MYSTERIUM TREMENDUM - Conto de Terror - David Leite
MYSTERIUM TREMENDUM
David Leite
Carregava os vasos de porcelana um por
vez, pelo peso, a colocar no sacro promontório. Um, dois passos hesitantes
sobre a pequena escada, desviando-se da bata que insistia em entrelaçar o linho
entre suas pernas, o alçavam para perto do martirizado nazareno. Os vasos, com
fragrantes flores, ternas e bem cuidadas, contrastavam com o a dor da imagem
judiada. E era essa mesma a importância daquele aludel florido. O estoicismo
cristão, a salvação pelo calvário, a ternura das pétalas em comunhão com a
rústica imagem de madeira talhada e pintada na representação da dor. Pensou o
padre, repetindo os ritos de toda manhã de domingo. Retirar os vasos. Aguar as
rosas. Retorná-los ao seu altar. Justo lugar.
Era sua liturgia particular. Ninguém
além dele realizava a arrumação daquele rosário de flores em volta do Senhor. O
encanto numinoso e dedicado do padre era dos mesmos gestos reverentes que
praticaria para todos os fiéis, dali a momentos. Uma homília muda, pois das
palavras que poderia dizer seria apenas pelo prazer de ditas por tê-las
encontrado, dentro do inefável gosto do cuidar e adornar as dores de Jesus. As
cantilenas, salmos, e demais verbos da missa de depois não encontravam a
catarse daquele momento íntimo. Talvez seria essa mesma tua missão. Emanar para
todos ali, embaixo do púlpito, o mesmo sentimento de epifania, de religação, de
encontro com o divino que experimentava ao realizar essa pequena tarefa que fez
sua rotina.
Coloca-as todas de volta e segue para o
amplo espaço de ladrilho que servia da nave da igreja, para contemplar a obra. O
madeiro de cristo e os querubins de flores, dali visto. Se causaria aos
devotados da missa a mesma impressão solene que tinha quando próximo do altar.
Nada mais arranjado e significativo de toda uma crença havia em qualquer outro
canto do templo. Os vitrais, as imagens, os santos, as indumentárias e toda
coleção sagrada jamais encontraria melhor profissão de fé do que o arranjo que
fez. A imagem dorida de moldura florida. A mortalidade adornada pela
vivacidade. Ali concentrava uma crença. A morte e vida. Portanto todas as
manhãs de missas batizava novamente aquelas rosas. Aquilo era a procissão
estagnada que o orgulhava naquele templo.
Eis que nota, apenas naquele momento, a
desarmonia. Dos oito vasos de sempre, apenas sete estavam. Absorto na rotina,
não deu pela falta de um deles. Seria um sacrilégio manter o arranjo assim.
Dentro dos pecados que se deu por não cometer, além de todas as obrigações da
batina, esse era um dos tais. Correu para o altar, procurou em cada recanto
pelo vaso de flores faltante. Nada. O dia ainda não tinha alvorecido, o que
significava que estava sozinho na igreja.
Leva a mão à cabeça, quase em
desespero. Não haveria tempo de substituição, ainda mais de flores que cuidou
por tanto tempo e de um cântaro ainda mais tempo de posse do templo. Procura
novamente pelo chão, pelo altar, pelos armários e pelos assentos. Sem indício.
Tentava se recordar algum momento, nos últimos dias, se havia retirado a peça
dali. Não. Tinha ordens expressas para todos seus delegados que jamais fizessem
algo com aquelas peças. A arrumação era de sua responsabilidade, sempre.
Procura novamente por todo canto da
igreja. Em dado momento, atrás do púlpito, ergue o olhar para a placa dourada: Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem
reverteris. A entrada para a cripta.
Evitava aquele lugar. As escadas que
desciam em uma espiral escura, os brutos tijolos cobertos de limo e humidade, o
gotejar incessante e o sopro nauseabundo que vinha dali. Não havia nada de
sagrado ali, ainda que homens santos antes dele e provavelmente ele próprio
encontrasse ali o eterno descanso.
Ainda assim, não havia outro canto em
que não procurou o vaso faltante. Se lhe pregaram uma peça de o esconder ali,
certamente haveria firme correção de quem podia ter feito isso.
Acendeu um castiçal do altar e toma o
rumo da cripta. Levanta a batina como uma donzela pulando em poças, mas em cena
mais dantesca, para zelar em cada passo naqueles degraus limosos e gastos. Após
as primeiras voltas, e já estava em frente aos ossários da capela. Em entradas
nas paredes, os restos de servidores de deus de menor importância, pelo menos
para a Ordem eclesiástica, e não para o Deus a quem serviram, ficavam expostos.
Apenas as teias, os ossos, e os restos das mortalhas.
Na cripta, no mais baixo nível da
estrutura da capela, encontrava a tétrica visão que o afastava dali. Em
contraversão ao cuidado de seu altar, de sua igreja, o abandono mórbido
daqueles que foram servis a sua fé. O chão de terra batida, enlameado pela
infiltração que corria em filetes profusos do teto, as paredes dominadas pelos
fungos, o som de insetos e outros seres rastejando... O que veio do pó, ao pó
retornará, como bem lembrado na entrada. No entanto, para ele, tal visão era
uma provação para aqueles que tão honrosamente pensaram em se dedicar a tarefa
do evangelho.
Ali, em cima de uma das tumbas, seu
vaso. Se antes temperava a dor da cruz, desta vez estava pesadamente mergulhada
no túmulo decrépito. Solitária, sem as outras sete companhias, naquele abismo,
em pouco tempo já murchara e conspurcara em sua leveza. O vaso, lanhado quase
de fora a fora, para completar o desamparo. Não haveria mais de um dia que o
vaso estivesse ali e já estava em condições precárias. O padre desanima ao se
deparar com isso. Não havia condições de colocá-las mais com as outras.
Se aproxima do túmulo para resgatar a
flor.
Quando se aproxima do túmulo, coloca o
castiçal de lado para pegar o vaso com as duas mãos, tentando imaginar quem o
havia colocado ali, dentre todos os da igreja.
Uma mão descarnada salta da fresta do
tampo e o agarra pelo pulso.
Uma segunda mão empurra o tampo até
cair de lado e revelar o resto do cadáver.
Uma voz, estridente, crepitante como o
bater de ossos ocos ecoa pelo sepulcro:
— Eis que agora viste, de fato, o que
te aproxima de Deus? Mais que a frivolidade de tuas rosas, o narcisismo de tuas
vestes, o desvelo de tuas preces. É aqui que tu te aproximas de Deus. Teus
olhos e os dos teus se tornaram mais opacos e inexistentes que os meus. Olham e
não veem. Não veem os abismos que espreitam, colorem e perfumam todas as dores,
criam grandes e suntuosos templos vazios de tudo, enquanto caímos e apodrecemos
aqui, embaixo de vossas estruturas. O santo ofício, todas as preces, todos os
ritos, cessam com o passar do véu do mistério. Leva tua rosa, continua acima de
nós enfeitando tua igreja que para nós é apenas nossa lápide. Mas lembra-te de
onde estamos, por que a nós te juntarás.
O padre, em pleno terror, se solta da
mão do cadáver. Cambaleante, desesperado, sobe as escadarias com o vaso, no
escuro. A voz morre no fundo da cripta enquanto o padre chega resfolegante ao
patamar da igreja
.
Ele olha o vaso, manchado, quebrado e
com a flor quase morta. Olha para as outras no altar.
Sim, a colocaria com as outras.
Morta e manchada. Assim que deveria se
lembrar daquilo.
David
Leite, nascido e criado em Jandira. Participou das
Antologias publicadas “Antologia Favo de Mel” (2015) e “Antologia Jandira e
Outras Terras” (2017) da cidade de Jandira. Atuou como o Personagem Zepo na
montagem da Peça “Piquenique no Front” de Fernando Arrabal com a Trupe Tríade
Essencial (2014). Codirigiu o filme “A Retomada” (2014) e Apocalipse de
Quintais (2014) com o Coletivo Sem Rótulo. É entusiasta na arte da escrita. Facebook: https://www.facebook.com/ david.the.leite .
Ilustração:
Francisco de Zubarán (1598 – 1644)
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