RETALHOS DE ESPELHO - Conto de Terror - Buno Bucis



 

RETALHOS DE ESPELHO

(Buno Bucis - 17º Lugar no Concurso Bram Stoker de Contos de Terror)

 

Michel acordou de repente. Devia ter dormido menos de um segundo, mas sabia que qualquer piscada na madrugada era perigosa. Ele não podia parar o caminhão, a entrega da mercadoria já estava atrasada, mas a estrada era reta, em bom estado e de mão única... um convite para o sono. Ele viu um posto de gasolina mais à frente. O melhor era parar para um café. Na verdade, era melhor ter seguido adiante, mas Michel não sabia disso ainda.

O posto de gasolina era pequeno. As luzes estavam todas acesas e o silêncio imperava. Ele não viu ninguém. Esses frentistas de postos 24 horas passam todo o tempo dormindo na loja de conveniência, mesmo. Michel desceu do caminhão e se espreguiçou. A noite estava fria. Garoava. A chuva, no entanto, não fazia barulho. Nada fazia barulho.

Michel catou a jaqueta embaixo do banco e trancou o caminhão. Ele caminhou apressado ao redor do posto à procura do banheiro. Não encontrava. A parte de trás do prédio em que funcionava a borracharia do posto não tinha iluminação, mas de uma porta mais à frente vinha uma fraca luz. Ele caminhou até lá na fina calçada de pedra. A garoa se intensificou e se transformou em uma chuva leve, que lavava aos poucos o sono de seus olhos. O vento que vinha da mata ao redor do posto fazia com que ele morresse de frio.

Ele se aproximou da luz, a porta estava entreaberta. Uma folha de papel desbotada e cor-de-rosa dizia mulheres. Ele procurou uma outra entrada próxima e semelhante àquela que dissesse homens, mas não havia nenhuma. Michel voltou para a porta iluminada. Ele encostou dois dedos nela e a abriu vagarosamente. A porta de metal emperrou em um dos azulejos e o barulho do alumínio arrastando na cerâmica ecoou por todo o banheiro.

O lugar era muito simples, tinha duas cabines e uma pia. Esta última tinha cacos do que havia sido um espelho fazendo um fragmentado reflexo lua e da chuva fina que passava pela porta. Michel olhou ao redor, então falou:

— Tem alguém aqui?

Nada respondeu. O frio parecia dobrar a cada minuto. O caminhoneiro recomeçou:

— Com licença. Eu não consegui encontrar o banheiro masculino...

Como não obteve novamente nenhuma resposta, Michel tomou a liberdade de usar uma das cabines. Ele levantou a tampa da privada e olhou para cima. Deixou a porta da cabine aberta para caso alguém entrasse pudesse vê-lo ali. Enquanto a urina batia na louça, ele ouviu um estalo. O susto o sobressaltou, Michel olhou para trás, mas não viu nada. Quase mijou no pé.

O caminhoneiro ficou parado, olhando a porta do banheiro, mas o silêncio tinha voltado ao seu lugar. Depois de algum tempo ele voltou a olhar para cima e a urina voltou a descer. Michel deu descarga e foi até a pia, porém a carteira dele caiu do bolso da jaqueta no meio do caminho. Ele abaixou-se para pegar os documentos. Ele fazia o caminho para apanhar a carteira, mas outra mão foi mais rápida ao esticar em sua direção.

— Minha Nossa Senhora!

A porta da cabine ao lado havia se aberto. Uma jovem negra, de pouco mais de vinte anos, olhava para ele com os olhos vidrados. Ela estava deitada no chão, ao lado da privada. A mão que encontrou a de Michel era fina, excessivamente magra. A palma estava repleta de um sangue muito grosso e pálido.

— Moça, você me assustou!

A única resposta que ele teve foram os olhos da mulher se focando, ainda que por um breve segundo, em seu rosto. Ela chegou a abrir a boca, mas tudo o que saiu dela foi uma fina gota de sangue.

— Jesus! Você está bem?

Ela fechou os olhos e balançou de leve a cabeça. Um acesso de tosse tomou-a. Gotas de sangue pingaram em sua mão. Michel se aproximou dela e a envolveu com o braço. A garganta dela roncou e mais sangue saiu de sua boca. Involuntariamente o catolicismo do caminhoneiro o fez fazer o sinal da cruz.

— o que e-está acontecendo comi-igo?

— Eu não sei. Mas tudo vai ficar bem.

A pele da mulher estava quente, não só como se ela tivesse febre, mas como se estivesse sendo cozida de dentro para fora.

— Eu vou buscar uma água para você, tudo bem?

Michel saiu em busca de um bebedouro, de um tonel, algo que reservasse um pouco de água limpa para aquela mulher. A chuva caia irônica…

Havia uma mangueira laranja e uns sacos de combustível jogados no chão. Ele posicionou a mangueira lá dentro. O fio d' água desenrolava lento, o que permitiu ao caminhoneiro olhar o mapa da região pintado na parede próxima. Ele procurava um hospital, aquela mulher precisava de tratamento. Não encontrou nenhum. Michel voltou ao banheiro. Olhou para a pia e pensou em quanto foi idiota, poderia ter pego a água ali mesmo.

Quando ele voltou, a mulher já tinha se arrastado para sair de sua cabine e estava no chão do banheiro, deitada, sangrando e em uma posição como se estivesse sendo crucificada por um demônio invisível.

A alusão ao inferno apavorou Michel. Ele tirou o chapéu que sempre usava desde os tempos que era menino, portanto sempre mal encaixado em sua cabeça. Dentro dele uma Nossa Senhora envolvida por nuvens brilhantes o olhava. Olhava por todos.

Mais uma vez Michel se benzeu e voltou a colocar o chapéu. Ele levantou a cabeça da mulher e jogou parte da água no rosto dela, limpando o sangue que secava no canto da boca.

— ê-estou com fome.

— Fome? Onde tem comida aqui? Posso buscar para você.

— não. medo... não me deixa.

Michel, sem ter tempo para sentir frio enquanto sentia tanta pena, decidiu cobri-la com a jaqueta. A mulher arfou.

— Eu vou te levar para o meu caminhão, de lá podemos ir a um hospital. Você sabe onde tem um hospital aqui perto?

A mulher se encolheu na jaqueta, meio desmaiada, meio dormindo. Michel a pôs em seu colo e carregou-a até o caminhão, tentando evitar molhar a moça. Ele a sentou ao lado da roda enquanto abria a porta. O corpo inerte dela correu para o lado e mergulhou na poça. Ele voltou a carregá-la e usou toda a força que teve para colocá-la no banco do carona. Ao entrar na cabine, tratou de ligar o ar quente.

Michel secou como pôde o corpo da mulher, mas a chuva fugia da pele dela, que parecia pegar fogo. A cabine se tornou uma sauna. Ele tentou desembaçar os vidros para poder seguir adiante. A chuva se intensificando mais. Ele ligou o caminhão e andou menos de 200 metros antes de bater em alguma coisa. Nem teve tempo de botar o cinto. O corpo caiu do banco e a cara dele caiu no volante pesado. Tum. Bons sonhos.

 

*

 

Já era manhã quando Michel despertou. Mas não foram os raios de sol que o acordaram. O dia estava nublado e pouca luz passava por entre as nuvens carregadas de cristais de gelo e tempestade. Durante a noite a chuva se intensificara e o vento balançava a copa das árvores. Uma gota d'água grossa golpeou seu rosto. A porta do passageiro estava aberta e a chuva sem direção, que tinha encharcado os bancos, começava a atingi-lo, do outro lado da cabine.

O caminhoneiro levou a mão ao rosto para limpar a gota. Havia sangue ressecado em seu rosto. Ele se lembrou de tudo, da batida da mulher, da doença. Olhou ao redor em busca dela, só o que viu foi um tufo de cabelos cacheados no chão, misturado com água da chuva e uma viscosidade seca e amarelada. Tudo fedia como vômito.

Ele desceu do caminhão com um só salto. Instintivamente procurou sua jaqueta sob o banco, então se lembrou que ela estava com a mulher, onde quer que ela estivesse. Ao dar a volta no caminhão ele viu uma trilha de sangue lavada pela chuva. Mas se ainda havia sangue em meio aquela chuva, quanto será que não havia escorrido? Um mar vermelho, calculou ele.

Michel continuou procurando a mulher, ou o que sobrara dela.

Na parte de trás da borracharia, a luz do banheiro feminino continuava acesa. A chuva ali parecia ainda mais intensa e o vento impedia que ele andasse com rapidez. Uma corrente de água suja saía constante do banheiro, como um rio esverdeado. Michel avançou.

A porta se abriu com ainda mais dificuldade que no dia anterior e emperrou no meio do caminho, fazendo com que ele se arrastasse contra ela para poder entrar no local.

A luz era quase nenhuma. O sangue podre se espalhava por toda parte.

Ele caminhou até a primeira cabine. Sua mão tremia e o suor pingava em gotas por sua nuca. A chuva continuava ininterrupta no telhado. Ele esticou a mão para abrir, mas o medo lhe fez pensar que seria melhor manter certa distância. Ele se afastou e chutou a porta com toda sua força. A porta abriu e fechou rapidamente com um estrondo, mas permitiu ver que não havia nada ali.

Michel olhou a segunda porta, onde havia encontrado a moça poucas horas antes. Tentou caminhar até lá, mas foi invadido por uma onda de pavor. Pensou em Nossa Senhora e em busca de coragem, começou a sussurrar: "Ave Maria, cheia de graça, o senhor é convosco". Chegou perto da porta da segunda cabine. "Bendita sois vós entre as mulheres".

Um pedaço imenso da gosma estava espalhado no sangue, ele forçou a vista na escuridão e viu que aquela forma arredondada era uma orelha. "Be-bendito é o fruto, o fruto do vosso ventre, Jesus!". Um trovão correu os céus lá fora e um arrepio correu a espinha de Michel. "Santa Maria!, mãe de Deus!, rogai por nós, pecadores, agora! e na hora de nossa morte, amém!". Michel chutou a porta.

As fracas dobradiças não resistiram à força da perna do homem e voaram pelo banheiro. A porta ao cair quebrou parte da louça do vaso. Não havia nada naquela cabine também. Sua bondade lhe fez pensar "onde será que a mulher estava?", mas o medo lhe fez pensar "ainda bem".

Curiosidade nunca foi o forte do caminhoneiro. Michel decidiu que daria o fora dali. Ele se virou para ir embora do banheiro mal iluminado. Ao virar-se, ele viu que, no meio da infusão de sangue podre, gotas de chuva e pedaços de pele humana, havia algumas penas acinzentadas e pretas, como as asas de Satanás.

Ao pensar no coisa-ruim ele ouviu um barulho e o medo fez o estômago de Michel subir. Com o coração saindo pela boca, ele fez menção de correr para a porta, para sair o mais rápido possível dali, mas não houve tempo. Outro relâmpago cortou os céus, ressoando o trovão em cada uma das cerâmicas do banheiro. A luz azul clareou o ambiente e Michel se virou em direção à pia. Ele olhou para a pia e pensou em quanto foi idiota de tê-la esquecido.

 

*

 

Uma criatura totalmente sem pele estava sentada na louça que um dia fora branca. Não tinha olhos, ouvidos, pele ou pelos. Sua aparência apenas lembrava a de um humano. Um humano queimado ou em carne viva. Os lábios haviam caído, sobrando apenas os dentes cavalares que pareciam sorrir como sorriria um demônio. No lugar dos olhos havia imensas fossas obscuras e o líquido do globo ocular vazava pelo rosto, parecendo, na pouca luz, com lágrimas de prata. Dos ouvidos só sobravam dois buracos redondos, como que esculpidos com uma estaca no crânio da coisa. A cabeça do monstro estava inclinada e ele se divertia mastigando preguiçosamente as entranhas de um pombo cinza e inerte. As penas empapadas de sangue estavam grudadas no que um dia foram seios de mulher.

O ar de Michel foi expulso do peito de uma só vez. O pavor enfraqueceu seus joelhos e o instinto de sobrevivência fez com que os pés caminhassem para trás. O coração batia nas costelas. O barulho da pulsação de Michel fez com que a criatura levantasse a cabeça. O caminhoneiro tentou correr, gritar, ou reagir de qualquer forma, mas ficou paralisado de medo. A criatura jogou a carcaça do pombo no chão e inclinou o corpo o máximo que pôde para a frente, virando a cabeça em um ângulo tão agudo que faria qualquer pessoa urrar de dor. Os buracos que um dia foram olhos pareciam observar atentamente o caminhoneiro, como o leão assistindo o andar da presa.

Os pés de Michel se chocaram contra a porta no chão, fazendo uma barulheira. Ele sentia tanto medo que chegava a doer. A criatura se apoiou nos quatro membros e abriu a boca, emitindo um longo e grave som. O ser saltou da pia e percorreu toda a distância que separava Michel dele com apenas um pulo.

Finalmente os músculos do homem responderam aos comandos, fazendo com que ele se jogasse de lado e o monstro demoníaco passasse direto, batendo contra a porta arrancada. A cabeça do bicho fez com que a porta se rachasse.

O caminhoneiro correu em direção à porta. O medo, no entanto, parecia tê-lo engordado e ele não conseguia passar pelo espaço pelo qual havia entrado no banheiro. A criatura, com o crânio parcialmente amassado, se levantou e olhou sem ver em direção aos suspiros de Michel. O grito grave e constante voltou a arranhar a garganta do monstro. Ele correu novamente em direção ao homem que se desgrudou da porta de saída, escondendo-se embaixo da pia ensanguentada.

O impacto do monstro contra a porta fez com que ela se fechasse por completo. Escuridão. A chuva continuava seu trabalho de lavar o mundo. Michel conseguiu ouvir a criatura se arrastar na poça de sangue podre e se botar de pé. A sinfonia das batidas aceleradas do coração do caminhoneiro se uniu ao grunhido grave do monstro. Um novo relâmpago e Michel pôde ver que o demônio estava em posição de ataque. A luz, porém, permitiu que ele visse também o pedaço de espelho que repousava sobre a pia.

Assim que a criatura se pôs em marcha para atacá-lo, Michel pegou o vidro e cravou na goela do infernal. O grunhido foi abafado. Nenhuma gota de sangue sequer saiu do corpo da criatura, a carne era dura e foi necessária muita força colocada no espelho para fazê-la ceder. O monstro caiu no chão. Já o caminhoneiro, apavorado, tratou de segurar o espelho com as duas mãos e usou toda a força de seu corpo para fazê-lo subir, enfiando-o inteiro na cara do monstro. Ele pegou outro pedaço de vidro e enfiou no buraco da orelha do bicho. E seguiu recolhendo vidro e enfiando no bicho até que ele se calasse.

O caminhoneiro forçou a porta e saiu do banheiro ainda com um retalho de espelho nas mãos. A intensa chuva lavou um pouco do sangue podre que se espalhava por seu corpo. Pedaços de pele humana estavam emaranhados em seu cabelo. Michel levantou o espelho e viu que o sangue marrom-esverdeado da criatura se misturava com o seu. O espelho havia feito profundos cortes nos nós de seus dez dedos, mas a adrenalina era tanta que ele nem sentia dor. Mal sabia ele que também estava contaminado.

 

Jornalista, escritor e professor de espanhol, Bruno Bucis tem 26 anos. Ele escreveu o romance Noites de Sol, recém-lançado pela Tagore Editora. Venceu os concursos de microcontos da IFSP e de roteiro para TV pelo Na Batalha. Trabalha atualmente no Metro Jornal. Tem duas gatas.

 


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