VENDETTA - Conto Clássico - Conto Cruel - Thomaz Lopes



VENDETTA
Thomaz Lopes
(1878 – 1913)

No seu gabinete de trabalho, sentado em frente a uma longa mesa atulhada de livros, de lâmpadas, de castiçais, de tinteiros, de facas de papel, de todo esse imenso mundo das pequeninas coisas indispensáveis a um homem que escreve, o dr. Pietro Contese tomava apontamentos em tiras de papel. Defronte da mesa, reclinada numa ampla poltrona, a mulher amamentava um recém-nascido, tão aderente ao seu branco peito como uma parasita a uma arvore moça; duas outras crianças, de cinco e de seis anos, brincavam no tapete com cubos e figuras geométricas de construção. Nas paredes, as estantes tinham um aspecto de solenidade, apinhadas de livros ricamente encadernados; alguns quadros punham manchas claras nos muros. Era toda uma família feliz no meio do doce aconchego doméstico, cercada do conforto que o trabalho dera, sem outra ambição na vida além da continuação daquela ventura.

Era uma linda noite de junho do ano de 1902, uma dessas incomparáveis noites do Rio de Janeiro, fresca, estrelada, perfumada, cheia de volúpia, de um negror profundo e macio como veludo. Pelas janelas abertas entrava o perfume das rosas e dos cravos do jardim; uma aragem excitante vinha da barra; e o silêncio só era interrompido pelo reunir das campainhas dos elétricos passando na rua.

— Meninos, são horas de dormir.

Ao som daquela meiga voz, o dr. Pietro Contese, interrompendo o trabalho, levantou a cabeça, com um sorriso feliz nos lábios onde se espalhavam os fios de um bigode castanho e sedoso.

— Que horas são, Júlia?

— Oito horas.

Ele acendeu vagarosamente um cigarro e, olhando para as duas crianças, reiterou com suavidade a ordem materna:

—Ah! Então são horas, filhinhos, vão dormir.

A voz condizia com a sua expressão de bondade simples mas enérgica, com o seu todo apaixonado e calmo; e percebia-se-lhe ainda um iniludível sotaque italiano. Os meninos, com uma obediência risonha, foram oferecer as faces coradas aos beijos de Júlia e de Pietro, e abraçados saíram do gabinete. Ele então se levantou, encaminhou-se para a mulher, depôs-lhe um beijo na fronte, acariciou os pesinhos do recém-nascido, e, ao voltar à sua mesa, parou um momento junto a uma das estantes para endireitar na parede o equilíbrio de um quadro representando Napoleão a cavalo. Mas ao reocupar a cadeira em frente aos papeis esparsos, o fio das ideias não voltou imediatamente, pois que, com a cabeça apoiada na mão esquerda, a pena imóvel sobre o papel rabiscado, ficou numa profunda meditação. Nem ouviu a mulher que saiu carregando nos braços a criança adormecida.

Se houvesse uma expressão material para apresentar a evocação de um pensamento, o estado cismático de Pietro seria simbolizado por um casto quadro surgindo das névoas da recordação. Diante dos cílios fechados, nesse nevoeiro transparente da memória, ele via crescendo a sua querida Córsega, ilha bem-amada, para sempre perdida e inacessível, a terra da sua infância livre e despreocupada, onde brincava com seus irmãos como os seus filhos brincavam agora. Eram as montanhas escarpadas e íngremes, era o mar translúcido do Mediterrâneo, e através desse mar misterioso eram as terras do Continente aparecendo nos dias claros, destacando-se entre o céu e as águas no revérbero da luz. Eram depois os primeiros tempos da escola, as horas enfadonhas das aulas, os minutos deliciosos do recreio. E via, nitidamente via como coisas palpáveis, a grande sala de estudo do colégio, com uma lousa negra no recanto de duas janelas, as paredes cheias de cartas geográficas, o jardim, as duas árvores viçosas que no verão se cobriam de folhas e de pássaros. Povoando esse canto amado da pátria, surgiam quase todos os colegas; e recordava-se das suas fisionomias, lembrava-se do som das suas vozes, como se os estivesse vendo, como se na véspera tivesse brincado com eles. Entre a turba alegre, três meninos havia que mais se destacavam na triste evocação desse passado perdido, involuntariamente rememorado naquela noite límpida de junho: eram os seus irmãos, os seus três pobres irmãos mortos no mesmo dia, quase na mesma hora, sacrificados à barbaridade da vendetta. Fora numa noite assim calma e tranquila, numa surpreendente noite de agosto, que o velho Giuseppe reatara as vinganças adormecidas entre as duas famílias Caruccio e Contese. Pietro acordara à meia-noite, ouvindo gritos lancinantes que vinham do quarto vizinho ao seu, o quarto em que dormia a sua pobre mãe viúva com seus dois irmãos mais moços. Seu outro irmão, companheiro no mesmo aposento, levantou-se sobressaltado, e, em camisola, fugiu do quarto. Pobre criança! Quando Pietro transpôs por sua vez a porta, passou por cima do seu corpo ensanguentado. Outro espetáculo doloroso, porém, pregou-o gelado de espanto no limiar da alcova materna: sobre o grande leito, a sua velha mãe jazia num mar de sangue; envoltos na mesma onda de púrpura, os dois irmãos tinham acabado de morrer aos pés do velho leito. Com um misto de timidez e assombro, deu dois passos e certificou-se então que sua mãe ainda tinha vida. Salvá-la foi o seu pensamento. Aproximou-se dela, tomou-lhe as mãos inermes, olhou-a fixamente com um olhar parado, e sentiu faltar-lhe sob os dedos a vida daquele corpo amado. Os seus olhares se encontraram e a velha pôde apenas murmurar numa última golfada de sangue: "Foi o Giuseppe Caruccio. Vinga-nos!". E morreu. Pietro beijou-lhe a fronte, acendeu duas velas à cabeceira, fez o sinal da Cruz, e com uma resolução súbita saiu do quarto sem olhar para trás. Durante uma semana, viveu na montanha, abeirando-se dos caminhos, sondando a treva, acariciando a espingarda vingadora. Nenhuma vez chorara; sentia que nos olhos incendiados pela febre do ódio não podiam correr as lágrimas — como na seca ficam as pedras enxutas. E ele não vinha! Fugira talvez o miserável, escondera-se, partira da Córsega talvez... Mas nem que fosse no fim do mundo, havia de matá-lo! Uma tarde, ao crepúsculo, um vulto descia o declive da montanha; vinha num passo cauteloso, olhando para um lado e para outro, olhando para trás, sondando a sombra que as árvores projetavam. Era ele, era Giuseppe Caruccio. A voz da mãe moribunda ressoou distintamente aos seus ouvidos: "Foi o Giuseppe Caruccio. Vinga-nos!" Um tiro partiu, dois braços se elevaram no ar, um corpo precipitou-se de bruços no declive da estrada, fulminado com uma bala no coração. E Pietro fugiu da Córsega. Dois meses depois, embarcava em Gênova com direção a Buenos Aires. Aí ganhou algum dinheiro; um dia, vendo na rua um homem que o olhou com uma curiosidade estranha, teve medo e fugiu para o Chile, atravessando a Cordilheira dos Andes. O resto não tinha mais importância; trabalhara, estudara, formara-se em Medicina; e, seduzido pelo Brasil, viera instalar-se no Rio de Janeiro. Alguns anos mais tarde casou com uma moça de boa família, mais pelo prestígio que entre nós se empresta a quase todos os estrangeiros do que pelas suas belas qualidades desconhecidas. Era agora um homem de quarenta e dois anos, rico, bem considerado, pai de três filhos e dono de uma vasta clínica.

— Só agora foi que o pequeno conseguiu dormir!

Ele levantou a cabeça como quem acorda de um pesadelo; e ante a suavidade da aparição de Júlia, todos os túmulos, perdidos num passado de quase trinta anos, fecharam-se como por encanto. Fora quem lhe fizera a felicidade, quem lhe ensinara que há no coração humano outros sentimentos além do ódio e da vingança, quem lhe dera três rebentos da sua vida, três filhos salvos pela distância, pelo tempo e pelo esquecimento da vendetta dos Caruccio. Nela e nos filhos resumira todo o seu ideal; e nada mais queria do que viver sempre ao seu lado na pátria adotiva que escolhera, tão grande, tão generosa, tão protetora como um tranquilo seio materno.

Pietro levantou-se outra vez, sentou-se ao lado de Júlia, tomou-lhe as mãos que cobriu de beijos, inebriado por uma incomparável ventura. Eram sempre assim as suas noites de trabalho: levantava-se a cada instante para acariciá-la como se sem Júlia encontrasse a fonte perene de coragem e de esperança. Havia no seu amor pela mulher uma gratidão profunda, uma adoração quase religiosa pela discrição com que o tratava, com que indagara da sua vida nos primeiros meses do casamento. Ele lhe contara vagamente a sua infância, o tempo passado na Córsega, a morte da mãe e dos irmãos num desastre, a necessidade que tivera de partir para o Chile a fazer fortuna. Escondera-lhe o crime, escondera-lhe a vendetta. Mentira. Oh, que encantadora mentira! A brasileira, dez anos mais moça do que ele, nascida no Rio de Janeiro, educada num colégio de religiosas, jamais compreenderia a alma corsa com a vendetta — o seu segundo batismo. Pietro sabia bem que perderia a sua estima se ela o soubesse manchado de sangue. E que seria a sua vida sem o amor daquela criatura? Era melhor a mentira porque Júlia o amava com o respeitoso carinho que os infelizes merecem. À meia-noite ele ainda escrevia, enquanto ela, reclinada na poltrona, lia atentamente um romance. De repente, o barulho de uma queda e o som esfarelado de vidros que se quebram fizeram-nos estremecer e interromper o trabalho.

— Mau presságio! — murmurou Pietro, apanhando o quadro de Napoleão que caíra da parede.

— Que tolice! — exclamou Júlia. — Hás de ser sempre supersticioso como um italiano!

Ele sorriu como para desanuviá-la, mas sentiu desde logo um grande aperto no coração. E, apesar de habituado aos chamados imprevistos da noite, estremeceu de novo ouvindo a campainha que retinia no corredor.

—É chamado — disse Júlia.

— Ha três noites seguidas que me interrompem! Decididamente, este meu trabalho está encantado.

Dez minutos depois ele chegava à porta do jardim em companhia do rapazola que o fora chamar. Àquela hora, a praia do Russel estava deserta; defronte, no mar, brilhava a iluminação de Niterói, luziam faróis nas fortalezas e nos navios.

— Mas onde é que está o homem? — indagou Pietro.

—No aterro, sr. doutor, no aterro da curva. É ali adiante. Ele vinha comigo rindo, brincando, e de repente parou com uma dor no coração e caiu.

— Ha muito tempo?

— Haverá meia hora talvez.

— É rapaz como você?

— Não, sr. doutor! É homem para mais de quarenta anos.

— Que diabo! Então vamos depressa que pode ser uma síncope cardíaca. Foi ele que se lembrou do meu nome?

—Foi ele, sim. Apontou a casa do sr. doutor e disse o número. Olhe, lá está ele, sr. doutor. Não vê aquele vulto deitado?

—Bem, bem! Você agora vai me buscar um tílburi para transportar esse homem. Aqui na Glória deve haver.

E, sozinho, aproximou-se do vulto que jazia na noite escura. Ajoelhou-se para lhe tomar o pulso, debruçou-se para auscultá-lo, mas imediatamente sentiu que um punhal lhe varava o coração, ao mesmo tempo que uma voz patrícia lhe aclarava a agonia:

—Agora tua mulher e teus filhos! Lembra-te de Giuseppe Caruccio!...

Fonte: Kosmos (RJ), edição de dezembro de 1907.

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