UÍSQUE, CIGARROS E OUTRAS COISAS QUE MATAM - Conto de Terror - Gustavo Henrique Silva Peres



UÍSQUE, CIGARROS E OUTRAS COISAS QUE MATAM

(Gustavo Henrique Silva Peres,  Menção Honrosa do Concurso Literário Bram Stoker de Contos de Terror)



Há cerca de um ano, Luan viu Solange pela primeira vez, em um vôo a trabalho, e sentiu uma profunda tristeza ao pensar que nunca mais a veria novamente depois que o avião pousasse e saíssem do aeroporto, a não ser que falasse com ela e descobrisse alguma informação importante antes disso. Duas horas depois, ao lado da esteira de bagagens, ele pousou sua mão sobre a dela no momento em que ela pegava uma mala multicolorida que passava, passou os olhos sobre os dados na etiqueta de identificação, e se desculpou. “Confundi com a minha”, disse ele. Os dois sorriram, ele timidamente, ela quase gargalhando ao reparar no traje formal que ele usava, e que em nada combinava com a mala em suas mãos. “Ou confundiu ou é o pior ladrão de bagagem da história deste aeroporto”, ela respondeu, ainda sorrindo, enquanto esperava uma segunda mala, e ele retirava uma sacola de couro preto da esteira. “Mas consegui o que eu queria”, ele disse antes de se separarem, “seu nome, seu telefone... e um sorriso”.         
Há seis meses, os encontros entre os dois haviam se tornado quase tão frequentes quanto os desencontros entre o sol e a lua. E numa noite, enquanto conversavam na cama sobre o que desejavam para o futuro, ela disse sorrindo: “estar com você”. Após pensar por alguns segundos, ele decidiu que era hora de mudar de trabalho, e respondeu: “casar com você”.
Há dois meses e quinze dias, com um novo emprego em vista, ele procurou um padre em uma igreja para tratar do casamento religioso e para se confessar, como deveria fazer antes da cerimônia. Decidiu confessar apenas os pecados que eram crimes, e não dedicar mais que um minuto a cada um deles, para não tomar muito do pouco tempo que o padre devia ter para ouvir outros cristãos melhores que ele. Mais de uma hora depois, confessou o último assassinato cometido a mando de alguém, e ouviu a sua condenação religiosa pelo sacerdote: permanecer ali orando até que anoitecesse e que o padre, após refletir por horas, retornasse para sentenciar uma penitência maior por seus atos. “Conheço pecados piores que os seus, e pecadores que sempre os cometem e nunca se arrependem, filho. Mas você ainda pode ser perdoado. Pra isso, deve usar suas habilidades pra livrar o mundo de um mal maior que o que elas causaram. Deve matar um matador ainda pior que você... e eu te direi onde encontrá-lo”, disse o religioso.
            Há um mês, Luan partiu para executar sua última vítima: um homem assustadoramente pálido que, acompanhado de uma bela garota, saía de uma casa noturna com o nome “INSIDE LIGHT” piscando em uma luz azulada sobre a porta dupla da entrada. Num piscar da luz, uma bala do seu rifle foi colocada, sem dificuldade, entre os olhos do alvo e saiu, com grande estrago, do outro lado de sua cabeça. A garota gritou e correu para trás da proteção mais próxima. Mas o sangramento cessou, o ferimento fechou e o alvo se levantou do chão, enxugando o sangue da testa, enquanto Luan observava atônito pela mira do rifle e disparava outro tiro. O segundo não fez mais efeito que o primeiro. Ele falhou e foi visto pelo alvo, que desapareceu antes que uma terceira bala pudesse ser atirada.
            Há vinte e nove dias, ele esteve com o padre novamente, para contar o ocorrido e exigir explicações. Mas as explicações não faziam sentido. O próprio padre não acreditava totalmente nelas, até então. E, no fim daquela noite, após ter parado para beber em cada bar pelo qual passou no caminho de volta ao lar, Luan encontrou a porta de sua casa arrombada, seus móveis quebrados, e partes do corpo da mulher – dedos, mãos, pés, braços e pernas - espalhados pelos cômodos. Sobre sua cama encontrou o que sobrou da mulher que amava, mas em seu belo rosto o sorriso fora trocado por uma expressão de pavor que a tornava quase irreconhecível. E, ao lado dela, uma caderneta aberta onde estava escrito, numa cor avermelhada: “QUANDO SE OLHA MUITO TEMPO PARA UM ABISMO, O ABISMO OLHA PARA VOCÊ”.
            Na noite passada, Luan voltou à Inside Light e esperou pelo homem do abismo até o amanhecer, como fazia todas as noites desde a morte de Sol. Mas, como nas noites anteriores, ele não apareceu. No seu lugar, encontrou a bela garota que estava com ele quando tentou matá-lo. Esperou que a garota fosse embora e se afastasse do movimento, parou o carro ao lado dela e lhe apontou uma arma, ordenando que entrasse no veículo sem chamar atenção. Alguns minutos depois a levou de volta à casa noturna e a jogou desacordada para fora do carro, sangrando. No corpo dela havia escrito, com a lâmina de uma navalha: “EU SOU O ABISMO”.
Há uma hora, assim que a noite caiu, Luan ligou o antigo aparelho de som para ouvir as músicas de que Sol mais gostava, e se sentou na poltrona da sala com uma garrafa cheia de bom uísque escocês e dois copos nas mãos. Encheu um copo com uísque e no outro apenas pingou algumas gotas do líquido de outro frasco menor, tirado do bolso do casaco, e deixou os copos, a garrafa e um novo controle remoto na pequena mesa ao lado. Acendeu um cigarro, previamente embebido em veneno de uma rara rã amazônica que havia comprado de um traficante de animais, e começou a fumar calmamente, olhando com desprezo para o crepúsculo falsamente romântico além das janelas, enquanto esperava a visita da morte.
            Uma bela voz de mulher, que ele nunca sabia ao certo a qual diva da música pertencia, começou a cantar no aparelho de som: “summertime, child, the living's easy”. Mas os latidos de cães, que ele havia recentemente adotado como companhias e prendido num dos quartos, tornavam ainda mais difícil identificar a dona da voz. E antes que a música chegasse ao fim, prometendo “until that morning, honey, nothing's going to harm you”, os latidos se tornaram mais altos e furiosos.
A morte chegou. Não na forma de um veneno raro, mas de um raro ser, que também matava, mas que não podia ser morto nem mesmo por venenos. Sua pele era jovem e clara, em contraste com seus trajes velhos e escuros, e olhos vermelhos e presas salientes se destacavam em seu rosto, emoldurado por cabelos desgrenhados e tatuagens que desciam das orelhas aos ombros. Entrou pela porta aberta da varanda, e se moveu rápida e furtivamente até a poltrona, cravando os dentes no pescoço de Luan.
Por alguns instantes, Luan não reagiu, pois o veneno em seu sangue havia paralisado seus músculos. Os cães, por sua vez, latiam cada vez mais forte do outro lado da porta do quarto em que estavam presos, até que ele deixou cair a mão sobre um dos botões do controle remoto na mesa ao lado e a porta eletrônica recém-instalada no quarto se abriu com um clique.
Três enormes mastins, furiosos, empurraram a porta e saltaram para fora do cômodo em direção ao intruso, antes que este pudesse fazer qualquer coisa além de arregalar os olhos. As mordidas e os gemidos de dor vieram em seguida. Por alguns minutos os cães e o vampiro lutaram ferozmente, até que, muitos ferimentos depois, o último cão em pé foi arremessado contra uma das paredes e perdeu os sentidos.  
O intruso se voltou então para o anfitrião, que assistia à cena a uma pequena distância, e, ao tentar alcançá-lo, caiu no chão. A luta tinha lhe causado mais do que ferimentos. Após todo o esforço feito, o veneno no sangue sugado minutos antes tinha atingido seu efeito máximo no novo corpo, paralisando-o e levando-o ao chão, onde ficou quase imóvel.
Com um leve toque, Luan empurrou o copo de uísque da mesa ao lado para cima do vampiro caído aos seus pés. Em seguida, com um pouco mais de força, fez o mesmo com a garrafa sobre a mesa, arrebentando-a no impacto contra a cabeça do outro e encharcando-o com a bebida. Por fim, levantou-se com dificuldade e, já com menos do veneno e mais do antídoto do outro copo no corpo, afastou-se alguns passos, acendeu outro cigarro, não envenenado, e encheu os pulmões. Deu uma tragada apenas e lançou o cigarro aceso na direção do corpo caído, imóvel, sobre o piso de madeira também encharcado de uísque. E o fogo atacou, ainda mais impiedosamente que os mastins ou o próprio vampiro.
Um alarme de incêndio tocou, Luan saiu da casa em chamas e caminhou pela rua, apoiado em duas muletas previamente deixadas perto da porta. A certa distância, parou e tirou do bolso do casaco uma velha caderneta. Abriu em uma página contendo uma lista de palavras sob o título “COISAS QUE MATAM” e escreveu, logo abaixo das linhas onde estavam anotadas “LUZ DO SOL”, “PERDER A CABEÇA” e “FOGO”: “ÚISQUE E CIGARROS”.


Nascido e criado na cidade de Uberaba, no interior de Minas Gerais, Gustavo Henrique Silva Peres formou-se em Direito pela Universidade de Uberaba em 2002 e transformou-se em servidor público do IBAMA em 2004, quando se mudou para Brasília e passou a ter oportunidades de conhecer pessoas e lugares incríveis do Brasil inteiro que antes só podia conhecer por histórias. Especializou-se em Desenvolvimento Sustentável e Direito Ambiental pela Universidade de Brasília em 2006. Conheceu mais algumas pessoas e lugares incríveis também fora do Brasil nos anos seguintes, em viagens a lazer ou estudos. Entre 2013 e 2015 estudou um pouco de espanhol em Barcelona, de inglês em Londres e iniciou um Mestrado em Estudos Ambientais em Buenos Aires. Mas sua grande paixão sempre foi por histórias, que fizeram dos RPGs seu passatempo predileto desde os 16 anos até hoje.  



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