LUA CHEIA - Conto de Terror - Paulo Soriano
LUA
CHEIA
Por
Paulo Soriano
1
O
homem do carro da frente olhou para o retrovisor e viu que Wolf estava
aterrorizado. O seu semblante era de puro pânico. Wolf acabara de sair de seu
velho Astra azul-marinho e agora vasculhava o céu com um olhar de urgência. O
plenilúnio estava prestes a ocorrer.
—
Como fui imprudente! Como pude me esquecer que hoje é véspera de feriado? —
exasperado, Wolf gritou como se fosse um insano. Uma longa fila de carros não
saía do lugar há mais de quarenta minutos e Wolf agora tinha certeza de que não
iria conseguir.
Há
muitos anos, Lupus Wolf comprara um apartamento na periferia da cidade, bem
distante da confortável casa onde montara residência. Mas somente utilizava “a Fortaleza” a cada vinte e nove dias. Deveria estar nela, agora. Deveria estar trancado no
quarto de segurança, aguardando a dolorosa transformação imposta pelos humores
nefandos da Lua. O quarto pequeno e sem janelas custara uma fortuna. Possuía
isolamento acústico e as paredes eram revestidas por uma generosa camada de
concreto pintada de preto. Mas o mais caro — e que quase levou Wolf, o lupino advogado, à
bancarrota — foi a porta de segurança, de ferro maciço, e que só se abria na
hora programada, tal qual um cofre de agência bancária. Era no quarto de
segurança que Wolf se refugiava nas noites de lua plena. Era lá que deveria
estar, irremediavelmente preso, sem possibilidade de fuga, até o amanhecer. Até
que a fera medonha em que se converteria voltasse à forma humana. Mas não
estava. Encontrava-se retido no maldito engarrafamento de Ano Novo. Sim, como
fora imprudente!
Wolf
voltou para o Astra e ligou a ignição. Havia espaço suficiente para uma rápida
manobra. Em poucos segundos, o carro estava no acostamento. Muitos viram quando
Wolf tirou o paletó e se embrenhou, cambaleante, no bosque lateral.
—
Eis um completo maluco — disse o homem do carro da frente. Mas Lupus Wolf
sequer ouviu o comentário.
2
A
transformação veio quando Wolf tentava amarrar-se, com o cinturão, a um
arbusto. Ele sabia, perfeitamente, que aquilo não deteria a coisa. Mas sentia,
a bem da própria consciência, que latejava, a necessidade de fazer alguma coisa. Quando a Lua
atingiu o ápice, e disseminou no firmamento o seu fluxo peçonhento, Wolf emitiu
um ganido sinistro, mouco aos ouvidos humanos. Todavia, neste momento, todos os
cães das redondezas, com os olhos esgazeados, torcidos para a Lua, puseram-se a
ladrar e a uivar, de angústia e de terror.
Somente
a Lua foi testemunha da coisa hedionda em que Lupus Wolf se converteu.
3
Madrugada.
O
velho Rabit saiu da cabana, erigida numa clareira à margem do riacho que
serpenteava o bosque de ciprestes, teixos e coníferas, para fumar um cigarrinho
e observar a Lua cheia.
Sempre
fazia isso.
Naquela
noite, a Lua estava mole, especialmente inflada. Irradiava uma luminosidade
intensa e bela. Mas o velho Habit estava apreensivo. Havia algo de estranho
pairando no ar da noite. Embora saturada pelo perfume dos eucaliptos, a
atmosfera prateada deixava exalar um suave e quase imperceptível olor
miasmático. Rabit surpreendeu-se ao sentir um calafrio inundar-lhe o corpo. Uma
vertigem insinuava-se naquele calafrio. Algo terrivelmente ruim, algo cruel, estava por
acontecer, ele ponderou. Da mata, vieram estranhos ruídos, como os uivos
caninos e o farfalhar de asas medonhas.
Rabit
viu que uma nuvem negra fizera a lua desaparecer. Forçou a vista cansada. A
nuvem crescia? Parecia-lhe que sim. Não só crescia como ganhava um contorno
aterrador. Crescia e se aproximava. Crescia e cada vez mais assumia a forma de
um gigante mor...
Rabit
caiu.
4
Do
alto, a coisa sentiu o cheiro de sangue humano. O cheiro do líquido viscoso e
bom. Bom e refrescante. Então, emitiu um grito. Com o sonar em alerta, facilmente
localizou a presa. Encetou, pois, um voo rasante. Próximo ao solo, o imenso
animal, inclinando-se para trás, recolheu as negras asas membranosas, e pôs em
riste as garras pés. A presa foi ao chão com o abdome completamente dilacerado.
O
ancião tentou reerguer-se, mas era tarde. A coisa — que lhe pareceu um enorme
morcego-vampiro — mergulhou-lhe na goela as fileiras de dentes afiados e pôs-se
a sorver furiosamente.
À
medida que sugava, o vampiro, curvado sobre o corpo inerte do ancião, batia as
asas incomensuráveis num ritmo convulso, em perfeita harmonia com os estertores
da vítima, do velho homem que a coisa mantinha agulhada ao solo pelas garras
dos pés, longas e aquilinas. Mas, quando terminou, o vampiro sentiu que já não
tinha fuças. Os dentes aguçados, que há pouco laceravam e corrompiam, despregaram-se
da goela do homem numa retração súbita e dolorosa. Nauseado, tomado de surpresa
e horror, Lupus Wolf recolheu, instantaneamente, os lábios que descansavam
sobre o pescoço de Rabit, o velho eremita do bosque. E, enternecido, com os
lábios repletos de sangue e o coração afogado no remorso, o homem mergulhou na
floresta, rumo à rodovia, sob o jugo do enorme asco que de si mesmo sentia.
No
céu, a Lua cheia se punha.
Imagem:
Hans Benn
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