A DAMA DO RIO - Conto de Terror - Flávio de Souza
A
DAMA DO RIO
Flávio
de Souza
O
casco da embarcação elevava-se no ar e caía com violência sobre as águas
escuras do rio. A tempestade pegara a todos de surpresa, em apenas alguns
minutos o nível das águas havia subido como há muito não era visto em toda a
região. Os pescadores agarravam-se como podiam nas cordas e ganchos fincados na
madeira envelhecida que revestia toda a nave. Àquela altura já suscitavam
dúvidas se haveria mais água vinda do céu, correndo pelo leito, ou dentro do
próprio barco. Embora não houvesse qualquer vestígio de rochas naquele
percurso, um choque violento e repentino atingiu a parte inferior da embarcação
despedaçando por completo toda a sua estrutura. No exato instante em que via os
companheiros voando pelos ares, o comandante pôde notar um estranho brilho submerso
refletido pelos lampiões que caíam na água.
Ele sentia seu corpo ser tragado pelas
profundezas sem que conseguisse reagir, por mais que fizesse força. Lutava para
evitar que as impiedosas águas preenchessem seus pulmões. Não conseguia
enxergar quase nada, tudo estava turvo e escuro, mas ainda assim, podia jurar
ter visto vários de seus amigos serem enlaçados por algo brilhante enquanto
travavam uma violenta luta pela vida. O comandante buscava fazer jus à sua
reputação, mas nem mesmo com um poder sobrenatural julgava ser capaz de
resistir ao poder da natureza. Quase perdendo os sentidos, sentiu seu corpo ser
elevado por algo que surgia das profundezas, já não sabia se aquilo tudo era
realidade, ou se não passava de um delírio causado pela rigidez da situação.
O ar entrou por suas narinas de forma
violenta, chegava a queimar-lhe as mucosas, o homem estava totalmente entregue,
não tinha o menor domínio sobre si mesmo. Seus olhos reviravam a procura de
algo que lhes confortassem, mas tudo o que viam era o seu instrumento de
trabalho sendo arrastado, aos pedaços, pelos braços dominantes do rio, e as
pesadas gotas que caíam do céu tomado pelas trevas. Percebia seu corpo ser
levado como uma pluma sinuosa sobre o espelho d’água, não sabia como esse fato
era possível, mas não insistia em tentar buscar uma explicação.
Seus músculos não tinham mais forças e
sua mente logo desistiria de manter-se acesa, perder os sentidos seria questão
de tempo, e assim aconteceu. Entorpecido, embarcou numa viagem escura, onde não
estava no comando, não sabia onde as curvas traiçoeiras poderiam levar.
O pescador foi encontrado numa das
margens na manhã seguinte. Ele estava desacordado, e assim permaneceria, em um
estado profundo de letargia, fechado para a realidade, mas vivendo internamente
num mundo de sonhos desconexos e sem sentido, de onde somente sua força interna
poderia tirá-lo.
As águas calmas não davam sinais de
serem as mesmas tomadas pela fúria incessante da noite anterior. Alguns
ribeirinhos arrastavam uma rede pelo rio em busca de alimento, enquanto
crianças corriam por uma das margens. Cena normal e corriqueira se não fossem
os murmurinhos no vilarejo por conta do acidente fatal com o pesqueiro. Apesar
do leito barrento, a farta luminosidade do dia aberto permitia uma razoável
visibilidade aos homens, no entanto, naquele dia, talvez eles não desejassem
enxergar tanto.
O mais franzino deles foi o que viu
primeiro, um rastro sinuoso nas águas intensificado por um brilho que aumentava
com o contato dos raios do sol. O reflexo feriu-lhe os olhos, fazendo com que
largasse o apoio da rede e levasse as mãos ao rosto, o gesto fora acompanhado
por um grito aterrador. Os demais demoraram a entender o que acontecia com o
companheiro, só perceberam que havia algo errado quando o próprio erro em
pessoa surgiu da parte mais funda do rio, enlaçando o corpo frágil do rapaz que
gritava. A voz do pobre homem foi calada. Seu corpo desapareceu por completo do
campo de visão dos amigos, em seu lugar, surgiu uma mancha escura e perturbadora.
O pânico tomou conta do resto do grupo,
com saltos e de forma atabalhoada, os pescadores tentavam escapar da ameaça,
mas o que se movia ali era detentor de muito mais desenvoltura, e não fora
difícil para ele subjugar um a um da forma que quis. Os corpos eram
arremessados pelo ar e chocavam-se violentamente contra as águas, para em
seguida desaparecerem e ressurgirem em pedaços. O leito tornava-se rubro e
agitado. As crianças pararam o que estavam fazendo e passaram, curiosas, a observar
a estranha pescaria dos mais velhos.
Uma onda crescente em forma de delta
seguia velozmente em direção a elas, a maioria correu, mas uma delas ficou.
Estava praticamente hipnotizada pelo movimento incomum das águas. Os gritos e a
correria dos pequenos chamaram a atenção de uma mulher que trançava palha
dentro de casa. Pelo vão da janela, ela visualizou a menina parada na margem e
uma seta nas águas que rumava em sua direção. Com a pressa envolvendo-lhe os
pés, ela correu o máximo que pôde para alcançar a garota, não era preciso
entender o que se passava para saber que aquela vida estava em risco.
A distância lhe fora favorável, um
abraço urgente quebrou a hipnose da menina, mas ela ainda estava com os
tornozelos no inferno e isso já seria o suficiente.
Os olhos da pequena presenciaram a
cabeça de sua salvadora abandonar violentamente o corpo com uma só investida do
desconhecido. Ela sabia que seria a próxima, no entanto, o ataque fatal de seu
algoz fora repelido, e ela apenas acompanhou a boca escancarada da criatura
desaparecendo nas águas manchadas. O corpo decapitado fora levado junto,
agarrado às armas exibidas e que estavam prontas para lhe fazer mal. Suas
lágrimas diluíram-se no rio, levando inocência e pureza àquele lugar maldito.
Quase no mesmo instante, no pequeno
hospital da cidade, o súbito despertar do comandante do barco naufragado
surpreendia o solitário médico local, o qual, prudentemente, já tratava da
transferência do enfermo para as instalações da capital. No entanto, algo fazia
brotar um sentimento de preocupação no peito do doutor. Embora o homem
demonstrasse sinais claros de recuperação, seu olhar perturbadoramente vidrado
insistia em dizer o contrário. Inutilmente, o médico tentou manter o pescador
sob seus cuidados, mas a determinação do homem parecia transmutar-se em força,
e, por conta disso, tentar mantê-lo internado tornou-se algo impossível. Uma
vez livre, o velho comandante ganhou as ruas de barro do vilarejo.
Enquanto caminhava perdido em
pensamentos, o pescador permanecia alheio à movimentação que surgia junto a
margem do rio. Na verdade, lhe faltava um raciocínio coerente, parecia que sua
memória recente havia sido apagada. Ainda assim, ele sabia que algo não estava
certo, embora ele estivesse distante das pessoas que se aglomeravam diante das
águas, ele compartilhava, mesmo que de modo inconsciente, das mesmas aflições
que os atormentavam. Ele e os ribeirinhos tinham plena convicção de que algo
fora da normalidade habitava aquele espaço submerso.
O povo estava horrorizado com o relato
da pobre garotinha. Por obra de um verdadeiro milagre, ela conseguira ter um
destino diferente de todos aqueles que haviam sido tocados pelas águas do rio
naquela manhã.
De seus lábios brotavam os contornos de
uma criatura inacreditável, inconcebível até mesmo para uma região tão
suscetível ao extraordinário. Os líderes locais não conseguiam se conter diante
da possibilidade de algo tão demoníaco macular o que lhes era sagrado, o local
de onde colhiam o sustento das famílias.
Não tardou para que os barcos de
diferentes tamanhos e cores ocupassem cada metro do espelho do rio. Arpões e
flechas de bambu riscavam o ar e espirravam água mediante o menor movimento
suspeito no leito turvo.
Eles subiram e desceram o curso d’água
por várias vezes, durante todo o dia, sem que conseguissem encontrar qualquer
sinal da criatura que ofendia a própria natureza simplesmente por existir. Ao
cair da noite, com os barcos atracados, os homens voltavam à terra com o peso
da frustração sobre os ombros.
Esperando a comitiva, no centro do
vilarejo, estava a mais velha das moradoras. Ela poderia ser considerada uma
local porque habitava as cercanias do pequeno povoado, embora não fixasse
moradia entre os demais. Ela descendia dos índios, circulava pela mata e
raramente era vista entre os habitantes, apesar de que todos tinham plena
consciência a respeito da presença dos seus olhos vigilantes sobre a região. Ela
impunha muito respeito, todos faziam questão de ouvir o que ela tinha a dizer,
mesmo porque, dificilmente o som de sua voz se fazia ecoar...
As palavras proferidas pelo timbre
rouco saíram arrastadas, soando quase como um lamento. Elas tratavam de um
espírito maligno, perverso em essência, que não se furtava em fazer valer do
corpo que ostentava para disseminar o mal e causar dor, tanto física quanto
emocional. A criatura se arrastava pela floresta imitando o curso dos rios,
embora os antigos dissessem que eram os rios que assumiam sua forma.
Uma vez instalada numa área, o ser não
descansaria até arruinar a alma de cada um dos seus habitantes, pois ele
próprio não tinha sossego por odiar a própria forma e, por conta disso, invejar
as linhas daqueles que desejava consumir.
Acuada, a criatura se tornava furtiva,
e ostentar felicidade seria a melhor maneira de atraí-la. Assim, no alto de sua
sabedoria, a velha índia ordenava que se fizesse um grande festival, uma
homenagem à fartura das águas.
E assim foi feito. Todos os moradores
e, até mesmo, representantes do povoado vizinho juntaram-se na margem do rio,
ao redor do calor de uma grande fogueira, a lua cheia emprestava seu esplendor
à comemoração. Mesmo temerosos, os ribeirinhos festejavam. Toda a angústia que
lhes consumia ficava restrita ao interior de suas almas. Nem mesmo uma simples
ponta de aflição poderia transparecer, caso contrário, a fera das águas não
surgiria.
O velho pescador não conseguia se
juntar aos demais, seu trauma parecia demasiadamente profundo para que pudesse
simular alegria. Ele conseguia se lembrar de estar entre os braços da morte, do
terror estampado no rosto de cada um dos seus companheiros. Porém, a lembrança
da salvação era tão turva quanto as águas barrentas do rio. Ele tentava, mas só
lembrava de estar flutuando antes de perder os sentidos...
Apesar da mente nublada, ele foi o
primeiro a perceber as estranhas ondulações na escuridão das águas. Uma garota,
não pertencente ao povoado, provavelmente, pois suas feições não foram de
imediato reconhecidas pelo pescador, dançava inadvertidamente junto à margem. A
jovem, que demonstrara incontido entusiasmo durante toda a noite, não fazia a
menor ideia do perigo crescente às suas costas. Antevendo a situação, o homem
iniciou uma desabalada carreira rumo ao terreno lodoso. Entretanto, seus
movimentos foram replicados em intensidade pelos golpes das águas, os quais, de
súbito tornaram-se uma imensa parede em forma de onda. A música cessou, a dança
foi interrompida, a atenção de todos estava voltada para o rio, mas ninguém
conseguiu se mover quando a imensa figura surgiu em meio ao turbilhão de fúria.
A criatura de escamas negras e
reluzentes projetou-se com incomparável velocidade sobre a mulher, o corpo frágil
foi rapidamente envolvido pelos contornos esguios da fera. O pescador, o único
a esboçar um mínimo de reação diante dos fatos, tomou a espingarda de um dos
estáticos moradores, chegando a derrubá-lo com o ato. O homem, decidido a pôr
um fim na existência da besta, enlaçou com convicção o cano duplo da arma e fez
mira. A boca escancarada da criatura demonstrava plena capacidade para engolir
a cabeça da garota com uma só investida, e tentou, de fato, fazê-lo. Mas o
chumbo rompeu o ar no instante crucial, acertando, em cheio, o vão preenchido
pelos aguçados dentes.
Imediatamente, a pressão exercida pelo
corpo cilíndrico foi atenuada de tal forma que a garota conseguiu escapar. Mas
o demônio ainda resistia. O movimento de algumas escamas ainda era perceptível.
Então, o pescador se aproximou do assassino de seus companheiros. “Na cabeça,
acerte uma lâmina na cabeça!” Gritava a mulher, em evidente desespero.
Atendendo aos apelos, ele desembainhou sua velha, porém afiada, faca de pesca.
A cabeça da fera balançava perigosamente, embora de modo involuntário. O homem
buscou a lembrança dos amigos sendo arrastados para o fundo das águas, o desejo
de vingança lhe preencheu de força e determinação. Esperando o momento exato,
ele golpeou com certeza de sucesso a área localizada um pouco atrás da
monstruosa cabeça. De imediato a criatura tombou. Do ferimento adornado pela
lâmina, um líquido espesso e negro, semelhante ao que era expelido pela boca da
fera, ponto atingido pelo chumbo, começou a verter. No entanto, poucos segundos
se passaram para que a tonalidade mudasse de cor. Nos dois pontos, o vermelho
intenso passou a dominar. O inimigo fora finalmente vencido.
Os ribeirinhos explodiram em gritos de
comemoração. A jovem parecia a mais entusiasmada, e, em aparente sinal de
gratidão, tomou seu salvador em um abraço. Sem dizer uma só palavra, ela
encostou seu rosto na face cansada do pescador. “Não!” Gritou a velha índia,
surgindo de um ponto desconhecido. Sua voz não soava como um sussurro desta vez,
pelo contrário, era firme e perfeitamente compreensível. Mas, o comandante da
embarcação despedaçada não conseguiu ouvi-la. Seus olhos estavam vidrados numa
imagem que o fez lembrar de tudo. Entorpecido, ele sentiu a língua bifurcada e
áspera da mulher deslizando, de forma sinuosa, sobre seu rosto. Não havia mais
névoa em sua mente, tudo estava claro. Fora uma gigantesca serpente negra que o
livrara da morte certa no rio, uma criatura tão semelhante a que estava
estirada no chão, com o sangue a esvair dos ferimentos por ele causados.
A besta assassina não era aquela. A
face da morte era alva como a lua no céu, emitia um brilho prateado enquanto
matava, cintilava enquanto devorava a carne humana. Ele tinha visto, jurava que
tinha visto, os olhos malditos do demônio enquanto flutuava nas águas sob a
proteção da criatura de negras escamas. O vazio que ele presenciou naqueles
olhos estava ali, diante dele, refletido no semblante frio da mulher que o
apertava cada vez mais com um abraço firme.
A índia tentava invocar sua antiga
força, mas seu corpo já não respondia aos comandos com a mesma desenvoltura de
outrora. A coragem dos moradores parecia diluir-se diante da incapacidade
demonstrada por sua inspiradora. O prisioneiro urrava de dor. Ele sentia sua
caixa torácica sendo esmagada pela força da mulher, o ar começava a lhe faltar
aos pulmões. Quando achava que a morte era inevitável, ela o soltou. Mas seu
horror estava apenas começando. Com incrível habilidade, a jovem se livrou das
vestimentas, e com as mãos unidas junto ao esterno, começou a rasgar a própria
pele. De dentro do seu corpo surgiu o revestimento pálido e reluzente de uma
cobra, a qual, de maneira inexplicável, parecia crescer diante dos incrédulos
moradores.
Como
se refeitos de um transe, os locais partiram em direção a ela, alguns recolhiam
paus e pedras como armas, outros se municiavam com rifles e facas. No entanto,
já não havia tempo para retaliação, a enorme serpente branca ganhou as águas
escuras com extrema perícia, mas não sem antes arrastar o corpo triturado, e
pronto para ser engolido, do pobre pescador. Tiros foram disparados a esmo. As
águas se tornaram indomáveis por alguns instantes, mas logo foram tocadas pela
placidez usual.
Vencidos, enganados e humilhados, os
ribeirinhos tentavam encontrar forças. As palavras da velha índia ecoavam com
maior intensidade na cabeça de cada um deles; o demônio não descansaria
enquanto não consumisse a existência de cada habitante do local por ele
escolhido para viver. O que eles ainda não compreendiam, era que a criatura não
agia de modo desordenado, ela não gostava de deixar um trabalho inacabado.
Assim, quando jatos d’água foram lançados ao ar com violência, espalhando o
pânico entre todos; um brilho metálico arrastou uma garotinha para as profundezas
do rio. Desta forma, a certeza de que ninguém poderia sobreviver começou a
brotar no coração daquelas pessoas.
Texto
inspirado na Lenda Cobra Norato e Maria Caninana.
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