com certeza tinha morrido, mas mesmo assim dava pra tentar vender pro Seu Luís, o macumbeiro.

—E aí, o que aconteceu depois, vô?

—Procuramos ela, mas não encontramos nada. O que era estranho, pois todos viram que ela tinha caído próximo ao toco onde estava. Mesmo assim continuamos a procura. Nesse instante o céu sangrento já tinha dado lugar à noite de lua, mas a gente ainda estava procurando a rasga-mortalha em meio ao matagal. Foi aí que à nossa frente, a uns 10 metros de distância, vimos algo se mover por trás dos matos do outro lado do riachinho. Logo ficamos animados, pois a gente já estava desistindo da procura. Porém, nossa alegria durou pouco, porque o que estava no mato nos observando era outra coisa. Meu Deus! Essas coisas existem! Me arrepio só de lembrar. De trás do mato saiu uma coisa com cerca de 2 metros de altura, branca, sem braços ou pernas, com olhos grandes e pretos e com o que parecia ser um bico curvado na frente. Na hora a gente pensou que era algum dos meninos vestido com um manto branco fazendo alguma brincadeira, mas a coisa, quando se moveu em nossa direção, flutuou no ar atravessando o riachinho e pousou no outro lado. Todos nós ficamos imóveis e com olhos arregalados. Aquilo foi pavoroso. O grito em seguida foi inevitável. Assim que pensamos em correr, a coisa abriu suas asas brancas e imensas e veio voando em nossa direção. Nós corremos como nunca. Graças a Deus ela não conseguiu pegar ninguém.

—Essa coisa era o chupa-cabra?

—Não. Assim que eu contei pro pai, ele disse que era uma alma de bicho que a gente tinha visto.

—Alma de bicho?

—As almas de bicho são criaturas da noite que marcam as pessoas que fazem mal a algum animal, segundo meu pai disse já aflito no momento em que confessei o que eu tinha feito. A aflição dele logo deu lugar à fúria. Levei uma surra por ter feito o que não devia, mas o que mais me doeu foi o desespero dos meus pais, temendo o que estaria por vir. A mãe na mesma hora me levou para a rezadeira que tentou de tudo para tirar a mira da alma de bicho de mim, mas não conseguiu: eu continuava marcado. Na fazenda, o pai, no curral, queimou palha benta de Dia de Ramos e chifre de boi para afastar os bichos da noite ou coisa pior. Em cada porta e janelas, ele com carvão desenhou uma grande cruz.

—E o senhor, vô?

—Eu era apenas um menino ingênuo e teimoso. Estava completamente perdido sem saber o que fazer, aliás nem sabia o que estava acontecendo. Eu só entendi que algo ruim ia acontecer comigo e que os adultos sabiam dos mistérios dessas terras, mas não contavam às crianças. Em nenhum momento meu pai falou que pelo o que fiz à coruja, eu iria atrair um chupa-cabra, até por que uma revelação dessa me deixaria mais em pânico.

—E depois?

—As horas foram se passando. Eu e a mãe já estávamos em casa com o pai. Já era bem tarde, e não tinha mais o que fazer: só esperar que Deus ouvisse as nossas preces. O pai e a mãe estavam no quarto e eu na rede da sala, foi quando terminei de rezar que avistei um cassaco, um bicho que o povo da cidade chama de gambá. Ele estava imóvel entre os caibros de carnaubeiras do telhado me olhando e mostrando com raiva os dentes. O mais estranho é que ele tinha olhos vermelhos como chamas, parecia um demônio me agourando. Imediatamente gritei pelo pai. Com meu grito, o animal fugiu para as sombras soltando um odor insuportável pela casa. Quando meu pai veio, disse que depois de matar um animal da noite, um outro aparece para reconhecer quem fez a maldade. Era o primeiro sinal. Quando o pai terminou de falar, meu nariz começou a sangrar e logo em seguida vomitei no chão mesmo, pois não deu tempo nem de sair da rede. Nesse momento, a mãe correu para me abraçar. Os dois já estavam desesperados com a situação, porque não tinham mais como me ajudar. "Passar mal é o segundo sinal", disse o pai. Quando a mãe foi fazer um chá enquanto o pai rezava um ofício secreto de Nossa Senhora que ele escondia atrás do quadro da Virgem, ouvimos um grande mugido de dor vindo do curral. O pai desesperadamente pagou a espingarda, abriu a porta de trás e saiu correndo para lá, e eu mesmo passando mal também fui. Como você pode ver, o curral fica longe da casa, então depois de alguns minutos chegamos lá e vimos a pobre vaca coberta por morcegos que sugavam seu sangue. A infeliz corria para todos os lados e se roçava nas paredes do curral para espantar aqueles ratos com asas, mas quanto mais ela matava alguns, mais apareciam para chupar seu sangue. Na hora, peguei um cabo para espantar os morcegos, mas o pai me impediu, dizendo que era o terceiro sinal, o sacrifício de um animal da pessoa que tinha feito o mal a um bicho da noite. O boi e a ovelha estavam descontrolados. Não havia morcegos neles, mas eles pareciam sentir que algo sombrio estava acontecendo. O pai, mesmo chorando com pena da vaca, retirou os outros dois bichos e trancou a porta do curral com a vaca dentro.

—Meu, Deus!

—A culpa me corroía por dentro. Tudo aquilo era minha culpa. Depois da gente voltar para casa, lembro de ter visto o pai de cabeça baixa com as mãos no rosto e cotovelos na mesa da cozinha. Ele estava desesperado. Minha mãe envolvendo minha cabeça em seus braços, rezava chorando. Alguns instantes depois, ela perguntou para o pai sobre a ovelha e ele disse que já tinha amarrado ela aos pés do espantalho. Nesse momento, um forte vento passou pela casa e todas as lamparinas se apagaram misteriosamente. O sopro da escuridão, como ela disse aterrorizada. Era o quarto e último sinal. O pai se levantou nervoso com o susto e perguntou "viu se está tudo trancado, Odecilha?” e ela respondeu que sim. Eu estava apavorado, aflito e com pena de meus pais. Não sabia o que estava para acontecer. Foi aí que meu pai disse "ele vai tentar entrar na casa!”. Ouvindo isso, perguntei de uma vez quem estava vindo e foi quando ele enfim me revelou que um chupa-cabra tentaria entrar em casa para me pegar. Foi difícil conceber a ideias que essas coisas existem. Fiquei sem saber como reagir. O medo tinha me dominado por completo. “Você está usando o seu escapulário?", o pai perguntou; eu, balançando a cabeça nervoso e gaguejando de medo, respondi que sim. Em seguida, ele trancou minha mãe no quarto e não deixou que ela me levasse para lá. “Você sabe que ele não pode fugir”, ele gritou. Instantes depois do vento, algo bateu na porta da cozinha e começou a tentar quebrá-la. “Ele chegou, meu filho! Deus tenha piedade de nós!”. Rapidamente eu e o pai corremos para a cozinha. Cada vez que a criatura batia na porta, minha mãe, no quarto, fazia uma prece a Deus. Olhei para o pai e vi suas mãos tremendo segurando a velha espingarda. Sua respiração estava como a minha, muito ofegante, assim como o coração que parecia que ia explodir de tão forte que batia no peito. “Não posso atirar”, ele confessou. Pelo que entendi, se ele tirasse, o animal ficaria descontrolado e poderia tentar entrar pelo telhado, o que seria o meu fim. Segundos de pânicos depois, o bicho parou de tentar quebrar a porta e começou a colocar seu focinho nas brechas. Dava para ouvir a respiração e o rosnar da criatura. O chupa-cabra estava sentindo o meu cheiro. Ele sabia que eu estava lá, com medo e com culpa. Coisa assustadora! Nunca havia passado por tanto pânico na minha vida. Lembrar daquela escuridão da casa e do som do rosnar daquela criatura na porta é perturbador. Depois de alguns instantes o monstro se distanciou da porta. “As cruzes funcionaram”, disse o pai um pouco mais aliviado. Eu, em estado de choque, nem tinha notado que tinha pegado uma faca para me defender e que estava com as pernas bambas.

—O chupa-cabra tinha ido embora, vô?

—Não. O silêncio só durou alguns instantes, pois logo ouvimos o berro de dor da ovelha. O pai foi correndo para a porta da sala, entregou espingarda para mim e disse que no momento em que a ovelha parasse de berrar, ele iria abrir a porta e eu tinha que sair, ficar de cara com o mostro, dar um grande grito encarando a fera e tirar para cima, pois só dessa forma o chupa-cabra saberia que tinha levado a vida da ovelha no lugar da minha e assim iria voltar para as sombras de onde veio. Era um tipo de ritual, coisas que os velhos conhecem e escondem dos netos. “Não há outra forma de me livrar da fera”, dizia o pai gritando. Tendo ouvido isso, fui tomando coragem para fazer tal ato. Segundos depois, a ovelha parou de berrar. O pai gritando comigo, rapidamente abriu a porta; eu então me benzi, segurei firme a espingarda e corri em direção ao espantalho onde estava presa a ovelha. Chegando lá pude ver a poucos metros de mim aquela criatura monstruosa de cor escura, orelhas pontudas, focinho longo, com grandes olhos vermelhos e garras estraçalhando o resto da ovelha...

Nesse momento, chegando em frente ao curral, o vô interrompeu sua história e ficou em silêncio. Sua expressão logo mudou, suas mãos começaram a tremer e ele deixou cair sua bengala. "O que foi, vô?". Ele não respondeu, só apontou para cima da porta do curral e então eu vi um grande cassaco de olhos vermelhos me encarrando. O vô lentamente se virou para mim e já lacrimejando viu meu nariz sangrar. Eu, apavorado, já vomitando de cabeça baixa, vi o vô devagar abrir o curral, acender a luz e pôr as mãos na cabeça em desespero. Sua vaca estava sendo atacada por morcegos. “O que você fez?”, ele gemendo perguntava pra mim sem parar. Eu, já chorando de medo e remorso, implorei o perdão e a ajuda dele, foi quando passou um forte vento e a única luz do curral misteriosamente queimou. Tudo ficou na total escuridão. Até a lua se escondera nas nuvens carregadas. Chorando desesperado e ainda passando mal, eu gritava pelo vô que eu ouvia chorar e soluçar à minha frente. Com a tontura e o pânico, perdi as forças das pernas e caí de joelhos, foi quando senti um rosnar quente e ofegante atrás de mim e ouvi logo à minha frente a voz rouca e triste do vô dizendo “me perdoa, meu filho, mas eu vendi a última ovelha”.

 

Luiz Henrique Cardoso dos Santos, que assina simplesmente Henrique Santos, é um escritor de contos e romances, formado em Letras Português e Literaturas e especialista em Ensino de Literatura. Em 2016 venceu o Concurso Literário da SEDUC-CE, tendo seu primeiro romance O Segredo do Cemitério São João Batista publicado. Em maio de 2017 teve seu conto Almas da Lua publicado na Antologia de Contos A Arte do Terror Vol. 4. Em novembro do mesmo ano teve os contos Mamãe e A Sinfonia Amaldiçoada que Criei publicados na Antologia de Contos A Arte do Terror Vol. 5.

 

 


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