A MÃO DISSECADA - Conto Clássico de Terror - Guy de Maupassant
A
MÃO DISSECADA
Guy
de Maupassant
(1850
– 1893)
Há
cerca de oito meses, um amigo meu, Louis R, havia reunido, à noite, vários
colegas estudantes. Bebíamos ponche e fumávamos, falando de literatura e
pintura, e contando vez por outras algumas coisas jocosas, como é habitual
entre gente jovem. Subitamente, abriu-se a porta e um dos meus bons amigos de
infância entrou, como um furacão.
—
Adivinhem de onde venho! — exclamou em seguida.
—
Aposto que de Mabille — um deles respondeu.
—
Não. Você vem alegre demais. Você acabou de conseguir dinheiro emprestado,
enterrou um tio, ou empenhou o relógio à minha tia — disse outro.
—
Você andava bebendo, rastreou o cheiro do ponche de Louis e subiu à casa dele
para recomeçar a bebedeira — disse um terceiro.
—
Ninguém foi na mosca. Venho de P..., na Normandia, onde passei oito dias, e
trago de lá um grande criminoso, meu amigo, que lhes vou apresentar, com suas
permissões.
Assim
dizendo, sacou do bolso uma mão dissecada; uma mão horrível, negra, seca, muito
longa e um tanto crispada. Os músculos, incrivelmente fortes, eram contidos,
interior e exteriormente, por uma faixa de pele apergaminhada. As unhas
amarelas, estreitas, ainda se grudavam à extremidade dos dedos. Tudo aquilo
transpirava criminalidade.
—
Imaginem — disse meu amigo —, venderam as quinquilharias de um velho bruxo,
muito conhecido na província; todos os sábados ele ia ao sabá, montado no cabo
duma vassoura; praticava magias branca e negra; fazia com que as vacas dessem
leite estragado e as punha a usar a cauda como a do companheiro de Santo
Antônio. Mas é certo que o bruxo era muito apegado a esta mão. Garantia que ela
pertencera a um facínora célebre, executado em 1736, por haver lançado cabeça a
baixo, num poço, a sua mulher legítima — no que não creio que tenha feito algo
de mau —, enforcando, depois, no campanário da igreja, o pároco que os casou.
Após esta dupla proeza, lançou-se a correr o mundo; e, na sua carreira tão
curta quanto bem cumprida, ela havia saqueado uma dúzia de viajantes, defumado
vinte monges em um mosteiro e convertido em harém um convento de freiras.
—
Mas o que você vai fazer com esse horror? — exclamamos.
—
Ora, jovens! Vou fazê-la de aldrava de porta, para assustar os meus credores.
—
Meu amigo — disse Henry Smith, um inglês grande e muito fleumático —, na minha
opinião, esta mão é apenas carne indiana, conservada por um processo novo. Eu o
recomendo a fazer sopa com ela.
—
Chega de brincadeiras, amigos! — Disse com a maior seriedade um estudante de
medicina, que estava à beira da completa embriaguez. - Se há um conselho que eu
possa lhe dar, Pierre, é o de que enterre cristãmente esse despojo humano, para
o caso de o seu dono vir a reclamá-lo para si. Esta mão certamente adquiriu
maus hábitos. E você conhece o ditado: “quem matou, voltará a matar”.
—
E o que bebeu, beberá — retrucou o anfitrião, já servindo um grande copo de
ponche ao estudante, que o esvaziou num único trago, e caiu, morto de bêbado,
sob a mesa. Este desenlace foi acolhido com muitas risadas, e Pierre ergueu o
seu copo, fazendo um brinde à mão:
—
Brindo — disse — à próxima visita de seu dono!
Então
mudaram de assunto, e cada um retirou-se para casa.
No
dia seguinte, passando à sua porta, resolvi entrar. Eram umas duas horas, e o
encontrei lendo e fumando.
—
Como vai? — perguntei.
—
Muito bem — respondeu.
—
E a mão?
—
Você deve tê-la visto na campainha, onde a pus ontem à noite, quando cheguei em
casa. A propósito, sabia que algum imbecil quis me pregar uma peça? À meia
noite, vieram bater-me à porta. Perguntei quem era, mas, como ninguém
respondeu, tornei a deitar-me e dormi.
Naquele
mesmo instante tocaram à campainha. Quem a tangia era o senhorio, um sujeito
grosseiro e petulante. Entrou sem nos cumprimentar.
— Cavalheiro — disse a meu amigo —, peço que
retire imediatamente a coisa que o senhor pendurou na corda da campainha. Caso
contrário, serei obrigado a despejá-lo.
—
O senhor — respondeu o meu amigo, com muita austeridade — está a insultar uma
mão que não merece tal tratamento, porquanto pertenceu a um homem muito
bem-educado.
O
senhorio deu meia-volta e saiu como tinha entrado. Pierre o seguiu, desprendeu
a mão e a amarrou à corda da campainha que mantinha em seu quarto.
—
Assim está melhor — disse. — Esta mão, como o ‘Irmão, nós temos que morrer!’
dos frades trapistas[1], me fará meditar sobre coisas sérias, quando eu for
dormir.
Depois
de uma hora, eu o deixei, e voltei para casa.
Dormi
mal naquela noite. Estava agitado e nervoso. Acordei sobressaltado várias
vezes, chegando a imaginar que um homem havia adentrado a minha casa.
Levantei-me para olhar os armários e debaixo da cama. Finalmente, quando
começava a adormecer, lá pelas seis da manhã, um violento golpe à minha porta
me fez saltar da cama. Era o criado de meu amigo, semivestido, pálido e
trêmulo.
—
Ai, senhor! — exclamou. — Assassinaram o meu pobre patrão!
—
Vesti-me com toda pressa e corri à casa de Pierre. A casa estava repleta de
gente que discutia e se agitava. Estavam em movimento constante; cada um
relatava e comentava o sucedido à sua maneira. Cheguei com dificuldade ao
quarto de meu amigo. A porta estava interditada, mas eu dei meu nome e obtive
permissão para entrar. Quatro policiais permaneciam, de pé, no centro do
quarto, com cadernetas na mão. Examinavam tudo, murmuravam entre si e, de
quando em quando, faziam anotações. Dois médicos conversavam junto à cama em
que Pierre jazia, sem sentidos. Não estava morto, mas tinha um aspecto
horrível. Os olhos estavam demasiadamente abertos. Suas pupilas dilatadas
pareciam olhar fixamente, com horror indizível, algo desconhecido e pavoroso.
Seus dedos estavam crispados, e o corpo coberto por um lençol até o queixo.
Levantei o lençol. Em seu pescoço, via-se a marca de cinco dedos que se haviam
afundado profundamente na carne; algumas gotas de sangue manchavam-lhe a
camisa. Foi então que algo me chamou a atenção: casualmente, olhei para a corda
da campainha do quarto, mas a mão dissecada não se encontrava mais ali. Sem
dúvida, os médicos tinham-na removido para não impressionar as pessoas que
entrassem no quarto do homem ferido, porque era uma mão deveras assustadora.
Não perguntei sobre o seu paradeiro.
Recorto,
agora, da notícia de um jornal do dia seguinte, o relato do crime, com todos os
detalhes que a polícia conseguiu amealhar. Eis o que se lê:
“Foi vítima de um
horrível atentado Pierre B., estudante de direito, pertencente a uma das
melhores famílias da Normandia. O jovem voltou a casa às dez da noite, e
despediu-se de seu criado, o senhor Bonvin, dizendo-lhe que estava cansado e
que ia deitar-se de pronto. Cerca de meia-noite, o criado foi despertado
subitamente pela campainha do patrão, que era furiosamente tangida. Ficou com
medo, acendeu o lume e esperou. Não ouviu a campainha por cerca de um minuto,
mas depois a campa voltou a soar com tal violência que o criado, dominado pelo
terror, escapuliu do quarto e foi chamar o porteiro. Este correu para chamar a
polícia e, quinze minutos depois, dois agentes arrombaram a porta. Depararam-se
com um horrendo espetáculo: o mobiliário havia sido derrubado e tudo indicava
que uma luta terrível travara-se entre a vítima e o agressor. No centro do
quarto, caído de costas, com os membros rígidos, o rosto pálido e os olhos
dilatados de terror, jazia o jovem Pierre B. Trazia no pescoço as marcas
profundas de cinco dedos. O relatório do doutor Bordeau, que foi chamado
imediatamente, dizia que o agressor devia ser dotado de uma força prodigiosa e
que a sua mão era extraordinariamente magra e nervosa, pois os dedos, que
deixaram no pescoço como que cinco buracos de bala, quase se juntavam através
da carne. Não há pistas sobre o motivo do crime, nem quanto ao seu autor."
No
dia seguinte, lia-se no mesmo jornal:
“O senhor Pierre B.,
vítima do terrível atentado que relatamos ontem, recuperou a consciência após
duas horas de cuidados constantes do doutor Bordeau. Sua vida não se encontra
ameaçada, mas teme-se muito pela sua sanidade mental. Não há registro do
culpado”.
De
fato, meu pobre amigo ficara louco. Eu o visitei diariamente, durante sete
meses. Mas ele não recuperou a luz da razão. Em seus delírios, dizia palavras
estranhas e, como todos os loucos, tinha uma ideia fixa: acreditava-se
perseguido por um espectro. Certo dia, chamaram-me com urgência. Eu o encontrei
agonizando. Durante duas horas, permaneceu tranquilo. Depois, e apesar de todos
nossos esforços, saltou da cama e, agitando os braços, gritou, como se presa de
um terror assustador:
—
Segurem-na! Segurem-na! Está me estrangulando! Socorro! Socorro! — Ele deu duas
voltas no quarto, gritando. E caiu morto, com a face voltada para o chão.
Como
ele era órfão, fui encarregado de conduzir o seu corpo à aldeia de P..., na
Normandia, em cujo cemitério os seus pais haviam sido enterrados. Foi dessa
aldeia que ele regressara na noite em que nos encontrou a beber ponche na casa
de Louis R. e em que nos apresentou à mão dissecada. O cadáver foi fechado num
caixão de chumbo. Quatro dias depois, eu passeava, desolado, pelo cemitério
onde o seu túmulo era cavado, na companhia do velho padre, que lhe dera as
primeiras lições. Fazia um tempo magnífico. O céu azul era um fluxo de luz. Os
pássaros cantavam nos arbustos da encosta, onde, muitas vezes, quando pequenos,
comíamos amoras. Parecia que eu ainda o
via esgueirar-se pela cerca, e meter-se por uma pequena abertura, que eu
conhecia bem, ali, no final do terreno, onde eram enterrados os pobres. Depois,
regressávamos a casa com bochechas e lábios negros do suco da fruta que
havíamos comido. Olhei para a amoreira, repleta de frutos. Com um gesto
automático, colhi um e o levei à boca. O padre havia aberto o breviário,
resmungando baixinho o seu oremus. E chegava-me aos ouvidos o ruído das pás dos
coveiros que, ao fim do caminho, abriam a cova. De repente, eles nos chamaram.
O cura fechou seu breviário e fomos ver o que eles queriam. Haviam encontrado
um caixão. Com um golpe de picareta,
fizeram saltar a tampa e nos defrontamos com um esqueleto excessivamente longo,
deitado de costas, que, com suas órbitas vazias, parecia ainda nos mirar, como
se nos desafiasse. Experimentei um mal-estar e, não sei por quê, quase senti
medo.
—
Vejam! — gritou um dos homens. — O patife tem um pulso cortado. Eis a mão dele.
E
apanhou, junto ao corpo, uma mão grande mão, que nos exibiu.
— Ei! — disse o outro, rindo. — Veja como ele
olha para você, e parece que vai já saltar ao seu pescoço, para que lhe devolva
a mão.
—
Meus amigos — disse o padre — deixem o
morto e em paz e fechem novamente o caixão. Vamos cavar em outro lugar a
sepultura do pobre senhor Pierre.
No
dia seguinte, estando tudo consumado, regressei a Paris, mas não sem antes
deixar cinquenta francos aos cuidados do velho cura, para que celebrasse uma
missa pelo repouso da alma de quem havíamos violado a sepultura.
Tradução: Zé de Souza
____________________________________________
[1] Religiosos
pertencentes à “Ordem Trapista” (Ordem dos Cistercienses Reformados de Estrita
Observância), congregação religiosa católica derivada da Ordem de Cister.
Comentários
Postar um comentário