MOTORISTA DE APP - Conto de Terror - Eudes de Pádua Colodino



MOTORISTA DE APP

Eudes de Pádua Colodino

“Doutor, vou contar tudo o que me lembro da noite passada. Ainda estou nervosa e assustada, mas acredito conseguir dizer-lhe o que precisa saber para esclarecer essa situação. Penso que, pela intensidade dos acontecimentos, minha memória tenha fixado bem os detalhes do que se passou.


Era madrugada, e eu circulava com meu carro pelas ruas da Zona Sul. Como o senhor já sabe, eu atendo a um aplicativo de carona exclusivo para mulheres. Para afastar o tédio e o sono, escutava as notícias no rádio, como de costume. Na escuridão do carro, brilhavam apenas o reflexo das luzes passageiras dos postes e do GPS do aplicativo. Era uma noite de trabalho mais fraca do que o habitual, com vias desertas e pouca gente circulando. Até aquele momento eu havia atendido somente a uma chamada, coisa boba, corrida curta. Quando eu já pensava em dirigir de volta para casa, recebi uma solicitação vinda dos arredores. Como eu era a única motorista da região, logo me prontifiquei a atender e fui para lá.


Chegada ao lugar, uma senhora alta me aguardava na calçada. Ela estava em frente a um prédio de fachada antiga, meio decadente, mas que eu sabia que lá funcionava uma balada underground LGBT. O local é tão discreto que você só sabe que ali é um estabelecimento deste tipo se fizer parte dos círculos que o frequentam - ou, no meu caso, se for a pessoa que os transporta para lá.


Bom, parei o carro, abaixei o vidro e confirmei a identificação dela. Assim que me informou corretamente o nome, reconheci que sua voz tinha um tom feminino muito forçado. Isso me chamou a atenção e tentei olhar a sua face: mesmo no escuro e com sua expressão oculta por longos e desgrenhados cabelos loiros, consegui ver que era um travesti.


Senhor, eu tive algumas experiências muito ruins enquanto atendia homens nos tradicionais aplicativos, por isso abandonei-os e hoje me dedico a este que é exclusivo para mulheres. Então, embora aquele cara se identificasse como mulher… Ora, ainda era um homem. Alto e forte, por sinal. Confesso que esse fato me deixou um pouco apreensiva, mas não quis expressar isso e busquei ser profissional: destravei as portas e ele entrou. Para meu alívio, preferiu se sentar no banco de trás, do lado direito. Sendo simpática, virei o espelho central em sua direção e perguntei-lhe se o destino desejado era mesmo aquele indicado pelo aplicativo, ao que ele respondeu positivamente, mas sem me olhar nos olhos. Reparei que parecia um pouco constrangido e envergonhado, então endireitei novamente o espelho e dei partida para a corrida.


O destino era longo, totalizando uns dezoito quilômetros. Eu me sentia meio idiota por nutrir tantos receios com aquele passageiro, mas não conseguia me sentir à vontade com sua presença ali. Ora, eu não me imagino uma pessoa preconceituosa, mas o senhor há de concordar que seus valores são testados quando se está na presença de um desconhecido dentro de um carro às duas e meia da manhã. E, além disso, ele estava inquieto, se mexia muito, fungava, parecia chorar algumas vezes, sempre buscando disfarçar seu latente constrangimento por alguma coisa. Evitei puxar assunto, e tentava dividir minha atenção entre a rota e o passageiro, pois parecia que ele estava à beira de um ataque de nervos ou coisa do tipo. Por conta disso, passei alguns semáforos vermelhos e mantinha a direção acima dos limites de velocidade, e ele logo reclamou. Pedi perdão e reduzi um pouco a velocidade, mas quase nunca respeitando as placas.


Eu só queria que aquela corrida acabasse logo.


Foi aí que, passados uns dez eternos minutos, ele passou para o assento logo atrás de mim num gesto brusco e, com a voz esganiçada, pediu que eu me mantivesse calada e desligasse o aplicativo. Sem conseguir esconder meu espanto, questionei o porquê, mas o toque gelado e trêmulo da lâmina de uma faca contra meu pescoço já foi resposta suficientemente clara: eu estava em apuros.


Obedeci sua ordem, busquei ficar o mais calma possível e não fazer nenhum movimento brusco. Ele não disse nada mais além do que uma nova indicação de caminho, e evitei fazer qualquer pergunta ou comentário. Meu coração parecia que ia sair pela boca, pois o indivíduo estava claramente descontrolado. A lâmina aliviava e pressionava meu pescoço em intervalos irregulares, e o senhor pode ver o quão ferido ele está. Eu sabia que aquilo não era um mero assalto ou sequestro relâmpago, pois o homem era louco. Ele faria coisa pior. Pensei que ia morrer.


Após muito tempo dirigindo, fomos nos afastando da cidade até chegar a uma estrada rural totalmente escura e isolada. Numa curva qualquer, ele me mandou parar, desligar o carro e apagar todas as luzes. Pressionando como nunca a faca em meu pescoço, se aproximou do meu ouvido direito e sussurrou a ordem para que eu abrisse a porta e descesse devagar, sem qualquer movimento repentino ou intenção de correr e gritar. Se eu fizesse isso, ele me alcançaria e mataria na hora, sem o menor remorso.


Seu tom de voz denunciava um forte destempero, porém agora de um jeito diferente. Parecia uma criança em êxtase, com uma alegria incontida como se estivesse prestes a usufruir de um brinquedo há muito tempo esperado. Engoli seco e, pela primeira vez naquela noite, senti uma lágrima rolar pelo meu rosto. Pensava nos meus filhos pequenos, nos meus pais, na minha cachorra… Sei lá, pensava em tudo. De certa forma, me sentia culpada perante eles… Como se houvesse falhado em minha missão como pessoa… Me perdoe, senhor delegado, mas isso me emociona demais… Pior do que temer a morte seria temer a humilhação que a antecederia. Sabia que não seria uma morte rápida. Eu iria sofrer.


Desci do carro e senti minhas pernas bambearem. O homem rapidamente desceu também e logo me agarrou por trás, novamente encostando a faca no meu pescoço. Enquanto caminhávamos lentamente, quase às cegas, pela estrada de terra naquela noite sem luar, eu sentia sua respiração afobada e seu corpo suado, sempre trêmulo, colado ao meu. Seu hálito era horrível… Ele todo era monstruoso. Meus maiores medos pareciam ter se personificado naquela criatura terrível, macabra.


Por fim, saímos da estrada em direção a um declive suave, cheio de vegetação rasteira e úmida. Meus pés afundavam naquele mato gelado e, volta e meia, torcia o pé ou escorregava. Cheguei até a perder os meus sapatos. Foi horrível… Situação tremendamente desconfortável. Meu corpo e mente estavam em frangalhos, e eu já devia estar chorando copiosamente. Mal conseguia formular um pensamento sequer em minha mente, e rezava sem parar. Pedia que Deus me permitisse um fim rápido, e perdoasse qualquer falha minha. Seja lá o que for que eu tivesse feito ou sido na vida, sabia que eu não merecia um fim daquele.


Mais um pouco em diante, e chegamos a um ponto da descida que fedia muito. Um fedor nauseabundo, forte, de carniça. Supus que algum animal morto se decompunha ali já há algum tempo, e aquele cheiro contribuía ainda mais para o quadro de terror no qual eu estava inserida. Naquele local ele me derrubou no mato molhado e gelado, e logo começou a arrancar vorazmente as minhas roupas. Não pude evitar o desespero e comecei a gritar e me debater, e ele me socou forte na cabeça. Fiquei meio tonta e, no fundo, até meio aliviada por finalmente estar entorpecida e não sentir a brutalidade daquela ocasião. Escorreguei minha mão para o lado e senti alguma coisa próxima… Parecia um… Braço de gente. Virei meus olhos na direção daquilo e pude distinguir, pela silhueta escura do que jazia próximo de mim, que era um corpo de mulher. Vomitei, e o desgraçado riu-se loucamente. Fechei os olhos e não pensei em mais nada…


Enquanto isso, com minha blusa e sutiã totalmente rasgados, ele tentava arrancar meu jeans. Como era bem justo, ele forçava puxá-lo pelas pernas, totalmente desesperado, como um animal raivoso e contrariado pela insolência daquela peça de roupa que teimava em não sair.


E insistiu até conseguir arrancar. E foi aí que tudo mudou... Quando eu senti que a calça cedeu pelos meus quadris num movimento abrupto, senti também que o homem desequilibrou-se para trás, decerto pelo chão escorregadio e pela força empregada, e rolou para trás, emitindo um grunhido abafado. Ouvi um farfalhar da vegetação e um som estranho, uma pancada.


Depois, silêncio. Digo, quase silêncio. Naquele lugar tenebroso, gelado, iluminado fracamente pelas estrelas, podia-se ouvir somente o cricrilar de grilos nas matas ao redor, minha respiração arrastada, e até o movimento dos vermes comendo o cadáver da pobre moça ao meu lado. Estranhando o silêncio da parte do maníaco, me levantei com dificuldade, apoiada nos cotovelos, e olhei para baixo de mim: nada. Não havia mais ninguém ali. Não entendi o que estava acontecendo, e, fazendo mais um esforço, saí tateando o chão, engatinhando no mato, como uma criança pequena.


Olhe só, doutor, ao que fui reduzida. Me sentia totalmente impotente, o menor dos seres deste mundo.


E assim, tateando o mato no escuro, quase que afundei num buraco profundo, pouco abaixo de onde eu fora jogada. Minha calça estava pendurada em sua beirada. Agarrei e puxei-a, e entendi que aquilo era um poço estreito, e que o homem provavelmente havia caído lá dentro. Por algum motivo imbecil, tentei inutilmente olhar aquele buraco escuro e não consegui enxergar nada, mas senti que dali subia um cheiro forte de carne em decomposição. Por pouco não vomitei novamente, e supus que haviam mais vítimas daquele maníaco dentro do poço.


Voltando lentamente ao meu estado normal, com a tontura passando, tratei de colocar minhas calças - que tiveram seu zíper e botão arrancados -, e ajeitar o que sobrou da minha blusa sobre mim. Sei que foi um esforço inútil, mas eu precisava daquilo: me agasalhar minimamente contra o frio e para tentar reconquistar alguma dignidade. Voltei mancando morro acima. Escorreguei e caí inúmeras vezes, e aquelas poucas centenas de metros até o carro pareceram uma maratona para mim. Quando fechei e travei a porta do motorista, me joguei ao banco como se fosse uma cama de hotel cinco estrelas… Me senti abraçada por aquele objeto inanimado, e desabei em choro incontido.


Sem maiores delongas, tratei de me recompor e sair dali o mais rápido possível. Liguei o GPS e dirigi até a casa de uma amiga. Eu não tinha coragem de que minha família me visse naquele estado lastimável. Quando minha amiga me recebeu, logo me abraçou e chorou comigo… Me fez entrar, avaliou meus ferimentos e ajudou a me despir e tomar banho… Doutor, isso foi triste demais… Eu era, na prática, um bebê dependente dos cuidados de alguém… Me olhei no espelho e mal reconheci o que vi: meu pescoço estava ferido e sujo de sangue seco; meus cabelos estavam imundos, cheios de barro. Meu rosto, roxo e inchado. Fedia, estava coberta de lama e vômito. Tinha arranhões e hematomas pelo corpo todo. Havia perdido algumas unhas… Eu estava péssima, doutor… Péssima.



Depois do banho, minha amiga me fez alguns curativos, me emprestou roupas limpas e me levou ao hospital. No hospital, eles avisaram a polícia e tudo correu até aqui, como o senhor bem sabe. Enfim… É tudo o que consigo me lembrar, doutor. Obrigada.”

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

A MULHER ALTA - Conto Clássico de Terror - Pedro de Alarcón

O CORAÇÃO DELATOR. Conto clássico de terror. Edgar Allan Poe