ONDE NADA ACONTECE - Conto de Terror - Clara Madruga Lautert



ONDE NADA ACONTECE

(Clara Madruga Lautert – classificada no Concurso Literário Bram Stoker de Contos de Terror)

 

 

Nada ousava acontecer ali. As casas espaçadas com os tetos de telha irregular abrigavam famílias de no máximo seis indivíduos e no mínimo três. Pessoas que se conformavam em passar as tardes ensolaradas de domingo jogando longas partidas de carta na varanda. Mas, dia após dia, quando anoitecia, uma neblina estranha abraçava tudo a sua volta, eles entravam em seus domicílios e, sem fazer perguntas, se deitavam em suas camas. Era fácil viver ali.

Quase ninguém sabia o nome daquele lugar, ele era pequeno demais. Às vezes, viajantes que iam de uma cidade a outra, para ver algum parente ou passar as férias, passavam por ali. Às vezes, alguém perguntava seu nome e ninguém sabia responder, então não perguntavam mais nada, porque jamais alguém se importou, para começo de conversa. Mesmo que todas as famílias tivessem pelo menos um, ninguém usava carros, eles não precisavam, pois não havia muitos lugares para ir. A estrada que levava ao lugar se dividia em duas um pouco menores, havia casas em um dos lados de cada estrada e no meio delas árvores malcuidadas haviam crescido demais. Dependendo da época do ano, a floresta deixava o clima mais úmido e ameno, o que era bom, mas em outros meses as folhas caíam e sujavam as ruas, os moradores varriam tudo, deixavam pequenos montinhos de folhas mortas ou as usavam como adubo.

Em uma dessas casas morava João Rafael. A idade dele não importa muito, mas ele era pequeno demais para entender os estudos das ondas periódicas e grande o bastante para se questionar por que ele teria que aprender isso, o que ocorreria no próximo ano escolar. Vinha de uma família de descentes de portugueses, seu pai João Pedro era professor da única escola da região, suas camisas de flanela faziam seus alunos o reconhecerem de longe. Embora sempre houvesse vivido ali, ele tinha um certo distanciamento no olhar, que parecia o de uma pessoa que, estando de passagem, acabava de chegar ao lugar. Casou-se com Juliana, uma mulher de cabelos lisos e escuros, que pintava quadros e dava aula de costura nas sextas à noite. Eles moravam em uma casa de tijolos laranja com dois andares e uma varanda grande que pegava um sol quente à tarde. Da varanda dava pra ver o pátio da frente, a rua e a floresta.

Um dia, João voltava para casa com sua velha camisa branca manchada de café e uma bermuda marrom escura. Ele pedalava a bicicleta com o tronco inclinado para trás, observando as árvores altas, que o observavam também, pelos olhos dos pássaros pousados nos troncos. Um pouco atrás, seu amigo Arthur o seguia, observando tudo à sua volta. Arthur era baixo e um pouco gordo, mas havia se convencido que estava no peso ideal, só altura que lhe faltava. Morava com sua mãe, seu pai e um irmão mais velho, que nos próximos dias completaria quinze anos. Ele observava os cabelos crespos e escuros de João, que balançavam em sua nuca:

 —Você quer passar a tarde lá em casa? — João perguntou quebrando a conversa das folhas secas contra as rodas de borracha.

—Pode ser… — Arthur respondeu baixo e um pouco trêmulo.

— O que foi?

— Na próxima, vamos contornando a floresta! Meu pneu estraga, eu já te falei!

— Ninguém te obrigou a vir comigo! — João falou, virando um pouco a cabeça, deixando Arthur ver seu perfil.

— Sou, sou… um bom amigo. Não te deixaria vir sozinho!

 — Ha ha, eu sei que você se caga de medo da floresta!

 —Eu tenho medo da tua mãe, aquela bruxa enrugada! — Ele saiba que ofender a mãe de alguém sempre mudava o assunto. 

— Cala a boca, baleia!

E os dois riram até quase perder o controle do guidão. Chegaram na casa do menino e antes de entrar deixaram os sapatos ao lado da porta. Cumprimentaram Juliana, que estava terminando o almoço, e subiram para o quarto de João. Arthur se sentou na cama desarrumada, enquanto o outro menino correu para a estante de DVDs, procurando por algo.

— Achei! —Ele soltou um grito. É desse filme que eu tava te falando. — Seus dedos puxaram a caixinha do meio das outras e a jogaram nas pernas do amigo.

Era uma pequena caixa de plástico; nela estava escrito com letras vermelhas de caneta hidrocor: A Hora do Pesadelo.

— Meus pais nunca me deixariam ver isso.

— Por isso que tu vai ver ele aqui na minha casa, a gente espera anoitecer e eu posso fazer pipoca pra nós!

Ele pensou um pouco, primeiro em ser chamado de medroso pela segunda vez, depois na pipoca, em seus pais… e depois em João, seu melhor amigo, aquele que levou uma porrada de Fernando, o repetente de 1 m e 80 cm, por ele. Aquele que o consolou depois que todos riram dele na escola. João, para ele, era como alguém invencível, ele não queria decepcioná-lo.

— Claro, vamos. —E, por um longo segundo, eles se entreolharam e pensaram exatamente a mesma coisa: o quão eram sortudos por terem um ao outro. Que de todos os países, estados, municípios, distritos, eles nasceram exatamente naquele lugar e isso era um milagre.

Ali, as tardes passavam rápido demais, como que ansiosas pela chagada da noite. Os dois meninos jogaram futebol e conversaram na varanda até verem a costumeira neblina se aproximando, ela parecia vir sempre da floresta. O pai de João chegou lá pelas 18 h, cansado, tomou uma xícara de chá, olhou as notícias e depois foi dormir. Amanhã às cinco da manhã ele acordaria e tudo se repetiria, talvez não exatamente da mesma forma, mas extremamente parecido. Eles estavam sentados no sofá da sala quando Juliana subiu as escadas para dormir.

—Vocês deveriam fazer o mesmo, ah, e Arthur, sua mãe ligou, eu avisei que você está aqui.

—Obrig…

—Já vamos dormir! Só vamos ver um pouco de televisão — interrompeu João, mas a esta altura Juliana já estava fechando a porta do seu quarto no segundo andar. João abriu um largo sorriso, mostrando seu dente lascado. Ele se levantou, pegou o filme que anteriormente havia escondido entre as almofadas do sofá. Arthur, sentindo-se levemente receoso, se ajeitou no sofá.

—Se prepare para o filme mais assustador que você já viu!

Arthur não gostava nem um pouco de coisas assustadoras, não havia sentido em gostar, medo para ele era um tipo de tortura. Ficar noites sem dormir olhando para o teto e pensando em criaturas malignas não era um sentimento muito agradável, mas talvez para alguém fosse, alguém bem idiota. Ele percebeu a neblina batendo na janela e sentiu mais medo ainda. Seus olhos se voltaram para aquela direção e focaram em dois pontos luminosos dentre os troncos e a neblina. Pareciam grandes demais para serem olhos, pelo menos… olhos de pessoa, além do mais, olhos não brilham assim, e esse pensamento acabou voltando: não são olhos de pessoa.

—Arthur! Acorda! —Ele parecia em transe…

Os olhos de João seguiram os de Arthur e ambos viram os dois pontos na neblina que os encaravam. Eles não eram apenas assustadores: eles traziam consigo uma sensação muito ruim, como olhos que já viram muito o mau, eles não entenderam direito essa sensação. De quem eram aqueles olhos, essa era a questão. 

— O que é aquilo na neblina?

—E eu tenho cara de quem sabe mais do que você? - João respondeu com outra pergunta.

—Eu só sei que eu não vou mais ver filme nenhum! Vamos acordar seus pais, eles vão saber o que fazer.

—Tá maluco? Se acordar eles, estamos mortos! Não deve ser nada, vamos ver o filme.

—Como eu vou me concentrar com essas coisas olhando aqui pra dentro?

— Quer fazer o quê? Se esconder?

—Deixa de ser medroso! Que saco! Eu vou lá ver o que é isso.

—Não!

 —Por quê?

 —Eu sou um bom amigo, teria que ir com você!

E aconteceu que os dois ficaram possuídos por um estranho sentimento, uma mistura de insanidade e coragem que desconheciam até então. Eles abriram a porta da frente, a neblina quente entrou e foi para a sala sem ninguém a ter convidado. Nenhum dos dois entendeu direito como, mas talvez pela forma como ela se movia, ela parecia estar viva. Por um momento, lhes pareceu que estavam sozinhos, mas estavam lado a lado e continuaram mesmo assim. Calçaram seus sapatos e entraram neblina adentro, parecia errado, mas eles tentaram pensar em outra coisa e continuaram. Usaram as mãos para afastá-la dos olhos, assim conseguiram ver um pouco. A neblina entrava pelas suas narinas e parecia lhes fazer mal, mas como poderia fazer mal se era só água evaporada ou algo assim?

Em uma rua vazia ao lado de uma floresta, duas pessoas pequenas perseguindo dois pontos luminosos na noite. Em suas mentes, mil pensamentos apostavam corrida em seus neurônios. E eles iam se aproximando… enquanto eles avançavam, mais aquele ser, qualquer que fosse, ia crescendo, e aquilo que parecia ser os seus olhos, aqueles pontos brilhantes, encarava ambos os meninos ao mesmo tempo. A criatura era maior do que eles imaginavam, uns 2,30 m, mais ou menos. De onde eles estavam, só conseguiam ver uma silhueta que alternadamente crescia e diminuía, era algo vivo, e estava respirando.

 Arthur tateou pelas costas de João até sentir sua mão. Chegou com o rosto perto do ombro dele e sussurrou:

  —Vamos voltar! —Não foi exatamente uma pergunta, ou uma ordem. Ele sabia que agora era tarde demais para voltar.

 Mas João não respondeu, continuou avançando. A neblina cobriu o caminho de volta, e Arthur não teve coragem de soltar a sua mão. Com a outra mão, João fazia movimentos aleatórios à altura de sua cabeça, tateando o ar e a fumaça.

Avançaram por mais alguns metros e perceberam ao longe uma forma ainda indefinida, que passo após passo o ia ficando mais nítida. Logo perceberam que a criatura, alta e larga, tinha a cabeça alongada como a de um cachorro, ou lobo. Mas o corpo era de um homem como aqueles musculosos da TV, coberto de pelos que em meio à neblina pareciam escuros, quase pretos, sujos de terra em algumas partes e com diversos pedaços de tecido daquilo que parecia ter sido uma camisa de flanela. Ela não usava roupas, seus olhos eram completamente vermelhos, até na parte que deveria ser branca. Sua boca semiaberta revelava duas fileiras de dentes pontiagudos e uma língua que se movimentava freneticamente por entre eles, acompanhando a respiração ofegante e rápida. Com certeza não era uma pessoa.

João parecia atraído por ela e continuava indo em sua na direção. Arthur chegou ao ponto de puxar a sua mão direita com todas as forças que tinha, tentando afastá-lo o máximo possível da coisa. Mas não ousou falar nada, talvez, se ficasse em silêncio, o monstro não percebesse que estavam ali. Talvez nem fosse real. Talvez ele ainda estivesse em sua cama e todo o dia fosse apenas um sonho, ele acordaria suado e com os músculos tensos, mas acordaria. É, ele acordaria, a qualquer momento. Daí ele ligaria para João e contaria o sonho, os dois ririam, no final eles concordariam que ninguém na vida real seria tão idiota de sair de casa à noite para ver o que eram aqueles olhos.

Cara a cara com ele. Tão pequenos e impotentes, eles sentiram medo, o mais profundo e assustador, o sentimento mais real e desolador que qualquer um poderia sentir. Eles ficaram por alguns segundos observando. O focinho começou a se mover, cheirando o que estava saindo das glândulas das crianças: puro medo. João se afastou, e Arthur também. Passos largos que acabaram por virar uma frenética corrida na direção oposta da coisa. E eles ouviram, sentiram que ela os perseguia. Não sabiam a quantos passos daquilo estavam, não sabiam se era sonho ou realidade, não sabiam nem o que estava a um braço de distância por conta da neblina! Ainda de mãos dadas, eles corriam, quase caindo e derrapando a cada árvore de que desviavam. Algo estranho aconteceu, o monstro começou a rir, sua voz era rouca e grossa. Mas não parecia se esforçar para correr e rir ao mesmo tempo, como que a qualquer instante pudesse esticar o braço e alcançá-los, mas preferia brincar um pouco antes de fazê-lo.

 A floresta parecia maior e mais confusa. Eles tiveram a impressão de passar várias vezes pelos mesmos troncos e lugares, como se estivessem correndo em círculos ou sequer saíssem do lugar. Nenhum dos dois conseguiu olhar pra trás, eles poderiam bater em uma árvore e também estavam apavorados com aquilo que os perseguia, talvez se olhassem eles ficassem paralisados ou morressem instantaneamente, fulminados de tanto pavor. As risadas ecoavam tanto e ficaram tão repetitivas que eles já não tinham certeza se estavam apenas lembrando das risadas anteriores ou se ela continuava rindo. Fosse o que fosse, parecia rir no ouvido de cada um.

O braço de Arthur bateu em um tronco, ele perdeu o equilíbrio e levou ambos a caírem no chão coberto de folhas. Neste momento, a criatura parecia urrar, mas olhando em sua direção notaram que a boca não se mexia, talvez o som estivesse apenas na mente deles. Com os braços esticados para frente, tornando mais salientes as longas garras nas pontas dos seus dedos, ela saltou para cima de Arthur que, caído, se sentia mais vulnerável. João jogou seu corpo na frente dele, mas não conseguiu interromper o caminho da criatura, que agarrou o pescoço de João e o jogou contra o mesmo tronco em que o braço de Arthur batera. Os dois caíram para a fera, que, com certeza, os mataria.

 —Por favor, não me mate!  —João deu um grito sufocado, tentando falar com a coisa, em uma tentativa desesperada de que ela o entendesse.

 —É o que monstros fazem, matam as pessoas, principalmente criancinhas. Ela respondeu com um sorriso.

  —Monstros não são reais! — Arthur falou, entrando na conversa, mas ninguém respondeu, talvez o que pudesse ou não ser real não importasse no momento.

  —Eu não posso morrer, não agora, não assim! Eu nunca saí dessa cidade, eu tenho família, pensa na minha família!

— Não se preocupe com eles. Quando a manhã chegar, e a neblina se recolher para a floresta de onde ela veio, nada mais de você vai existir!

—NÃO!

—É uma maldição! As coisas aqui não são calmas porque nada acontece, mas porque ninguém se lembra de nada! É a neblina, garotos, a neblina faz isso com a mente das pessoas.

Agora o monstro gritava tão perto de João que ele precisou olhar para o lado, sentindo um bafo quente e tóxico na sua orelha.

 

— Vocês desafiaram a neblina! Toda essa cidade já se conformou com a maneira de as coisas serem! Mas vocês saíram de casa e vão ser esquecidos.

Os meninos se encararam e em meio a um turbilhão de pensamentos que passavam diante deles no momento, um aconteceu mutuamente, ambos suspiraram e souberam o quanto eram sortudos por terem um ao outro. O menino agarrado pela fera foi erguido no ar até uma altura em que ela precisou levantar a cabeça para ver seu rosto que, vermelho de raiva, a desafiava. Subitamente João olhou para Arthur e gritou:

 — CORRA!

Em uma fração de segundo que pareceu eternizar-se, muito aconteceu antes de, de fato, Arthur fugir; muito ele pensou e muito ele lembrou. Um arrepio transpassou o seu corpo quando, subitamente, lhe apareceram dezenas de rostos conhecidos que haviam sido arrancados da sua mente, dos quais ele preferia não ter lembrado, agora que sabia do destino que tiveram. Somente quando ouviu um leve sussurro que aos poucos foi aumentando — corra! —, lembrou de momentos despreocupados com seu amigo — corra! —, foi tomado de um sentimento crescente de angústia — corra!… Então, sem entender bem o que e porquê, ele correu como nunca antes o fizera. Foram os minutos mais longos de sua vida, ele sentiu tudo à sua volta mais forte e se sentia mais fraco ao mesmo tempo. As coisas ficam mais fortes à noite, seus pés tocando o chão estavam mais pesados, os barulhos, os pensamentos… e suas lágrimas, que contornavam as redondas bochechas, pareciam mais densas e quentes.

Arthur conseguiu ver sua casa, ela ficava do lado oposto da casa de João, eles seriam vizinhos da frente se não existisse aquela floresta. “Acho que se não existisse aquela floresta muita coisa seria diferente”, pensou. Ele a atravessou por toda aquela noite, ouvindo gritos e risadas por entre os troncos, folhas secas e galhos distorcidos. Ele entrou, subiu para o segundo andar tentando se convencer de que tudo não passara de um sonho. Tentando esquecer. Esquecer e ignorar é mais simples. Deixou os sapatos do lado da cama, se deitou e dormiu, enquanto a neblina lá fora fazia seu trabalho.

Nada ousava acontecer ali. As casas espaçadas com os tetos de telha irregular abrigavam famílias de no máximo seis indivíduos, e agora, no mínimo dois. Era fácil viver ali, pensava Arthur, “bem, na verdade acho que nunca de fato foi tão fácil assim”, embora uma ponta de dúvida teimasse em atrapalhar o seu conforto.

 

Clara Madruga Lautert nasceu em Porto Alegre, em julho de 2003. Gosta de filmes, livros e contos fantásticos, de terror e ficção científica, mas, principalmente, livros de terror. Seu autor preferido é Stephen King. Ela sempre gostou de histórias de terror e escreve contos do gênero desde os 11 anos de idade mais ou menos.

 


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