COISA DE ARCAICAS TIAS - Conto de Terror - Natanael Gomes de Alencar
COISA DE ARCAICAS TIAS
Natanael Gomes de Alencar
I
Naquela sala, estava frio. Um frio do Alaska. Da
Sibéria. A alma dela também. Fria. Picolé do bode-rubroanho. Mas simulava
gentilezas. Seu nome — Penélia. Costureira conhecida. Muitos anos de batalha. Depois
de um tempo, dera-se ao luxo de escolher pra quem costurar. Era muito procurada
por grupos de escola de samba — mesmo tendo se apossado do que não era seu em
uma delas - e de teatro. Naquele momento, falava com o homem, que tinha uma
arma, chamada de Créssida. Uma Taurus 838c. Novinha. Pensara num funk pra arma.
Novinha — palavra que lhe teimava quando pensava. Mas empacara. A Créssida era especial
para aquele feito a vir. O homem sorvia um cafezinho e a ouvia. Ela falava. Ele
escutava, reparando a parede com infiltrações. Dera um trabalho chegar naquela
chácara. Quase fundira o motor. Ruas cheias de galhos, troncos, pedras e
buracos.
Dona Penélia, mulher no auge da delicada fúria, profissional
de mão cheia, era rija, volumosa, rosto amplo, olhos azuis como o mar e o céu
juntos, vestida com um amplo vestido florido. Ele chegara com dureza desconfiada.
Educado e temeroso. Vestia um terno fora de época. Tinha um bigode grosso e
lustroso. Depois de cerca de meia hora falando de coisas triviais, alguns
palpites sobre o que seria mais adequado vestir nas situações. Não que ele
tivesse perguntado. Depois de discorrer sobre sua arte de alinhavar, ela entrou
no assunto que lhe interessava: ela.
O tempo foi passando e meu nome se apagando. Mas
nunca me importei com isso, sabe? Quando começou minha fama pouca, média,
mediíssima talvez, eu morava no centro, e pra ganhar meu pão, além de fazer
minhas costuras, vendia uns tapetes de tecido grosso, com desenhos de amor,
aqueles amores de mito, de lenda. Vendi muito. Maidaconta. Durante uns oito
anos. Minhas freguesas sempre foram muito apaixonadas.
Assim eu ia tomando conhecimento de suas paixões.
Não precisava muito pra isso. Meu marido sabia da vida de todas. Sempre foi
dado com todo mundo. Já eu não. Não sou de muita prosa. Sei fazer meu serviço,
isso sim. Ninguém nunca reclamou. Tenho muita experiência como costureira. Das
boas.
Quando fiz dezesseis, mãe achou que tava na hora. De
especular outras coisas. De visitar a
Tríade. É que eu tinha umas tias no interior, de fora e de... dentro talvez...
quer dizer: ainda tenho. Dentro aqui. Eram exímias fiandeiras. Teciam numa roca
bem antiga. Moravam há décadas, diziam séculos, na fazenda Tríade. Onde os
recursos, sabe, eram parcos. Mãe colocou na cabeça que eu tinha muito a
aprender com elas. Quando decidiu, foi rápida. Me fez uma matulinha. Me deu
benção. Fechou a porta. E eu casquei. No rumo delas. Parti pela estrada afora,
sabe? Tão sozinha. Levando uns problemazinhos para as tias-vovozinhas. A casa
delas era muito muito afastada da cidade. Longe pra encardir. Mas eu tava
decidida decididíssima a cumprir a vontade de mãe.
Andei muito muitíssimo muito. Se eu não tivesse decidida... Mas eu tava. Queria
fazer a vontade de mãe. Andei muito demais. Nunca andei tanto na vida. Subi
morro, desci rio, atravessei pinguelas, coisa de louco. Meus pés ficaram uma
ferida só. Mas cheguei. E no fim da caminhada elas tavam lá, todas na varanda,
pulando feito crianças, a me esperar. Quase trupicando uma na outra. Feito arteiras arcaicas crianças. Foi só cruzar a
ponte, vieram direto pro abraço. Nem pareciam da idade que tinham. Mãe dizia: “vão
ser sempre jovens, tenham a idade que tiverem. Porém, chegam a parecer velhas,
se velho for o estado de quem as veja.” Quem as visse diria que eram
gêmeas. Mas não eram. Havia diferença de um ano entre elas. A mais velha e mais
alta tinha o nome de Nona. A do meio e mais baixa era tia Décima. A baixíssima
que o povo chamava de A Morta, tinha o nome verdadeiro de Findânia. Nomes bem
esquisitos verdade. Verdade? Minha família é cheia de gente com nome esquisito
esquisitíssimo. Tia Nona possuía o costume de chamar todos por fia, desde
há muito, e acabou que ganhou na infância o apelido de Fia. Até se esquecia de
seu mítico nome. Engraçado que justamente a que fiava ganhou o apelido de
Fia...Então, mal entrei, sentei e comecei a tomar café, tia Fia me puxou de
lado. Gostava de saber de recém-nascidos, de embuchamento: - Filhinha fia
minha, vem cá, me conta sobre as grávidas. Quantas engravidaram na família
nesses últimos dez anos? Segurei o fuso com o qual ela tecia. E respondi a
ela que, nesses dez anos, só minha mãe e eu ficamos de bucho. Falei tudo. Que fiquei grávida com dez anos. Que
meu bebê viveu só sete meses. Que era filho de um bandido que me atacou. Tia
Fia nem quis saber. Foi apanhar roupa no varal. Tia Deci ficou matutando na
minha história. Quando falei na morte do bandido, Tia Findânia foi a única que
sorriu. Esta era chegada em morte. Uma gulosa de velório.
Tia Fia teve dez gestações. Mas não vingaram, falou
Tia Deci, entrando com as roupas na mão. Na última, ainda tavam na cidade.
Quando fez trinta e seis semanas, o marido, bicudo, louco de droga, atingiu ela
com um chute. Matou o feto. Tia nem esperou a noitinha. O disgramado nem
gritou. Sabia do seu merecimento. Tia era
rápida no destecimento. Sem sangrar. Fosse Shy, o de Veneza, tiraria uma libra
de carne sem derramar líquido. Tia Deci começou a falar. Dum amado que Fia
teceu para ela. Moreno, baixo, atarracado, de início bom assim, mudou com o
tempo, assado, e se mostrou, do armário saído um verme infame, afamado nos
jornais como assassino de cinquenta e poucas mulheres. Conhecido como Cobra do
Parque. Despertava medo e ódio. Tia Deci achou que ia conseguir mudá-lo. Tia
Fia, de dó, mas só por causa da mana, desteceu e reteceu o jumento canibal
várias vezes. Não adiantava. Voltava a cagar na cerca. Preso umas trocentas
vezes. Tornou-se ele um dos detentos que mais recebiam cartas de amor na
prisão; no primeiro mês detido, foram mais de mil. Tia Deci era uma delas, a
mais apaixonada, pathos, casou-se a triste com ele na prisão. Condenado à
prisão perpétua, por seus horrendos desfeitos, entre eles a morte da ricaça
grávida Mipala Dio. Brutalmente asfixiespancada naquele hotel, como é mesmo o
nome? Mesmo assim, depois de cinco anos de prisão, o facínora teve licença para
aliançar o romance com Tia Deci, que tinha, veja só você, vinte, vinte aninhos.
Tia Findânia não aguentou !
Certas
coisa a idade não desculpa. Que mulheres são essas que amam assassino? Como?
Num é só a carência no mei das perna, né, Décima? Mas quem sou eu pra jogar
pedras, né mesmo? Algumas de nós gosta de ser valente e diferente....os monstro
tem sedução e os anjo são bunda mole...
Tia Deci se escondendo. E Tia Finda provocando.
“ É como
estar com um ratinho numa gaiola. A gente sabe que eles tão presos e só vão
comer na nossa mão. Não vamos sofrer traição. Se somos traídas e humilhadas
pelo homem livre, não somos pelo homem preso.... Dá adrenalina, né, Deci?”
Tia Deci tava sufocada pela nhaca do assunto, mas
Tia Finda continuou e declarou:
Então,
tive de me meter. Cortei o fio. Redei o monstro do home da linha da vida dela.
Tia Fia quis colocar um tempero de piada na
conversa. “— Você é tão jovem e já aperta
bem o fuso, hein? Você gosta de fuso grandão ou pititim?”
E começava a rachar o bico, enquanto as outra tava
tudo séria. Afinal eu só tinha dezesseis. E continuou nas gracinha:
“ Como
chama a mulher que sabe onde seu marido tá todas as noites?........Vai dizer
que ocê não sabe?.... Viúva. Entendeu? O
marido tá sempre debaixo da terra! Pelo menos até virar cinza!
— “Por que as
mulher não quer mais se casar?....Responde, vai....Não sabe?..... Então, eu
digo: porque não é justo! Imagine: por causa de algumas grama de lingüiça ter
de levar o porco inteiro!” ....
Na época não entendi neca de pitibiriba.
Tia Deci, compreendendo a timidez de meus
dezesseis, rapidamente passou a mão na frente de meu rosto e me vi de língua sem
tramela.
E contei pras tia que, quando fiz dez ano, mãe
vivia dizendo que eu tava com o diabo no corpo, com gastura pra furunfar e isso
tava esquentando a piolhenta dela...
Mas eu era só uma menina ispiculadeira de dez anos. Gostava das coisas da
natureza. De espiar as flor, de terra, de mar. De sujar os pés na lama. Na
vera, ainda gosto. No caminho pra cá, fiz tudo isso....
Mãe sempre foi de lua. Ou era muito boa, ou muito
cruel. Eu com dez anos sofria muito, sem saber por causdequê. Quando fiz
dezesseis, comecei a desconfiar. Do meu primeiro corrimento de sangue pelos
nove ano, até mais “o meno” os dezesseis, ela deu de me olhar diferente. Resmungava maidaconta pelos cantos, dizendo
que mulher nasceu pra sofrer.
Quase todo dia, escutava mãe me dizer que eu tinha
que ser acorrentada! Tinha que trancar a minha diabuceta com cadeado! E meu
irmão? Num tinha que trancar o diamusquito dele também? Ele podia fazer tudo,
desde pequeno. Quando fiz quinze, que mãe passou a me atazanar menos. Dizia que
se arrependia de ter me arreliado tanto, e que a gente, filhas de Eva, tinha
mais é que se acudir. Quando disse isso, as tias olharam uma pra outra,
balançando a cabeça.
O Lico era meu único irmão. Andava sempre de banho
tomado. Me dizia que o diabo odiava limpeza. Já santo não, adorava ficar
limpinho, como minha pele! E passava o dedo. Um sem-vergonha! Desde menino, o falso vivia lendo livro
religioso. Queria ser padre. Lia bíblia de crente e de católico. Sabia tudo
decorado. Cabeça boa.
Meu pai dizia também que Lico era o mais
inteligente, o melhor de nós. Eu ouvia calada. Porque eu sabia que era eu, pois
eu lia livros de qualquer assunto, queria saber de todo livro. Não tinha
preguiça de ler. Desde bem pequetitinha...
Os olhos de Lico me comiam como duas portas de
inferno, escancaradas. Todos de casa fingiam que era outra coisa. E eu tapava
as orelha pra não ouvir o barulho feroz do bicho dentro dele. Até as batidas do
seu coração eu escutava. Quando falei isso, notei os olhos de deusa furiosa das
tia.
Me olhava até com mais gana que os homens do bar.
Se fazia de santo e de anjo. Do pau oco só se for. Casca fina e oca, só se for.
Me despedaçava com suas sedes e toques, como se eu fosse uma qualquer.
Vivia regulando meus vestidinhos. Se eu tava de
vestidinho até o joelho, ele achava que eu tenha de baixar mais. Mas eu vistia
o que tinha pra vistir, uai! Toda hora, que se chocava comigo em casa, ia prum
canto rezar...Como é que era mesmo a oração dele?...Ah, lembrei. Ele rezava
assim: “Jesus, Maria, José, nossa família
tua é! Sai, Satanás, pecado de mulher, desta família de fé!”
Eu Satanás? Eu? Ele que era o dianho, o capiroto, o
amigo do gerente, o Sete-Peles. Falei pro pai do olho comprido dele nos meus
peitinhos. E pai defendia o disgramado. Pai dizia que qualquer homem ia olhar.
Até ele. Disse ainda que eu nasci pra atazanar os homens, que nem uma Pomba
Gira!
Aposto que nem sabia o que era Pomba — Gira. Chegou
até a me mandar pra Dona Bina Benzedeira. Pra ver se a pomba era dominada. Caiu
do cavalo. Mãe Bina disse que eu não tinha nada. Falou que eu era só uma menina moça de peito crescendo,
claro que os varão ia ficar tudo de tesoura amolada, doidinhos pra me
descosturar!
Mãe Bina...
Mãe Bina fazia cada churrasco. Foi com ela que pai aprendeu. Quando
aprendeu, começou a fazer churrasco quas’todo sábado. Nunca vi alguém mais
chegado em carne que ele. Depois que meu irmão fez treze, não sei causdequê,
pai começou a mandar ele pra casa da vó Nita. Sabia como manipular Lico. Mãe
não dizia um “a”.
Meu irmão até que adorava ir pra vó. Tinha piscina,
festa e bastante mocinha, quase todas primas de sangue. Que nem dava bola pra
ele. Coitado...Quer saber: coitado nada. Lico merecia.
Dizia que que os churrascos de pai pareciam
churrascos só pra gente velha. Lico dizia que só dava tribufu. Meu pai tri e elas bufu. Ou meu pai fu e elas
tribu...engraçado.
Quando ficava bêbado, humilhava muito minha mãe. E,
chapado como um cão dos infernos, saía por aí, pelo mundão. Pulava de bar em
bar e a cada bar aumentava os amigos. Depois terminava nos braços de alguma
amorosa. Quando disse isso, tia Deci quis saber quem eram as amorosa...
Geralmente amigas de mãe. Elas vinham com papinho
sonso:
“O
coitado tava jogado na praça. Foi abandonado pelos amigos. Tive pena dele.
Tadinho...
— Me
pediu ajuda. Não atinava com o rumo. E a comadre sabe que eu tenho coração
mole, né. Não deixo desamparado um conhecido. Jeito nenhum. A comadre sabe.
— Em
mim, a bondade é natural, como diz Padre Fuentes. Deixei ele dormir na garagem lá de casa um
tiquinho. Mas lá é muito confortável. Tem um sofá que parece uma cama de casal
quando abre. Não passou frio não, viu?”
Mãe respondeu uma vez: “é, não deve ter passado nenhum frio mesmo, deve ter usado cobertor de
carne...das bem pelancudas, que são as que aquecem bem. Brigada por ter
trazido. Não precisava. Mas a comadre podia ter telefonado, né?. Tchau
Pudesse, mamãe fazia farofa na hora com as tripas
dela. Falar nisso. Tou com uma vontade de comer farofa de tripa de porca. Será
que inda tem?
Disse pras tias que um ano antes de ir pra casa
delas, quando fiz quinze, Lico se tornou mais atrevido, e a desculpa dele era a
de me limpar dos demônio pra ser uma serva de Deus. Ele evinha pra cima todo
cheio de carinho e conversa babujada. Pegou uma mania de me dar cafungada no
cangote. Tentava passar a mão no meu rosto. E dizia que eu tinha a pele macia,
que nem nuvem, como se olhasse nuvem de perto...Acho que ele gostava de levar
tunda, porque teimava em repetir o mal feito. Falei
pras tias que antes de ir pra casa delas, ouvi fala de Lico e de pai arapucando
coisa ruim pra mim no quarto de Lico. Falei pra mãe e ela acho que por isso
teve a ideia de eu pra cá tomar o rumo.
Ela até chorou. Antes nem.
Tia Deci passou a mão em meu rosto e eu me calei. Lembrava
de tudo que foi confessado. Depois, serviram pra mim um chá. Um chá que me
deixou tão feliz. Fiquei dois dias com elas um pouco mais. O bastante pra me
firmarem em rituais de tenda vermelha, antigos, que me deram força de dentro-deusa-mãe-nossinhora.
Disseram até segredos de mãe. Que pai foi tecido e destecido por Fia maidaconta.
Muitas vezes. Como aconteceu com meu irmão desde que o senvergonha se soltou.
Não dava porém mais jeito.
Quando voltei pra casa, foi como estivesse com
todas as mulheres da família dentro de mim. Logo, logo, mãe começou a me
ensinar segredos da costura. Principalmente dos cortes. E os churrascos foram
aperfeiçoados com rituais invisíveis. Tias eram sábias de vingança medeia. E a
cada churrasco remoçava mais.
Aquela estação passou. Chegou a vez de traçar um
plano bem maturado, inspirado nas tias. Foi rápido, rapidíssimo. Foi de fácil
execução. Fizemos uma janta especial pros nossos homens...não muito homens, né?
Mentimos que ninfas de eitos da família iriam fazer visita depois do
jantar. Só disse pra eles ficarem mais emocionados. Dei a ideia de fazer
tapeçaria com eles. Lemos muito sobre tal fazer alquímico. Tudo tinha de ser
feito de um modo perfeito. Sem demoras. De maneira rápida rapidíssima, delicada
delicadíssima.
Compramos muita bebida. Das fortes e
fortíssimas. Era preciso. Muita
destilada. A hora passando, urubus volteando em cima, e os dois foram capotando
aos poucos. Depois da meia noite, quando estavam roncando feito porco de banha,
arrastamos eles pro porão, onde a tapeçagem foi tranqüila. Não tivemos medo.
Além do mais, nossa chácara era isolada.
O tempo saltou mais um tanto. Mãe morreu. Muito
depois dos homens. Mulher vive mais. Coisa das deusas. O tempo foi passando.
Mãe morreu. Muito depois dos homens. Minhas primas devem de estar por aí em
algum bosque. As tias? Como me separar delas, se estão despejadas dentro de
mim, no interior de meu eu verdadeiro.
Durante algum tempo, morei longe da chácara. Numa
casa do centro da cidade. Teci meu marido logo depois da morte de mãe. Eu me sentia muito só. Precisava de um Príncipe,
um bom homem. Galanteador. Respeitoso. Que pudesse ser um bom pai. E que fosse
um homem vigoroso, ardente. Afinal, eu tinha o dom de tecer pessoas, já nascido
comigo, dom revelado a mim pelas Tias.
Quando terminei de tecer ele, o home ficou embasbacado.
Quis entender o meu dom. Expliquei a ele que era um dom de berço. Herdado de
almas antigas.
Mas sua curiosidade não tinha limites. Me pedia que
tecesse coisas, dinheiro, enfim, bens materiais. Apesar de ter falado pra ele
várias vezes que só tinha o dom de tecer pessoas.
Dentro de um ano e meio, casamos. Lembro da gente
ter dançado com aquela música tocando: “Me encontrou tão desarmada, que
entreguei meu coração”. E os dias foram correndo. Perfeitos e intensos. Éramos
muito felizes.
Me tornei uma boa costureira. Logo depois, veio o
fato que mudou minha vida. O nascimento de nosso filho. Na primeira vez em que
pegou Odisseu nos braços, disse que ele seria um campeão, um conquistador e que
seus zóio ia botar as rapariga tudo no pé dele! O menino foi crescendo
diferente, tinha uma alma de mulher. Uma boa. De mulher boa. Não de mulher má.
Alma terna, pura, desde petitinha.
Uma vez, minha Odisséia tinha oito anos, a gente já
tratava ela como menino. Foi prum, canto do quarto, pegou uma tesoura e ia
cortar o próprio pintinho. Um ato de desespero. Foi até o pai que descobriu.
Rastou o menino pro quarto e ficou um quinze minutos de prosa...
Noutra vez, ele tinha uns doze. No final de um
jogo, todo mundo alegre no banheiro, e quando meu menino foi tirar o short, viu
que tava de calcinha por baixo. Vestiu de novo o short. Mas todo mundo já tinha
visto. Quando chegou em casa chorando, o pai tava esperando com seus amigos de
bar. Não me lembro quem contou pra ele.
Arrastou o pobre pro quarto. E quando eu fui atrás
e tentei entrar, bateu a porta na minha cara e trancou. Fiquei imaginando o que
ele tava fazendo com minha Odisséia...O tempo passou mais um tanto. A gente
voltou pra chácara. Meu filho virou uma moça bonita, equilibrando com o que já
era por dentro. Uma mulher sensível. Merecendo ser mulher mais do que certas
mulheres que andam por aí.
Teve um dia que minha Odisséia tava com um vestido
bonito e meu marido até elogiou! Levou ela pro quarto e ficaram lá proseando um
tempão. Nem me deixaram entrar... Passaram-se uns dois meses. Lembro que era
Lua Nova. Não se pode preparar porcos em Lua Nova. Aprendemos. Enquanto a gente
esperava a Lua de quarto - crescente, Odisséia ia se aperfeiçoando. Aprendeu a
amolar e limpar todo tipo de arma branca.
Maneja agulhas como artista de circo. Minhas Tias
por dentro davam conselho a ela. Odisséia treinou muito no porão. Como uma
ninja. Virou uma verdadeira Mulher Maravilha. Fez também, de um tecido mais
grosso, uns bonecos de areia pesados. E quando o pai tá longe, treina com eles
de um canto pro outro. Arrasta eles daqui até o quintal. Daqui até o porão. Do
porão até aqui. E marca direitinho o tempo. Fico espantada com a rapidez da
danadinha
II
Meu marido não sabe que hoje vai ser um dia
especial pra ele como foi pra elas. Todas tiveram um dia especial. Todos nós
temos. Só esperar. E é fatal. Alguém sempre está à nossa espera. Em algum
momento da vida, a gente chega na nossa casa e dá com alguém esperando... Esperei
todas. Todas elas... Planejei minuciosamente...
A primeira foi com uma linha. Mergulhei a linha em
cerol. Fiz um cerol bem feito. Bastante cola com bastante vidro moído (inconscientemente,
bate os dedos na mão contrária pra tirar o excesso). Ela, a primeira, veio
provar um vestido. Chegou de maneira bem-educada:
— Posso entrar?
— Pode. Não precisa nem sentar, que eu já tomo as
medidas...
No começo do casamento, ele era cavalheiro. Tão.
Mais da média. Muitíssimo. Se aproximou
de mim como a maioria. Gosto da maioria. Mas palavras doces dizem só pra nos
enlaçar. Disse que tinha tara por costureiras. Gostava do momento de se tomar
as medidas. A proximidade do hálito. A fita nas costas, no tórax. Quase no
sexo. Era a sua tara. De início, eu era muito xucra. Ele disse que me
ensinaria. Que eu não me preocupasse. E me guiou nas minúcias do coito. Com
violência, mas me ensinou. Já era louca, fiquei mais louca por ele. Meu pathos.
Já tava enormizando minha criação de pathos. Mas quando ele virou a cabeça por
umas vagabundas do bairro, eu fiquei furiosa. Excitei os pathos todos. Aquelas
prosti. Prusta. Puta. Uma delas, Brigite, tava todo dia aqui.
— Você engordou um pouco.
— Impressão sua. Tá velha. Com miopia de
costureira. É a roupa que lhe dá ilusão.
Fiquei com gana de fazer uma besteira. Aprendi com
ele. Professor de coisas de bestiário psicológico. Ele sempre foi um homem
violento. Como meu pai. Me excitava com suas pegadas fortes. Comecei a gostar
dos exageros...Ele gostava muito que eu ficasse de quatro... Deixava minha
bunda toda vermelha...
.
— Vou abrir mais essa cava... Já resolveu se quer a
gola imperial?
— Sim, mas sem recortes e sem pespontos. Mas vai
logo que tou com pressa. Você ta ficando lerda. Não era assim.
Peguei a linha, me aproximei, bondosa e serviçal, e
de imediato - “zap” - cortei
sua veia aorta... Sabe, gosto de fazer um serviço
rápido. Sou uma costureira de muita perícia. Se me dá na cabeça fazer, faço. O
trabalho sai daqui ó.
Desde o início, tive medo que as freguesas
perguntassem das manchas em sua pele. É que ele adorava apanhar. Que eu
enforcasse com umas argolas seu feroz fuso. Que eu o chicoteasse como ele me
chicoteava. Sempre teve desculpa pra cada ferimento. Fui me adaptando às suas
violências. Aprendi a comprar cremes pra facilitar as fantasias - estupros que
ele me fazia. Se ele me olhava e a bunda não estava quase sangrando, me batia
mais forte na próxima vez. Será que elas batiam nele também?
— Quer que eu mantenha a abertura tradicional ou
você quer a lateral?
— Acho a tradicional mais discreta...Só 5cm de
fenda, hein...
A segunda amante dele era minha melhor amiga. Como
eu fui sonsa. Não teria percebido nada se... Um dia eu tava escovando o terno
dele e encontrei...Eu sabia que era dela... Eu que vendi pra traíra. O meu melhor
trabalho.
— Você sabe que pode dar um volume maior aos seios,
não sabe, amiga?
— Sei... É disso que gosto. Deliro com a ideia de
ressaltar o colo.
E o sutiã dela eu fiz com muito esmero. Comprei a
melhor renda, numa cor Vermelho-paixão. Afinal, era minha amiga preferida. Ela
queria um sutiã erótico. Fiz um na exata medida de abrigar os peitos dela. Eu
nem imaginava que ela iria estrear com meu marido...Ele deve ter se babujado,
achado uma delícia. Nem deve de ter percebido que eles eram quadrados, cheios
de veias e estrias, parecendo gelatina. Minha opinião de costureira! Não de
traída.
Quantas
vezes, minha mãe cuidou dela quando era menor. O pai e os primos abusavam dela
direto. Cansei de apoiar a cabeça dela nos meus ombros. E agora a sem-vergonha
dava pro meu marido......Verdade que pagava bem as costuras que eu lhe fazia.
— Quer passadores duplos na cintura?
— Não. Esta saia usarei sem cintos. O cós pode ser
mais estreito.
Sempre foi
generosa. E sonsa. Aposto que ele rasgou com os dentes. Há tempos atrás, quando
eu estava mais, ele costumava destroçar com os dentes minhas calcinhas e
sutiãs. Planejei a morte dela uma semana antes. Inventei o pretexto de lhe dar
uma peça íntima inigualável. Uma peça
erótica diferente. Uma novidade que eu criara inspirada numa modelo
internacional. Ela caiu...
— Botões de madrepérola ou madeira?
— Madrepérolas, é claro. Quero as ombreiras
embutidas.
A segunda fulana, da rua de trás, parecia ter um
joelho no rosto. O seu nome era Débora. Tinha uma bunda um pouco torta, de
silicone, fruto de uma cirurgia mal feita... Ele bolinava elas na minha
frente... o desgraçado...Até que...tive a idéia de dar um fim nas duas. Comecei
a arquitetar a morte delas. Brigite foi fácil. Gostava de viver aqui. De
fofocar dos outros. De lamber com os olhos o que era dos outros. Outras. Até
conseguir a satisfação. Nas minhas costas. Na frente. Em cima. Embaixo.
— Bolsos tipo faca podem deixar os quadris
maiores...
— Não, se presos ao cós e pences. Mantenha-os, por
favor. Que fedor! Tomou banho?
Ainda isso. A vaca. Me aproximei por trás e
enfiei-lhe uma ponta de tesoura envenenada na nuca. Demorou pra que eu a
retalhasse. Carne muito dura. Piquei a carne em blocos pequenos. E temperei
bem.
A outra, do outro dia, fiquei pensando em
reconsiderar. Ela chegou tão contente. Tão feliz. Mas desconsiderei a
reconsideração.
— Vou ter que apertar mais aqui.
— Me parece que atrás também...
Peguei a agulha e finquei no meio de seu coração...
Herdei de minha mãe o dom. Minha mãe matou todas as amantes de meu pai. Todas
amigas. Minha mãe matava e eu ajudava a retalhar os corpos. Fizemos grandes
churrascos. Ninguém desconfiou. Sempre gostaram do sabor da carne.
A derradeira que me deu muito trabalho. A atriz. Era
a mais desconfiada. Tive de esperar um mês. Deixei-a no centro da sala, olhando
uns modelos de vestido transparentes, e fui pegar uma régua de costura metálica
que estava encostada no canto. Fiz tudo com cuidado.
— Vou ter que deixar mais largo aqui.
— A altura também. Quero abaixo dos joelhos. Assim.
Peguei, mensurei as pernas, com cuidado, e deslizei
a régua, que eu tinha deixado qual uma afiada navalha e penetrei nos seus
quadris. Quando ela desmaiou, esguichando sangue, Odisséia não demorou, deu um
jeito de parar aquela cachoeira. Limpou tão bem! Que beleza! Minha filha amada!
Nem parecia que alguém tinha morrido. Quando desnudamos o corpo, notamos uma
coisa. Uma coisa que estava bem oculta. A mulher tinha um. Quando virou
churrasco, foi a melhor parte. Dividimos pelo meio. Parecia uma auroreal e
sádica lingüiça do açougue do Pepe. A melhor da região.
Nossa, está escurecendo, o meu marido está pra
chegar. Hoje é o dia dele. Aniversário? Seu? Não? Dele? Pode ser. Ah, sim, eu
quero que o senhor faça tudo rápido. Por isso a paga farta. O senhor não
reclame. Dei a si tudo o que poupamos em barras de ouro. Certo?
O homem formal fica sem jeito, sem saber como
proceder. A porta se abre, mas, entra... o invisível. O essencial aos olhos?
Ninguém? Ih, ela é louca... Mas a porta se abriu sozinha. Quê?
— Olá, amor! Que bom que você chegou. Eu já vou
preparar o seu jantar. — Beijou o ar e foi beijada por ele.
— Eu estava te esperando. — Pegada ao colo pelo ar.
Pelo peso, o ar é potente.
O homem formal assustou-se.
— Ah, sim. Me solta. Deixa eu te apresentar. — É
depositada no solo.
— Benzinho, este aqui é um freguês novo. Filho do
seu Caronte. — Sente a mão úmida do
marido apertando a sua. Como?
— Meu marido...
quando ia falar o nome de novo é sustentada no colo.
— Eu tenho uma surpresa pra você, sabe? — O
invisível, feliz pelo aguardado, gira com a esposa no colo. — Vamos na cozinha.
Odisséia tem um chá pra você. — Já
voltamos, seu Bigode.
Misteriosamente, o assassino, contratado para matar
a costureira e sua filha, depois que dessem um fim no homem-pai-marido, se
encolheu na poltrona até ser sugado, sumir. Por mais que tentasse fugir, era
impossível. Quem mandou aceitar o serviço num lugar tão escamoso?
Natanael Gomes de Alencar nasceu em Cubatão – SP. Na década de 90, conheceu e colaborou com a Mirante – revista literária santista da qual ainda faz parte - e com a Revista Pégaso (também santista). Ainda nessa década, foi membro da Academia Petropolitana de Poesia Raul de Leôni, Petrópolis –RJ. Participou do Mapa Cultural Paulista, de alguns concursos regionais, e hoje faz parte da Casa do Poeta da Sociedade Amigos da Biblioteca – SAB - Municipal de Cubatão e declama poemas conhecidos e desconhecidos na TV Comunitária local – TV POLO.
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