CROCODILOS - Narrativa de Horror - Narrativa Verídica - Anônimo do Século XX
CROCODILOS
Anônimo
do séc. XX
Quando
embarcamos a bordo do vapor "Dulance", que devia levar-nos de volta à
pátria, experimentamos enorme e dolorosa surpresa quando encontramos a Sra.
Morei de cabelos brancos, com o sofrimento estampado no rosto. A linda jovem que encontráramos, poucos meses
antes, estava agora transformada numa velha, já vencida na vida.
Quando
alguém de nossa equipe, mais afoito, quis fazer-lhe algumas perguntas, movido
por mórbida curiosidade, teve como resposta as lágrimas mais amargas que já
víramos chorar.
—
Como? Os senhores ignoram? Meu marido...
Não
pôde acabar a frase, mas, por fim, diante das palavras afetuosas e dos cuidados
dispensados por todos nós, acalmou-se, tomou coragem, e começou a contar o
drama como ela o presenciara.
UM
FIO DE ÁGUA
O
marido transferira-se, em sua companhia, à ilha de Madagascar para uma plantação
de cana de açúcar. Obtivera, como concessão do governo, uma extensão de terras
nas duas margens do rio Betsiboka.
As
duas margens, naquele ponto, não estavam ligadas entre si por nenhuma ponte, e
ele servia-se dum caíque para transportar-se de uma margem à outra, e, assim,
vigiar bem de perto os trabalhadores que trabalhavam na vasta concessão.
Uma
tarde, como de costume, abandonara o barracão em que morava, na margem direita
do rio, dirigindo-se para uma enseada onde estava amarrado o seu caíque. A
esposa acompanhava o engenheiro em suas excursões, mas, nesse dia, Morei
resolveu deixar a sua senhora descansando numa espreguiçadeira, armada à sombra
de enorme árvore, junto da margem do rio, onde, aliás, ela costumava descansar
quase todas as tardes, entretendo-se na leitura de seus livros, e fugir, assim,
à canícula.
Depois
de um afetuoso beijo, despedira-se da esposa, dirigindo-se para o barco, desamarrando-o
e começando a travessia, seguido de perto de vários crocodilos que, de quando
em quando, punham de fora o focinho horroroso e feroz.
Quando
o barco atingiu a margem oposta, chocou-se violentamente contra uma rocha, mas
o engenheiro não ligou muita importância ao caso. Saltou em terra e amarrou o
barco ao tronco de uma árvore, internando-se na plantação. Enquanto o
engenheiro fiscalizava o trabalho de seus empregados, por uma ligeira fenda que
se produzira no fundo do barco quando do choque com a rocha, a água ia
invadindo o barco. Em breve, o fiozinho de água se transformava numa poça no
fundo do barco, subindo devagar, mas inexoravelmente. Quando o engenheiro
voltou para iniciar a viagem de volta, o caíque estava meio inundado.
NA
SOMBRA
Assim
que o engenheiro reparou no que acontecera, pensou que o seu barco estava
inutilizado... Se ao menos passasse uma piroga para auxiliá-lo... Mas o espelho
de água estava calmo e deserto.
Olhou,
então, para o lugar onde estava descansando a mulher e, com as mãos em volta da
boca, à guisa de megafone, começou a chamá-la para que mandasse alguém até
Marovoay e de lá lhe trouxesse uma piroga. Mas a sua esposa nem sequer se mexia
em sua espreguiçadeira.
Percebia
distintamente a sua silhueta branca, os seus cabelos de um louro vivo, que se
destacavam sobre o verde escuro da floresta. Ela estava descansando,
completamente alheia ao que se passava em seu derredor. E, com o livro caído a
seu lado, dormia...
O
engenheiro experimentou uma sensação desagradável, pois não é nada prudente
dormir à beira do rio em terras africanas. E, de repente, empalideceu. Um corpo
esverdeado arrastava-se lentamente na direção de sua querida esposa, protegido
pelas altas ervas, e parava diante de sua esposa adormecida.
O
engenheiro tremeu de medo, adentrou-se no lodo, onde a água barrenta do rio se
unia à terra, e, com o corpo esticado o mais possível para frente, começou a
gritar desesperadamente, na esperança de acordar a imprudente. Mas todos os
seus esforços eram baldados. O montão horroroso de carnes recomeçara a sua
marcha vagarosa em direção à próxima vítima.
O
engenheiro percebeu, então, o enorme perigo que ameaçava a sua querida esposa.
Correu transtornado para o caíque e deitou-se com todas as forças sobre os
remos. Mas a água penetrava cada vez mais na frágil embarcação, tornando-a cada
vez mais pesada, e esta avançava cada vez com mais dificuldade. O crocodilo
aproximava-se cada vez mais de sua vítima. A mulher, adormecida, continuava
imóvel em sua cadeira, enquanto o marido vogava desesperadamente em seu
socorro, mas o caíque, a cada instante mais pesado, avançava dificultosamente,
ameaçando submergir.
O
FOCINHO ESPANTOSO
O
engenheiro Morei gritou ainda algumas vezes desesperadamente, não por si, mas
sim pelo perigo que corria sua esposa... E, de repente, seu rosto iluminou-se
do mais beatífico sorriso.
Um
de seus angustiosos gritos por fim encontraram eco em sua esposa. Ela acordara
e, súbito, seus olhos dirigiram-se à revoltante massa de carnes que se
arrastava em sua direção. O monstro, descontrolado com o movimento intentado
pela futura vítima, parara em sua marcha vagarosa e, percebendo que a vítima lhe
fugia, retomou lentamente o caminho em direção das águas limosas do rio.
A
senhora correra afanosamente para casa, mas, de repente, virando-se, reparou
que seu marido vinha atravessando penosamente o rio.
O
engenheiro, percebendo que sua esposa estava salva, entregou-se, por um
instante, ao prazer de ver fugir a vítima ao seu trágico destino, que daquele
momento em diante passava a ameaçá-lo pessoalmente. Mas, súbito, controlou a
situação. A água, que continuara a invadir o fundo da frágil embarcação, tornara
esta tão pesada que era quase impossível agora qualquer movimento com ela.
Ele
remava cada vez com mais insistência. A margem ainda estava bastante distante,
mas ali bem perto estava uma ilhota, onde cresciam árvores, cujos ramos pendiam
em direção das águas. De repente, o caíque teve um estremecimento, a proa levantou-se
e a popa afundou. O engenheiro, com um salto prodigioso, conseguiu alcançar os
ramos de uma das árvores e lá ficou o homem pendurado por cima das águas.
UMA
MANCHA DE SANGUE
Gritos
e gemidos levantam-se agora da outra margem: a esposa, de pé, com as mãos nos
cabelos e os olhos convulsionados, percebia, impotente, ao longe, a situação do
marido. Alguns indígenas acorreram logo aos gritos desesperados da mulher e
prontamente lançaram uma piroga ao rio.
O
engenheiro está lá, suspenso aos ramos da árvore, e, debaixo dele, nas águas
limosas, afloram os terríficos focinhos de dois ou três crocodilos, que se
abrem e se fecham com feroz avidez, procurando atingir o náufrago aterrorizado.
Todos
os esforços despendidos até então haviam exaurido com as suas forças. Era-lhe
impossível alcançar os ramos superiores da árvore. O entorpecimento de seus
músculos aumentava rapidamente. Os dedos, contraídos em volta dos ramos,
escorregam pouco a pouco...
Bruscamente,
abandonou os ramos e caiu n’água, entre a algazarra lúgubre dos crocodilos que
estavam esperando. E, alguns instantes depois, sobre as águas agitadas,
misturado com o reflexo das espumas, nada mais aparecia que algumas manchas de
sangue...
Fonte: "A Cigarra",
edição de novembro de 1947.
Tradução de autor
desconhecido do séc. XX.
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