UM NOIVO PARA JOSEPHINE - Conto de Terror - Márcio Evanmarc
UM
NOIVO PARA JOSEPHINE
(Márcio Evanmarc - 14º Lugar no Concurso
Bram Stoker de Contos de Terror)
Já
era a segunda vez que passava os olhos na matéria do jornal londrino, onde se
lia que Sua Majestade autorizava a Marinha Real a apreender quaisquer navios
negreiros cruzando o Atlântico, em especial aqueles que se dirigiam ao Império
do Brasil, e Archibald Norrington já estava ficando cansado de esperar. O sol
já descia no horizonte e ele começou a temer que perdera seu precioso tempo
armando a emboscada nesse caminho. Entretanto, o som de um trote lento chegou
aos seus ouvidos e ele ergueu os olhos do jornal que trouxera para ler enquanto
aguardava. Essa já era a terceira pessoa que passava por esse caminho, e ele
ansiava para que finalmente fosse quem ele queria. Sorrateiramente, ele
levantou a cabeça e todos os seus sentidos entraram em alerta, pois era seu
alvo se aproximando.
Archibald
sentiu o rosto esquentar e o sangue irrigar todos os seus músculos, enquanto um
estranho êxtase invadia seu espírito. A proximidade da luta! A iminência de
derramar sangue! A primeira vez que experimentou essa sensação foi em seu
primeiro combate, justamente numa das batalhas mais importantes para a glória
da sua amada Inglaterra. Archibald podia dizer com orgulho que participou da
Batalha de Waterloo sob o comando do Duque de Wellington, que impôs a derrota
definitiva ao tirano Napoleão, e embora a idade tenha cobrado seu tributo, ele
sentia que ainda guardava parte do vigor físico de outrora e ainda tinha dentro
de si a chama do guerreiro. E tudo indicava que, mais do que nunca, ele
precisaria utilizar-se desse vigor não só agora, mas no futuro.
O
cavaleiro avançava lentamente, e escondido sobre o rochedo elevado, Archibald
aguardava, pronto para matar. Cinquenta metros de distância; ele olhou a enorme
pedra ao seu lado e perguntou-se pela milésima vez se ela seria suficiente para
derrubar seu oponente. Quarenta metros; ele começou a ficar com medo de errar o
arremesso, seu alvo fugir e identificá-lo posteriormente. Trinta metros; as
mãos e o rosto de Archibald estão completamente molhados pelo suor, e de novo
ele olha a pedra. Vinte metros; ele tira a pedra do chão e sente o peso. Dez
metros; todos os seus músculos estão tensos e ele olha a afiadíssima faca que
leva na cintura. É agora! O alvo está exatamente abaixo de si! Ele se ergue e
arremessa a pedra, que atinge em cheio a cabeça do seu alvo. Pego totalmente
desprevenido, o homem não teve a menor chance de defesa e caiu da montaria.
Assustado, o cavalo disparou, arrastando-o por uns trinta metros, pois seu pé
ficou preso no estribo, deixando atrás de si um rastro de sangue que jorrava em
abundância de sua cabeça dilacerada. Finalmente, o pé se soltou e o corpo ficou
caído da estrada.
Com
muita calma, Archibald desceu do rochedo e caminhou em direção ao moribundo,
que apenas gemia debilmente. Ele se aproximou e sorriu, satisfeito consigo
mesmo por conseguir seu intento. Mas o trabalho ainda não acabou. O desgraçado
ainda está vivo; além disso, será preciso livrar-se do corpo. Ele agarrou as
duas mãos do homem e o arrastou até uma clareira, onde o infeliz permaneceu
agonizando. Com muita dificuldade, o homem abriu um dos olhos e reconheceu seu
algoz.
— Por... que...
senhor... Norring... ton? — murmurou debilmente.
Archibald
empunhou a faca, enquanto rosnava com ódio.
— Porque
minha filha merece alguém muito melhor que um carpinteiro!
De
um só golpe, Archibald passou a faca na garganta do homem e, em questão de
minutos, a hemorragia terminou o serviço.
“Acabou,
esse galanteador barato não me causará mais problemas”, pensou, enquanto ria
com crueldade. Ele limpou a faca nas roupas de sua vítima e guardou-a; em
seguida pegou a pá que trouxera em seu cavalo e cavou uma sepultura tosca, onde
sepultou o corpo. Depois, como se nada tivesse acontecido, montou em seu cavalo
e voltou assoviando tranquilamente para sua casa e para sua filha.
O
homem que acabara de ser assassinado era Jason Davenport, um carpinteiro de
razoável habilidade cujos serviços eram um tanto requisitados no porto de
Londres. Aos 29 anos, conseguia levar uma vida longe de ser luxuosa, mas seus
ganhos permitiam-lhe alguns confortos impensáveis para muitos que viviam
naquela agitada e miserável capital. Jason vinha cultivando a ideia de
casar-se, e a ideia acabou virando uma certeza quando ele conheceu a doce
Josephine, recém-chegada de Brighton com seu pai. Segundo soubera, o velho
recebeu uma herança de um parente distante e entre as benesses estava o
palacete localizado ao lado do mosteiro de Carfax. Além de linda, era filha
única e, consequentemente, a herdeira de uma pequena fortuna, ou seja, ele
estava diante da esposa dos sonhos de qualquer homem com um pingo de ambição.
Quando
recebeu a herança e mudou-se para Londres, Archibald veio decidido a não
permitir que aventureiros se aproximassem de sua filha. Os anos difíceis em que
ele ganhava a vida como pescador haviam ficado para trás; agora ele integrava a
burguesia inglesa e faria de tudo para conseguir um casamento decente para sua
Josephine, que recentemente completara 17 anos. Sendo filha única, criou-a com
todo o carinho desde que sua amada Emma sucumbira à febre quando a menina ainda
tinha 9 anos, e apenas uma coisa superava o zelo com que ele se empenhava em
arrumar-lhe um bom marido: ele não contrariava Josephine. Seu apego à filha era
tamanho que não suportava vê-la chorando ou sofrendo, mesmo quando ela
habilmente usava o pranto como arma para conseguir o que queria.
Já
estavam em Londres há quase um mês quando percebeu candidatos a pretendente de
Josephine rodeando sua casa. Embora alguns fossem decentes e trabalhadores com
um futuro promissor, Archibald estava decidido que sua linda Josephine seria desposada
por alguém da nobreza, pois a notícia de sua formosura certamente chegaria aos
ouvidos dos filhos dos barões e viscondes que frequentavam os iluminados salões
da noite londrina. A beleza da filha era digna de um duque!
Entretanto,
com o mais profundo desgosto, ele via alguns “mortos de fome” se aproximarem de
seu bem mais precioso. Um deles, um carpinteiro chamado Davenport, foi ousado o
suficiente para pedir sua permissão para cortejar a filha. Archibald foi
incisivo em sua proibição, mas ele percebeu que o moço não desistiria, o que
ficou confirmado quatro dias depois, quando flagrou-o dirigindo a palavra a sua
filha enquanto ela passeava com a governanta que contratou para cuidar dela e
educá-la como uma dama.
— Filha, quem
era aquele rapaz que conversava com você hoje? — perguntou durante o jantar,
fingindo não saber quem ele era.
— Papai,
aquele é o senhor Jason Davenport, um homem tão doce, tão educado, não imaginei
que pudesse existir alma tão gentil aqui em Londres.
Ele
percebeu que a filha já estava ficando interessada. De nada adiantaria
proibi-la de ver o jovem, pois Josephine herdou o gênio forte e decidido da
mãe; além disso, era bem capaz de ela derramar-se em lágrimas e no final das
contas ele acabaria cedendo, pois não suportava ver sua joia triste. Só tinha
um jeito: o rapaz precisava sumir! E foi assim que o velho Archibald livrou-se
de Davenport.
Passaram-se
os dias e Josephine começou a ficar aflita, pois Jason simplesmente
evaporou-se, sem dar qualquer notícia.
— Filha,
Londres está infestada de criminosos de todo tipo, talvez o rapaz tenha sido
vítima de algum tipo de assalto — ele tentava consolá-la.
Começaram
a circular boatos de cadáveres encontrados totalmente exangues, o que acabou
alimentando o rumor que havia vampiros na cidade. “Vampiros! Tolice! Como se já
não bastasse a escória humana, agora seremos assaltados por seres de outro
mundo”, pensava Archibald, rindo das crendices do povo.
O
tempo passou, Jason não apareceu e Josephine o esqueceu. E assim, poucos dias
depois, lá estava ela sendo novamente cortejada por outro homem, um guarda
noturno chamado Steve Pearce. Percebendo que a filha principiava a
interessar-se pelo rapaz, Archibald não pensou duas vezes: também iria
livrar-se desse oportunista. Ele começou a segui-lo durante as rondas noturnas
que Steve fazia e ficou sabendo tudo sobre ele: seus horários, onde morava, seu
trajeto e até em quais locais ele passava. Por fim, decidiu que faria a
emboscada nas imediações do armazém de algodão que ficava nas proximidades da
ponte sobre o Tâmisa. Terminado o serviço, bastava amarrar alguns pesos ao
corpo e lançá-lo nas profundezas do rio.
E
assim, dois dias depois, lá estava Archibald novamente à espreita, aguardando o
momento ideal para atacar. Usaria uma barra de ferro e, após atordoar seu
oponente, terminaria de matá-lo com a sua sempre fiel e útil faca. Dessa vez
nem foi preciso esperar muito. Já devia ser quase três da madrugada quando a
lua cheia revelou a silhueta de Steve. Archibald permaneceu oculto atrás de
alguns caixotes vazios e aguardou até que o rapaz passasse e estivesse de
costas para ele. “É agora”, pensou ele, erguendo a barra de ferro e investindo
contra Steve.
Entretanto,
as coisas não ocorreram exatamente como ele planejou. No momento que se ergueu
e partiu para o ataque, um cão latiu, fazendo com que Steve se virasse e o
visse. Ao invés de acertar a cabeça, a barra de ferro acertou o ombro do rapaz,
quebrando-lhe a clavícula. Rapidamente, Archibald sacou a faca e atacou Steve,
mas este, percebendo que sua vida corria perigo, desviou-se e a lâmina fez um
profundo corte no bíceps. Mesmo alquebrado e sangrando, Steve pôs-se a correr
na esperança de salvar sua vida, mas os ferimentos eram demasiados graves e
após percorrer algumas dezenas de metros foi por fim alcançado. Archibald
cravou a faca nas costas do pobre rapaz e ele caiu. O assassino desferiu mais
cinco facadas no peito e deixou-o sangrando sobre a ponte, enquanto corria de
volta ao seu esconderijo para pegar a corda e a pedra que amarraria ao corpo do
infeliz.
Archibald
amaldiçoou a maneira atabalhoada com que fizera o serviço enquanto tateava o
interior do caixote à procura da pedra. Maldito cão! Por muito pouco seu latido
não deu a Steve a possibilidade de se defender, ou pior, revidar o ataque e até
mesmo matá-lo. Mas ele jurou que não seria mais tão descuidado se precisasse se
livrar de mais algum caçador de dotes. “Mas onde está essa maldita pedra? Ah,
está aqui!”
Archibald
ergueu a rocha e virou-se, e o que viu deixou-o completamente paralisado. Um
homem havia se aproximado e estava debruçado sobre o corpo de Steve. Seu sangue
gelou, pois se alguém o tivesse visto ele estaria perdido. A luz da lua cheia
iluminava o vulto, e um horrorizado Archibald viu o momento em que o estranho
esticou o pescoço do moribundo e cravou-lhe os dentes na jugular. “Não, não é
possível! Não pode ser, isso é um pesadelo!”
Mas
não era um pesadelo. Archibald realmente presenciava um vampiro alimentando-se
do sangue ainda quente do rapaz. Ele permaneceu escondido, tremendo de medo e
rezando para que o vampiro não tivesse percebido sua presença. Seus temores
aumentaram ainda mais quando subitamente duas mulheres lindas, usando roupas
sensuais e provocantes, simplesmente surgiram ao lado do vampiro e ambas também
atacaram o corpo. Aquela orgia de sangue persistiu por alguns minutos, até que
os três monstros se levantaram e simplesmente desapareceram na noite. Archibald
permaneceu escondido por quase trinta minutos. Por fim, tomou coragem e
caminhou até onde estava o corpo, cujo tórax e pescoço foram praticamente
dilacerados pelas mordidas. Não seria nem preciso livrar-se do cadáver;
certamente culpariam o vampiro.
Ele
retornou para sua casa, mas não conseguiu dormir. Assim que clareou, Archibald
retornou ao local onde estava o morto e encontrou-o rodeado por uma pequena
multidão, e sorriu satisfeito ao ouvir o que essas pessoas diziam: realmente
estavam culpando o vampiro. Ele arrepiou-se ao lembrar o que presenciara.
Mais
e mais pessoas continuavam chegando, e ele pôs-se a observá-los. “Nossa
sociedade está cada vez mais decadente”, pensou, ao constatar que até pessoas
bem vestidas vinham apreciar aquele espetáculo macabro. Archibald deu meia
volta e saiu dali. Subitamente, deu-se conta que não poderia continuar matando
indefinidamente os pretendentes de Josephine; precisava casá-la logo, antes que
terminasse na forca. “Mas por que minha filha tem que se interessar logo por
esses pobretões? Há tantos homens ricos e distintos na Inglaterra! Olhe aquele
cavalheiro, por exemplo”, pensou, enquanto admirava um homem vestido de forma
elegante que saía do Hotel Cardiff, do outro lado da rua. O terno bem cortado,
a bengala encimada por uma esmeralda, o pincenê: tudo naquele homem
transbordava nobreza. “Por que alguém assim não se interessa pela minha filha?”
Subitamente,
como se o tivesse ouvido, o elegante cavalheiro olhou-o e ergueu a cartola,
cumprimentando-o. O homem esperou que uma carruagem passasse e atravessou a
rua, vindo diretamente em sua direção.
— Bom dia,
cavalheiro — cumprimentou o estranho, com um leve sotaque estrangeiro que
Archibald não soube identificar de onde era. — Acabei de chegar a Londres a
negócios, mas meu contato não apareceu e estou completamente perdido nessa
imensa cidade. O cavalheiro poderia me dizer onde fica o escritório de
Renfield?
“Renfield?
Thomas Renfield simplesmente é o advogado dos homens de grandes fortunas!
Ninguém compra ou vende grandes propriedades sem consultá-lo!”
— Eu
pessoalmente o levarei até Renfield, cavalheiro.
O
prédio ficava a seis quarteirões. Archibald sugeriu que pegassem uma carruagem,
mas o estranho, alegando querer ambientar-se a Londres, propôs que fossem
caminhando. Apresentaram-se e conversaram durante todo o trajeto, mas ao
chegarem ao local desejado, ficaram sabendo que Renfield viajara recentemente
para o Leste Europeu, a fim de intermediar os negócios de um excêntrico conde.
Mesmo contrariado pelo insucesso de sua viagem, o homem demonstrou
agradecimento e convidou seu guia para almoçar com ele. Archibald, porém, a
pretexto de que “o cavalheiro perdoasse todos os ingleses pela indelicadeza e
deselegância cometida por Renfield”, convidou-o para almoçar consigo em seu
palacete, onde ele poderia conhecer sua filha. O homem gostou da proposta e
aceitou-a prontamente.
Logo
que chegaram, Josephine veio correndo e lançou-se no pescoço do pai,
abraçando-o de maneira afetuosa.
— Filha, olha
os modos! Temos visita; quero que conheça...
— Deixe que
eu me apresento — o homem interrompeu-o com polidez, enquanto tirava a cartola
e depositava um suave beijo na mão estendida de Josephine, fazendo uma mesura.
— Senhorita, permita-me dizer que seu pai não exagerou ao mencionar sua beleza;
jamais vi criatura tão bela em toda a minha vida.
Josephine
sorriu, tímida.
— Agradecida
pela gentileza, senhor... desculpe, como se chama mesmo?
— Oh, que distração a minha! Perdoe meu lapso, senhorita. Sou o
conde Vlad Dracul, mas por favor, esqueça as formalidades e me chame apenas
pelo cognome que me deram em minha terra. Pode me chamar de Drácula.
Márcio Evanmarc, pseudônimo do Márcio
Alexandre Evangelista, nasceu em Barra Mansa, onde passou a maior parte da
infância e adolescência. Casou-se em 1998 e atualmente mora com a esposa e os
dois filhos adolescentes em Queluz, São Paulo, e desde 2008 trabalha nas
Indústrias Nucleares do Brasil, em Resende. Em fins de 2015, Evanmarc começou a
escrever sem compromisso, porém, a Editora
Multifoco gostou do seu trabalho e em julho de 2017 publicou o primeiro
volume da saga “Depois do Apocalipse — O Livro dos Dias”, obra inspirada no
filme “28 Dias”. Além da continuação da saga, os outros projetos em curso são o
trhiller scifi “O Pulso”, a saga “O Herege” e o romance “água com
açúcar” cujo título provisório é “Mais Forte que o Tempo”. Para ele, escrever
tornou-se um vício.
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