A GRIPE NEGRA - Conto Clássico de Ficção Científica - Edgar Wallace
A
GRIPE NEGRA
Edgar
Wallace
(1875
– 1932)
Dr.
Hereford Bevan, diretor do Laboratório de Ensaios do Instituto de Doenças
Tropicais Jackson, jovem cientista, estudioso e absorvido pela preocupação de
ser útil à humanidade, olhava, pensativo, para um pequeno coelho do Cabo, que
roía calmamente um punhado de ervas sobre a mesa. O animalzinho, naturalmente,
sofrera a inoculação de um soro e se achava sob observação. Não parecia apresentar
o menor sintoma de anormalidade. Mas, quem o observasse melhor, verificaria que
estava cego. Depois de um quarto de hora de vigilância, o médico agarrou o
mísero coelho pelas orelhas e internou-o novamente no viveiro, passando, em
seguida, ao salão de estudos.
Stuart
Gold, seu ajudante, achava-se sentado em cima de uma enorme carteira, de
cachimbo a boca, verificando uma série de cálculos, trabalho que interrompeu à
chegada de Bevan.
—Então?
— perguntou — como vai o coelhinho?
—O coelhinho? Comendo tranquilamente —
respondeu Bevan, com irritação.
—Nenhuma
mudança?
Bevan
abanou a cabeça negativamente e consultou o relógio.
—
Que horas... —começou ele.
—
O trem que vem do cais chegou há dez minutos — disse Stuart Gold. —Telefonei à
Estação de Waterloo. Ele não deve tardar por aqui.
Bevan
começou a passear de um lado para o outro, com as mãos enfiadas nos bolsos.
Minutos depois, encaminhou-se para a janela e deitou um olhar sobre a rua
intensamente movimentada. Os ônibus apinhados passavam em cortejo sem fim. Os
passeios achavam-se repletos de transeuntes, pois aquela era a artéria mais
frequentada do West End de Londres.
No
momento em que Bevan olhava, parava um taxi em frente à porta e descia dele um
homem com a agilidade da juventude, embora as barbas grisalhas e o enrugado
rosto vermelho denotassem que ele entrara na casa dos sessenta.
—É
ele! — exclamou Hereford Bevan, precipitando-se do salão para receber o
visitante:
—
É muita bondade sua, professor, o ter vindo — disse, apertando efusivamente a
mão do viajante. — Desde que telegrafei, tenho vivido apreensivo, pela ideia de
que o fiz empreender uma viagem inútil.
— Qual, nada disso! —interrompeu o velho. — Eu
viria à Europa de qualquer forma e o seu telegrama apenas apressou minha
partida. Como vai o senhor? Parece bem-disposto...
Hereford
Bevan conduziu o recém-chegado ao salão de estudo e apresentou-o a Gold.
O
professor Van der Bergh era um desses homens que nunca ficam velhos. Seu olhar
azul era tão claro como tinha sido aos vinte anos, seus lábios tão prontos a
sorrirem como nos tempos de sua mocidade. Professor de patologia, era também um
grande anatomista e um dos maiores bacteriologistas dos Estados Unidos. As dúvidas
e apreensões de Bevan eram até certo ponto justificáveis, embora se sentisse em
parte aliviado por saber que o professor apenas apressara a vinda já projetada
e que ele não seria responsável por uma viagem que temia acabasse num
desapontamento.
—Vamos!
— disse Van der Bergh, arrastando a poltrona para junto da chaminé e
sentando-se. — Deem-me um minuto para acender meu cachimbo e estarei pronto a
ouvi-los.
Tirou
algumas fumaças do companheiro inseparável e, antes que Bevan tivesse tempo de
principiar, acrescentou:
—Presumo
que a epidemia de janeiro os assustou.
Hereford
Bevan balançou afirmativamente a cabeça.
—Não
me admira — disse o professor, pensativo. — A epidemia de 1918[1] já
por si foi terrível. Não chamarei esta última de gripe, pois penso que poucos
da nossa classe poriam esse letreiro a uma moléstia devastadora que apareceu da
forma mais misteriosa e, também, misteriosamente desapareceu.
Ele
maneou a barba, olhando pela janela.
—
Não ouvi teoria alguma sobre essa nova epidemia que me tivesse satisfeito. O
povo fala de "contágio", de "infecção", mas quem infecionou
ou contagiou as tribos selvagens do centro da África, no mesmo dia em que
famílias inteiras de esquimós eram atacadas em regiões do Círculo Ártico,
isoladas, portanto, inteiramente, do resto do mundo?
Bevan
abanou a cabeça e redarguiu:
—É
um mistério que ainda não esclareci e não tenho esperanças de elucidar.
—Eu
não diria isso — continuou o professor. — Estou sempre na esperança de descobrir
a pista das causas primárias, por mais difíceis de encontrar que sejam. De
qualquer maneira, não concordo em chamar esse recente surto como gripe, e, na
realidade, pouco nos interessa que nome lhe demos neste instante. Você
realmente pode chamá-lo de “praga” ou “flagelo”. Tratemos, entretanto, da epidemia.
Gostaria de comparar minhas observações com as suas, pois sempre considerei
idôneos os relatórios deste Instituto. Suponho que tentaram convencê-lo de que
a investigação deste caso particular estava fora do terreno das moléstias
tropicais.
Stuart
Gold sorriu e declarou, secamente:
—Somos
lembrados disso, todos os dias.
—Bem.
Digam-me o que sucedeu nesta última epidemia — solicitou o professor.
O
Dr. Bevan sentou-se à mesa, abriu uma gaveta e, tirando de lá um livro de
notas, ajuntou:
—Dar-lhe-ei
um breve relatório, sem apresentar estatísticas. No dia 18 de janeiro, aproximadamente
às três horas, o segundo surto dessa doença invadiu o país e, tanto quanto
sabemos, o continente inteiro.
—Quais foram os sintomas?
—Os enfermos
começaram a lacrimejar durante um quarto de hora e sentiram um terrível
mal-estar, acompanhado de violentos soluços, durante uns vinte minutos.
—Isso foi o que também sucedeu em Nova York —
interrompeu o professor —, e esse sintoma foi seguido cerca de seis horas de
ligeiro aumento de temperatura, arrepios e sonolência.
—O mesmo ocorreu por aqui —
declarou o Dr. Bevan. — E, pela manhã, todos se sentiam novamente bem-dispostos,
como se nada houvesse sucedido. O fato ocorrido teria, sem dúvida, passado despercebido,
se não o houvessem registado diversos hospitais. Gold e eu fomos atacados
simultaneamente. Imediatamente, coletamos um pouco do nosso próprio sangue e,
depois de algum trabalho, conseguimos isolar as bactérias...
O
professor deu um salto e exclamou, vivamente surpreendido com a revelação:
—Então,
os senhores são as únicas pessoas no mundo que as têm. Ninguém mais, ao que
conste, se lembrou de tomar essa precaução.
Stuart
Gold levantou uma redoma de vidro que cobria um microscópio, tirou de uma caixa
uma delicada lâmina e colocou-a sob a lente. Depois de focá-la
convenientemente, acendeu uma luz encoberta por um abajur, atrás do
instrumento, e convidou o professor a examinar a lâmina. O professor Van der
Bergh colou o olhar à lente, em demorado exame.
—Magnífico!
— disse, afinal. —Nunca vi este bicho antes. Parece um pouco com um tripanosoma.
—
Foi o que eu disse a Bevan — observou Stuart Gold.
O
professor continuava a examinar:
—Parece
com ele e não parece —observou. — Naturalmente, é absurdo pretender que os
senhores foram atacados pela doença do sono, que teriam certamente tido se
fosse um tripanosoma, mas, sem dúvida alguma, este micróbio é novo para mim.
Voltou
a sentar-se na poltrona, soltando baforadas de fumo.
—E
que fizeram os senhores?
—Preparei
uma cultura — disse Bevan — e inoculei seis coelhos do Sul da África. Dentro de
uma hora, apresentavam os primeiros sintomas. Os olhos começaram a lacrimejar e
continuaram durante o prazo já observado. Seis horas depois, a temperatura
subia. Na manhã seguinte achavam-se todos bons.
—Por
que escolheu os coelhos do Cabo? — perguntou Van der Bergh, curioso.
—Porque apresentam os sintomas secundários de
qualquer enfermidade duas vezes mais rápido do que qualquer ser humano, pelo
menos de acordo com minhas observações — explicou Bevan. —Achei-os por acaso,
quando estava em Grahamstown, na África do Sul, e foram cobaias muito úteis
para mim. Eu apenas queria que você conhecesse o micróbio...
O
professor ergueu os olhos bruscamente.
—Notaram
os senhores outros sintomas? — perguntou professor.
Bevan
assentiu.
—Há
cinco dias passados, apareceu o segundo sintoma, como vou mostrar ao professor.
Bevan
conduziu o visitante ao laboratório e suspendeu o coelho sob a luz brilhante de
uma lâmpada. O professor apalpou-o alguns instantes.
—Temperatura
normal e parece também em estado perfeitamente normal. Que tem ele?
Bevan
segurou o animalzinho e voltou a cabeça do mesmo em direção à luz.
—Nota
alguma coisa, professor?
—Deus
do céu! Ele está cego! — exclamou Van der Bergh.
Bevan
confirmou a observação:
—Ha cinco dias que ele está cego.
—Mas
— disse Van der Bergh, olhando espantado para Bevan. — O senhor quer dizer...
Bevan
assentiu.
—Quero
dizer — disse Bevan — que se o sintoma secundário se manifestar, como deve,
dentro de duas semanas...
Calou-se,
sem concluir a terrível observação. Tornara a colocar novamente o coelho sobre
a mesa e estirara a mão para acariciar-lhe as orelhas quando, de repente, o
coelho recuou, assustado. Repetiu o gesto e o animal tentou escapar-se
novamente.
—Ele
agora está vendo — disse o professor.
—Espere
um instante — atalhou Bevan.
Apanhou
uma tabuleta onde estava pregado um papel, consultou o relógio e tomou um
apontamento.
—Graças
a Deus, a cegueira só dura cento e vinte horas! — exclamou.
—Mas,
que quer o senhor dizer com isto? — perguntou ansiosamente Van der Bergh. —Acha
que o mundo inteiro vai ficar cego durante cinco dias?
—É
a minha opinião — respondeu o outro.
— Ufa! — exclamou o professor, enxugando o
rosto com um grande e vistoso lenço.
Voltaram
ao salão de estudo, onde o professor examinou cuidadosamente todos os apontamentos
que haviam sido tomados. Nesse intervalo, Bevan, que fora examinar os outros
coelhos, voltou e disse:
— Todos recuperaram a visão. Estavam inteiramente
cegos pela manhã.
Ao ouvir essas palavras, o professor se
levantou e disse:
—Vou
à embaixada. E o melhor que os senhores fazem é ir prevenir o diretor do
Ministério da Saúde Pública. É dever de vocês avisá-lo imediatamente da
calamidade que nos espera.
Bevan
não esperou um instante. Tomando o chapéu, dirigiu-se imediatamente ao
Ministério da Saúde Pública. Ao chegar, informaram que o Dr. Douglas Sexton não
podia recebê-lo por se achar excessiva mente ocupado. Insistiu, declarando tratar-se
de um caso urgentíssimo e de importante interesse público. Foi, afinal,
introduzido junto ao titular que, ao recebê-lo secamente, o convidou a ser explícito
e breve. Bevan expôs a descoberta do bacilo e o resultado das experiências que
fizera com os coelhos.
Ao
terminar a sua breve, porém animada exposição, o ministro parecia fulo de raiva
e impaciência.
—
E quer o senhor mesmo que eu dê crédito a uma infantilidade dessas? —
perguntou, afinal, mal podendo conter-se.
Bevan
reiterou suas afirmativas com veemência, mostrou ao titular o perigo em que
todos se achavam; a necessidade urgente de providencias imediatas. Mas tudo em
vão. Ao terminar seu enfático discurso, o ministro tentou convencê-lo de que
estava sendo vítima de uma alucinação qualquer e que lastimava muito não poder
tomar em consideração seu aviso. Se tal coisa houvesse de acontecer, o seu
Ministério, de modelar organização, não podia deixar de sabê-lo. E se nada
sabia era porque nada havia...
Bevan,
desesperado, voltou para casa. Durante os sete dias que se seguiram, envidou,
com Gold, esforços sobre-humanos para atrair a atenção das autoridades. Médicos
eminentes que consultaram foram de opiniões diversas. Alguns vieram,
entretanto, ao laboratório para examinar as observações anotadas. Outros,
convencidos da própria sapiência, simplesmente riram da história.
—Tem
o senhor alguma dúvida sobre o que afirma? — perguntou a Bevan o professor.
—A
única dúvida que tenho é sobre se meus cálculos com relação ao tempo estarão
exatos. Notei, em experiências anteriores, que, nesses coelhos, a doença se
desenvolve duas vezes mais depressa que no corpo humano, mas não estou certo se
esta regra é invariável.
—Minha
embaixada telegrafou os pormenores de sua descoberta para Washington e o
governo está considerando muito seriamente o caso, preparando-se como pode para
enfrentar a calamidade.
Voltou
o professor para o seu hotel, prometendo visitá-los pela manhã seguinte. Bevan
passou o resto do dia trabalhando ativamente no laboratório. Eram quase quatro
horas da manhã quando foi deitar-se, caindo em sono pesado minutos depois.
Quando acordou, sentiu que dormira bem e estava com boa disposição. Não
compreendeu, porém, por que a escuridão do quarto era tão profunda. Lembrou-se
de que só se deitara pela madrugada e não era possível que só tivesse dormido
duas horas. Certamente era noite de novo. Estirou a mão e apertou o interruptor
elétrico que, todavia, não acendeu a luz. À sua cabeceira havia uma caixa de fósforos.
Apossando-se dela, riscou um, que não emitiu a menor luz. Atirou-o fora, acendendo
outro, com o mesmo resultado. Conservando, porém, o fósforo na mão, sentiu de repente
uma sensação de queimadura e, soltando um grito, deixou-o cair no assoalho.
Havia queimado os dedos! Levantando-se cautelosamente da cama, dirigiu-se à
janela e, abrindo-a, constatou que a escuridão era completa. Nem mesmo
distinguia o menor contorno. Nisso, o relógio do uma torre bateu 12 badaladas.
Doze horas! Era impossível que fosse meia noite ou meio dia com tudo escuro!
Procurou, às apalpadelas, a roupa e começou a se vestir. A janela conservava-se
aberta. Nem o menor ruído de trafego se ouvia da rua. Londres estava silenciosa
como um túmulo. Ao terminar, foi tateando até a porta do quarto e abriu-a. Uma
voz o chamou. Era Gold.
—É você, Bevan?
—Sim.
sou eu... O que há?
E
só então teve a compreensão nítida da horrível catástrofe!
—Cego!
— murmurou. —Estamos todos cegos!
—Cego—
repetiu Gold. —Que coisa horrível!
—Calma
— disse Bevan com firmeza. — E só por cinco dias, Gold. Não perca o juízo!
—Oh,
eu não perderei o juízo! — disse Gold, com voz incerta. — Mas é horrível, não
é? Meus Deus! É horrível!
—Desçamos
ao salão de estudo. — disse Bevan. —Não se esqueça dos degraus embaixo, Gold.
Conte-os. São ao todo vinte e quatro.
Iam
a meio caminho quando ouviram uma lamúria infernal ao pé da escada, acompanhada
de choro feminino, no meio do qual se ouvia a voz da velha governanta.
—
Cale-se, senhora! Por que está fazendo essa algazarra?
—Oh,
senhor! — gemeu a pobre mulher. — Não vejo nada! Estou cega!
—Ninguém verá, mas só durante
cinco dias, senhora Moreland. Fique calma e tranquila.
Depois
de a acalmarem, encontraram, afinal, o salão e iam sentar-se quando uma voz
gritou de fora:
—Alô?
É aqui o Instituto Jackson?
—Graças
a Deus que o vemos, professor. O senhor arriscou-se muito...
O
visitante entrou, tateando, para encontrar o caminho.
—Felizmente,
eu estudei ontem o trajeto do meu hotel para o Instituto. Levei duas horas para
vir aqui. — disse ele.
—Sofreu
algum acidente?
—Não.
Apenas fui de encontro a um ônibus estacionado no meio da rua. Penso que a
cegueira é geral...— Meus amigos, os senhores terão que tatear seu caminho até
a Repartição do Governo e conversar com as autoridades. Vai haver um verdadeiro
caos no mundo, nestes cinco dias. Espero que os seus cálculos não estejam
errados, Bevan!
Bevan
permaneceu em silencio.
—Se
só forem cinco dias, pouco mal sucederá. Mas se forem dez ou mais... — disse
com voz dramática, o professor.
O
coração de Bevan ficou gelado pelo tom de dúvida com que falou o visitante.
—E
se forem dez dias? —perguntou, afinal. —A humanidade inteira morrerá — disse o
professor, com solenidade.
Seguiu-se
um profundo silêncio.
—Não
veem os senhores que a fome dizimará a quase totalidade dos homens? Como
poderemos, cegos, procurar alimento?
Um
arrepio de horror percorreu a espinha dorsal de Bevan.
—Todos
os trens estão parados — continuou o professor. Todos os transportes e, em um
ou dois dias, todas as provisões dos armazéns terão sido consumidas por aqueles
que conseguirem lá chegar, sendo impossível tornar a renová-las. Não se poderá
tirar leite, nem colher coisa alguma. Todas as estações de força estarão
paradas. Nenhum carvão estará saindo das minas. Vejamos, onde está o telefone?
Bevan procurou
o aparelho e, tendo-o achado, passou-o ao professor.
Um
instante depois, este o devolvia.
—É
inútil — disse. —As empregadas não podem ver os sinais.
Bevan
ouviu um ruído metódico de quem fuma cachimbo e o perfume do tabaco
confortou-o. O professor fumava! Levantou-se com passo incerto e disse:
—Ponha
sua mão no meu ombro, Dr. Van der Bergh, e você, Gold, segure o braço ou o
paletó do professor.
—
Onde vai? — perguntaram ambos.
— À cozinha. Ha lá alguma comida e estou morto
por comer qualquer coisa.
Pão
seco, bolachas e queijo, seguidos de um copo ou dois d'agua, foi a magra
refeição que fizeram. Ao terminar, Bevan deu início à sua peregrinação através
da noite que reinava. Saindo de casa e conservando-se junto aos edifícios,
alcançou a Rua Cockspur e depois Whitehall. Em meio caminho desta, foi de
encontro a uma pessoa e, apalpando-a, reconheceu os botões da farda do policial.
—Alô!
Um policial?
—Sim senhor — disse uma voz. —Tenho estado
aqui desde a manhã. O senhor está em Whitehall. O que é que sucedeu?
—Foi
uma cegueira temporária que atacou todo o mundo — disse Bevan, falando
rapidamente. — Sou médico, senhor policial. Diga a todos que encontrar que isso
passará dentro de poucos dias.
—Não
é provável que eu encontre quem quer que seja. Tenho estado aqui, de pé, sem
ousar mexer-me.
—Quando
foi o senhor atacado?
—Às
dez horas, mais ou menos.
—Que
distância é daqui a Downing Street?
—Não
sei bem. Penso que não pode ser muito longe.
Depois
de duas horas de horrível peregrinação, aos trambolhões, encontrando veículos
parados e transeuntes aturdidos, ouvindo os soluços de uns, as pragas e as
lamentações de outros, ou o riso atroz de alguém que enlouquecia, chegaram
afinal ao Ministério. Ouviam-se vozes em discussão, entre as quais Bevan,
reconheceu imediatamente, a do Dr. Sexton. Deu um passo à frente, indo abalroar
com o ilustre médico.
—Alô?
Dr. Sexton?
—Quem é?
—O Dr. Bevan — respondeu este.
—É
o homem, senhor ministro, de quem falei há pouco... — explicou a celebridade.
—Venha
por aqui, doutor, disse uma voz. — É melhor o senhor ficar, Dr. Sexton. O
senhor jamais acharia o caminho de casa.
Bevan
sentiu-se levado para o que lhe pareceu um vasto salão, pois sentia um grosso tapete
aos pés.
—Penso
que o senhor tem uma cadeira, junto de si — disse a mesma voz que o convidara a
segui-la. — Sente-se e conte-me o que sabe.
Bevan
narrou o que sabia.
—Penso
que só dura cinco dias — continuou — e, também, só poderemos durar uns cinco dias.
O senhor sabe: o suprimento de comestíveis está suspenso. Não há meio algum de
remediar essa terrível catástrofe!
—Poderia o senhor lembrar alguma ideia?
—Penso
que sim, disse Bevan. — Há um certo número de institutos de cegos no país. É
preciso que o senhor se comunique com eles e que os cegos treinados iniciem imediatamente
os serviços mais urgentes. Penso que, com algum esforço, poderia se obter algum
alivio à terrível, se ela não se prolongar.
Houve
uma pausa.
—Talvez
sim — disse a voz. — Felizmente, os telégrafos ainda estão com as suas baterias
em ordem e as mensagens poderão ser transmitidas e recebidas pelo som. O
telégrafo sem fio também está em estado de funcional. Vou mandar imediatamente
executar a sua ideia.
Os
dias que se seguiram foram um pesadelo macabro, dias em que os homens cambaleavam
em um mundo desconhecido, gritando, pedindo comida em altos brados.
A
provisão d'água se esgotou na noite do segundo dia. As máquinas tinham cessado
de trabalhar. Felizmente, choveu copiosamente e a população pôde reunir
provisão do líquido precioso. O Dr. Bevan fez várias excursões, numa das quais
encontrou alguém que lhe disse estar parte do Strand em chamas. O incêndio fora
causado por um lampião de querosene que havia sido derrubado ao chão, comunicando
fogo ao prédio e aos da vizinhança. O médico dirigiu-se ao Strand, mas teve de
voltar, em vista da fumaça que de lá vinha. De volta ao Instituto, errou o caminho,
e teria ficado irremediavelmente perdido se não tivesse encontrado uma jovem,
contra a qual abalroara.
—O
Instituto Jackson? — perguntou ele.
—Oh,
Sim! Sei onde é. Vou levá-lo lá.
Pôs
a caminho, conduzindo-o com tanta segurança e rapidez que por um instante o médico
pensou que essa mulher escapara à epidemia. Perguntou-lhe se assim fora.
—Oh,
não! — disse ela alegremente. — É que sou cega de nascença. O governo nos
encarregou de ajudar as pessoas extraviadas na rua.
Continuando,
informou a Bevan que havia incêndios em diversos pontos de Londres. Que,
felizmente, não tinha havido encontro de trens, segundo o ministro lhe havia
dito.
Ao
ouvir essas palavras, Bevan interrompeu-a:
—O
ministro disse à senhora? — perguntou, surpreso.
E,
de novo, ela riu.
—Eu
o conheço, disse. — Sou filha de Lord Selbury. Lilian Selbury.
Bevan
lembrava-se do nome e, curioso, parecia-lhe, embora o tom de sua voz fosse
claro, que ela devia ser alguma mulher de idade madura.
Segurando-lhe
as mãos, encaminhou-se vagarosamente para casa.
—Hei de lhe parecer horrível quando digo que
estou sentindo prazer nisso. No entretanto, estou. É tão bom poder ajudar e ter
pena dos outros! Naturalmente, é uma catástrofe horrível e sinto-me também
apreensiva desconsolada. Todos antes me diziam que eu era bela. E como agora
ninguém enxerga, ninguém pode mais dizer-me isto! Algo é triste, não é?
E
sorriu novamente.
—Que
pensa o governo desta catástrofe? —perguntou Bevan.
—Está
terrivelmente abalado — disse ela em tom mais grave. —Eles estão tão
acostumados a contar com os jornais... Agora, porém, não temos jornais...
Chegaram,
afinal.
—Faça
o favor de subir por aqui, assim. Estamos nos jardins de Whitehall. O senhor
ouviu falar do Dr. Bevan? Eles estão com uma fé imensa nele! É um grande sábio!
Hereford
Bevan sentiu um princípio de incêndio no rosto.
—Espero
que essa fé seja justificada — disse-lhe com um sorriso. —Sucede que sou eu o
tal médico extraordinário.
Ele
sentiu os dedos da jovem apertarem sua mão em um espasmo de surpresa.
—Será,
realmente? — perguntou ela, com interesse. — Ouça!
Pararam,
enquanto ouviam uma sineta que tocava.
—
É um dos nossos cegos de St. Mildred — disse ela. — O governo iniciou um
serviço de aviso aos transeuntes. É o único meio que temos de dar notícias ao
povo.
A
jovem levou-o à sua residência, deixando-o em seguida.
O
professor Van der Bergh fez uma exclamação de regozijo ao notar sua chegada.
—
É você, Bevan? Tenho um resto de presunto. Mas tome cuidado. Não vá se cortar.
Bevan
e Gold passaram o dia alimentando os diversos espécimes do laboratório. Raiou o
quarto dia e, à tarde, ouviu-se bater à porta. Era a jovem da véspera.
—Tive
ordens de me pôr à sua disposição, Dr. Bevan — disse ela. —O governo informa
que poderá precisar do senhor a qualquer momento.
Bevan passou o dia vagueando
pelas ruas, sempre acompanhado de sua inteligente guia. Aproximava-se a
centésima vigésima hora e ele se sentia não só ansioso de assistir ao final
dessa experiência trágica por que passara o mundo, como estava possuído de um
desejo secreto de ver o rosto dessa jovem amável, de voz clara, e que o vinha
impressionando profundamente.
O
grande relógio da torre bateu, enfim, a hora ansiosamente esperada. A luz,
entretanto, continuava ausente. Passou-se outra hora e mais outra! Sentiu Bevan
a alma presa de inexprimível pânico. E se os seus cálculos estavam errados? Se
a noite fosse eterna e o que sucedera aos coelhos não sucedesse ao homem? Que
pensamento horrível!
A
jovem Lilian permaneceu ao seu lado durante o dia inteiro, confortando-o
heroicamente. À tarde, Bevan foi chamado a com- parecer ao gabinete do Conselho
dos Ministros.
—Passou-se
a centésima vigésima hora, Dr. Bevan — declarou o ministro.
—Sim,
senhor! — disse Bevan em voz surda. — É, entretanto, humanamente impossível
assegurar a hora exata.
O
silêncio que se seguiu foi horrível. Como que petrificando e gelando-lhe o
coração, Bevan não dormiu nessa noite. Passou-a vageando pelas ruas de Londres.
Deviam ser duas horas da manhã quando voltou para casa, encontrando a jovem
Lilian à sua espera, acompanhada do professor.
—Há
outra reunião do Ministério, doutor — disse ela. — Queira fazer o obséquio de
acompanhar-me.
—Espero
que não a tenha feito esperar por longo tempo — disse Bevan, com voz alquebrada
e surda, tão diferente da sua que causou um sobressalto à gentil guia.
—Tenha
coragem, Dr. Bevan. — O mundo tem diante de si um imenso problema que é preciso
a todo o transe resolver.
Tinha
Bevan dado alguns passos quando, de repente, agarrando-se a uma porta, gritou,
com voz rouca de emoção:
—Espere!
Espere!
E
segurou o braço da jovem. Seria acaso pura imaginação? Ainda era noite escura.
Caía uma chuva fina, mas a escuridão parecia manchada de tons menos opacos.
Uma
faixa escura se apresentava, na treva, diante dele, numa coisa qualquer que
parecia pendurada no centro de seus olhos
e, além desta, uma forma cor de púrpura. E ele teve a percepção de que estava
olhando para uma rua de Londres e o objeto escuro era um combustor da iluminação
que seus olhos estavam vendo. Londres negra, Londres sem luz, Londres, cujas
ruas estavam coalhadas de veículos imóveis, que se haviam quedado inertes no
dia em que as trevas haviam tombado sobre o mundo. Bevan soltou, afinal, um
longo suspiro.
—Que há? Que há? — perguntou, as sustada, a
jovem.
—Estou
vendo! Estou vendo!
—
Que alegria, meu Deus!
Cingindo
a jovem aos braços, procurou nervosamente um fósforo e, acendendo-o viu, àquela
luz bendita, um rosto espiritualmente belo, voltado para o seu.
—Posso
vê-la — murmurou ele. — Meu Deus! E a senhora é tudo que já vi de mais belo até
hoje!
Londres
dormira, apenas, pela força do hábito, e acordou, ao clarão cinzento da manhã,
para olhar e ver um mundo que estivera perdido há cinco dias e meio. E,
assistindo ao despertar de seu organismo imenso — das industrias que reviviam,
dos trens de ferro que partiam, dos armazéns que se reabriam, das rodas da vida
que recomeçavam seu giro triunfal, do povo humilde e grato pela restauração
desse bem supremo, por cuja ausência sofrera a fome com paciência e fortaleza
—Bevan deixava-se empolgar por inexprimível sentimento de satisfação íntima, de
confiança de si mesmo...
Traduzido e adaptado
por autor desconhecido do início do séc. XX. Fonte: “A Noite Ilustrada”, edição
de 17 de fevereiro de 1932. Ilustração:
Émile Antoine Verpilleux.
[1]
O autor refere-se à chamada “gripe espanhola’, pandemia causada pelo vírus
Influenza A, que causou a morte de mais de 50 milhões de pessoas no mundo
inteiro. O conto de Wallace foi publicado originalmente em março de 1920.
Edgar Wallace, vou ler...no passado, a Ediouro publicava bolsilivros em versões populares deste autor.Me lembro, eu tinha um amigo professor que gostava muito desse autor.
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