NO PÁTIO DO DRAGÃO - Conto Clássico de Terror - Robert William Chambers
NO
PÁTIO DO DRAGÃO
Robert
William Chambers
(1865 – 1933)
Abalado com a leitura do maldito
livro O Rei de Amarelo, um homem busca refúgio na igreja de São
Barnabé, em Paris. Durante o ofício sagrado, ele é surpreendido pela música
sinistra e perturbadora que irrompe do órgão. Mais tarde, ao passar por ele, o
misterioso organista lança-lhe um olhar de ódio intenso e mortal. Magro e de
face lívida, vestido de preto, este homem passa a persegui-lo insidiosamente
pelas ruas de Paris, prenunciando um confronto macabro e aniquilador. “No Pátio
do Dragão” é um dos contos que integram a antologia “O Rei de Amarelo”,
do escritor norte-americano Robert William Chambers (1865 – 1933), uma das mais
importantes obras da literatura fantástica e de terror do século XIX.
Oh,
Tu, que te queimas no coração pelos que estão a queimar
No
inferno, cujas chamas tu irás, a tua vez, alimentar;
Quando,
aos prantos, gritarás: “Deus, tende piedade deles!”?
Ora,
quem és tu para ensinar e Ele para aprender?[1]
Na
igreja de São Barnabé, as vésperas haviam terminado. O clérigo deixou o altar.
Os meninos do coro atravessaram o presbitério e se instalaram em seus bancos.
Um guarda suíço de rico uniforme avançou pela nave sul fazendo ressoar o seu
bastão a cada quatro passos sobre o chão de pedras. Atrás dele vinha aquele
eloquente pregador e bom homem, Monsenhor C...
Meu
assento situava-se próximo da balaustrada do altar. Voltei-me em direção à
extremidade oeste da igreja. As outras pessoas, que estavam entre o altar e o
púlpito, também se voltaram. Houve algum arrastar de pés e farfalhar de roupas
enquanto a congregação se sentava novamente. O pregador subiu as escadas do
púlpito e o som do órgão foi voluntariamente interrompido.
Eu
sempre achei a música do órgão de São Barnabé sumamente interessante. Era
erudita e científica demais para os meus pobres conhecimentos, mas expressava
uma inteligência vívida, malgrado um tanto fria. Além disto, tinha a qualidade
francesa do gosto. O gosto reinava supremo, autocontrolado, digno e reticente.
Hoje,
no entanto, desde o primeiro acorde, eu senti uma mudança para pior, uma
mudança sinistra. Durante as vésperas, fora principalmente o órgão do
presbitério que havia sustentado o belo coro, mas, de vez em quando, de uma
maneira bem caprichosa, a partir da galeria oeste, onde ficava o grande órgão,
uma pesada mão irrompia na igreja, maculando a paz serena dessas claras vozes.
Era algo mais que áspero e dissonante e não traía qualquer falta de habilidade.
À medida que se repetia, eu recordava o que os meus livros de arquitetura
diziam acerca do antigo costume de consagrar o coro assim que este era
construído, e que a nave, concluída às vezes meio século depois, muitas vezes
não recebia bênção alguma: futilmente, eu me perguntei se não seria este o caso
de São Barnabé e se algo que normalmente não deveria estar num templo cristão
poderia ter entrado, sem ser percebido, e tomado posse de sua galeria oeste. Eu
tinha lido sobre ocorrências desta natureza, mas não em obras sobre
arquitetura.
Lembrei-me,
então, de que São Barnabé não tinha muito mais que cem anos, e sorri ante a
incongruente associação das superstições medievais com essa animada peça do
rococó do século XVIII.
Meu
incômodo nervoso transformou-se em raiva. Quem estaria fazendo aquilo? Como se
atrevia a tocar assim em pleno serviço divino? Olhei para as pessoas que me
rodeavam: ninguém parecia incomodar-se. As plácidas frontes das freiras
ajoelhadas, ainda voltadas para o altar, nada perdiam de sua devota abstração
sob a pálida sombra de seus brancos véus. A elegante senhora ao meu lado mirava
esperançosa para o Monsenhor C... Pelo que o seu rosto delatava, o órgão
poderia estar tocando uma Ave-Maria.
Mas,
agora, as vésperas haviam terminado e em seguida deveriam ter soado alguns
acordes tranquilos, adequados a acompanhar a meditação, enquanto aguardávamos o
sermão. Em vez disto, a discórdia no extremo inferior da igreja irrompeu com a saída dos clérigos, como se agora nada pudesse controlá-la.
Sou
filho de uma geração mais velha e simples, que não gosta de buscar na arte
sutilezas psicológicas. Sempre me recusei a encontrar na música algo mais que a
melodia e a harmonia, mas senti que, no labirinto de sons que emanava daquele
instrumento, algo era caçado. Para cima e para baixo os pedais perseguiam-no,
enquanto o teclado bramava a sua aprovação. Pobre diabo! Quem quer que fosse,
parecia haver pouca esperança de escapar!
Mas
agora, finalmente, o pregador havia feito o sinal da cruz e ordenado silêncio.
Voltei-me para ele com prazer. Até então, eu não tinha encontrado a serenidade
que havia procurado ao entrar em São Barnabé naquela tarde.
Estava
exaurido por três noites de sofrimento físico e perturbação mental: a última
havia sido a pior de todas e foram um corpo exausto e uma mente entorpecida,
conquanto agudamente sensível, o que eu havia levado à minha igreja favorita em
busca de cura: eu havia lido O Rei de
Amarelo.
—
Quando nasce o sol, eles logo se recolhem e se deitam em seus covis[2].
Monsenhor
C... pronunciava o texto com serena voz, olhando placidamente a congregação.
Voltei o olhar, não sei por quê, ao extremo inferior da igreja. O organista
estava saindo detrás dos tubos e, ao passar pela galeria, eu o vi desaparecer
por uma pequena porta que conduz a umas escadas que, de sua feita, descem
diretamente à rua. Era um homem magro e tinha a face tão branca quanto a sua
casaca era negra. “Já vai tarde”, pensei. “Leve consigo a sua música pérfida.
Espero que o seu assistente faça o improviso final”.
Com
um sentimento de alívio — com um profundo e calmo sentimento de alívio —,
voltei-me para o tranquilo rosto do púlpito e me dispus a escutar. Aqui,
finalmente, estava a serenidade mental que eu procurava.
—
Meus filhos — dizia o pregador —, existe uma verdade que a alma humana encontra
maior dificuldade em aprender: que ela nada tem a temer. Nunca aprende que nada
pode prejudicá-la realmente.
“Curiosa
doutrina”, pensei, “para um sacerdote católico; vejamos como ele reconcilia
isto com os Santos Padres da Igreja”.
—
Nada pode verdadeiramente prejudicar a alma — prosseguiu ele com sua mais
serena e clara das inflexões — porque...
Mas
eu não ouvi o restante. Meus olhos abandonaram a sua face, não sei por que razão,
e procuraram o extremo inferior da igreja. O mesmo homem saía de trás do órgão
e avançava pela galeria pelo mesmo
caminho. Mas ele não teria tempo de voltar e, se tivesse retornado, eu o
teria visto. Senti um leve calafrio e uma constrição no peito. De toda forma,
seu ir e vir não era da minha conta. Eu o olhava: não podia desviar meu olhar
de sua figura negra e de seu rosto lívido. Quando estava exatamente à minha
frente, ele se virou e me enviou, enquanto percorria a igreja, um olhar de ódio
intenso e mortal: nunca havia visto um olhar como aquele. Queira Deus que
jamais volte a vê-lo! Então ele desapareceu pela mesma porta pela qual eu o
tinha visto partir há menos de sessenta segundos.
Sentei-me
e tratei de ordenar os meus pensamentos. Minha primeira sensação foi a de uma
criança muito pequena que se machuca e prende a respiração antes de cair no
choro.
Descobrir-me,
de repente, objeto de um ódio como aquele era estranhamente doloroso. E aquele
homem era um completo desconhecido. Por que me odiava assim? Justamente a mim,
alguém ele jamais havia visto? Por um instante, todas as sensações se fundiram
nessa única sensação: até o medo se subordinava ao pesar e naquele momento não
tive a menor dúvida; mas, no seguinte, comecei a raciocinar e uma sensação de
incoerência veio em meu auxílio.
Como
disse, São Barnabé é uma igreja moderna. É pequena e bem-iluminada. De uma só
mirada é possível abarcá-la inteiramente. A galeria do órgão recebe uma intensa
luz branca de uma fileira de compridas janelas do clerestório, que se ressentem
de vitrais coloridos.
Como
o púlpito se situa no meio da igreja, quando eu estava voltado para ele, tudo o
que se movesse no lado oeste não podia deixar de atrair o meu olhar. Quando o
organista passou, não seria de admirar que eu o tivesse visto: eu simplesmente
calculara mal o intervalo de tempo entre a sua primeira e segunda passagens.
Ele havia entrado na última vez por uma outra porta lateral. E, quanto ao olhar
que tanto me perturbara, eu não vira realmente tal coisa. Eu era um tolo
nervoso.
Olhei
em volta. Aquele era mesmo um lugar propício a abrigar horrores sobrenaturais! O
semblante bem definido e razoável do Monsenhor C..., seus modos contidos, seus
gestos graciosos e simples não seriam desalentadores para um mistério medonho?
Olhei acima de sua cabeça e quase ri. Aquela senhora esvoaçante, sustentando um
canto da cobertura do púlpito, que se
assemelhava a uma toalha de damasco franjada sob um forte vento, apontaria sua
trombeta de ouro e sopraria para fora da
existência um basilisco em sua primeira tentativa de acomodar-se na galeria do órgão.
Esta fantasia, que me pareceu bem divertida, fez-me rir sozinho, e fiquei ali
sentado, a sorrir de mim mesmo e de tudo mais, da velha harpia do lado de fora
da balaustrada, que me fizera pagar dez centavos pela cadeira antes de me
franquear o acesso (ela parecia mais um basilisco — disse para mim mesmo — do
que o organista de aparência anêmica); da velha e austera senhora e até mesmo...
— oh, sim! — do próprio Monsenhor C... Pois toda devoção havia desaparecido. Eu
nunca fizera algo assim na vida, mas agora sentia o desejo de escarnecer.
Quanto
ao sermão, dele não pude escutar uma única palavra, pois em meus ouvidos
ressoava:
A túnica de São Paulo chegou,
Depois de nos pregar aqueles seis
sermões da Quaresma
dando tempo aos pensamentos mais
fantásticos e irreverentes.
Não
adiantava ficar ali, sentado, por mais tempo: eu precisava escapar e me livrar
daquele odioso estado de ânimo. Eu sabia a indelicadeza que estava perpetrando,
mas, ainda assim, me levantei e abandonei a igreja.
O
sol primaveral brilhava na Rue Saint Honoré enquanto eu descia a escadaria da
igreja. Numa esquina havia um carrinho de mão cheio de narcisos amarelos,
violetas pálidas da Riviera, violetas russas escuras e jacintos romanos em uma
nuvem dourada e meiga. A rua estava cheia de pessoas em busca de prazeres
domingueiros. Balancei a minha bengala e ri com elas. Alguém me alcançou e
passou. Não se virou, mas vi a mesma mortal malignidade, que eu observara em
seus olhos, em seu pálido perfil. Eu o observei enquanto podia vê-lo. Suas
magras costas exprimiam a mesma ameaça. Cada passo que ele dava, afastando-se
de mim, parecia levá-lo a alguma atividade associada à minha destruição.
Avancei
devagar. Meus pés quase se recusavam a mover-se. Então insinuou-se em mim uma sensação
de responsabilidade por algo esquecido há muito tempo. Começou a me parecer
evidente que eu merecia aquilo que me ameaçava: era algo que remontava a um
tempo pretérito, muito, muito pretérito. Havia hibernado por todos estes anos:
todavia, estava ali e agora se erguia para enfrentar-me. Mas eu tentaria
escapar. E, assim, avancei, aos tropeções, mas como pude, pela Rue de Rivoli,
transpus a Prace de la Concorde e peguei o Quai. Fitei, com olhos enfermos, o
sol que brilhava através da espuma branca da fonte, e esta se derramava sobre
as costas de bronze sombrio dos deuses do rio no Arco distante, uma estrutura
de névoa de ametista entre incontáveis vislumbres de troncos gris e galhos
levemente verdes. Então o vi novamente a descer uma das alamedas de
castanheiros do Cours la Raine.
Deixei
a margem do rio e me embrenhei cegamente nos Champs Élysées, virando-me na
direção do Arco. O pôr do sol lançava seus raios sobre a área verde do
Rond-point. Sob a luz intensa, estava ele sentado em um banco rodeado por
crianças e jovens mães. Não era mais que um transeunte domingueiro, assim como
os outros e eu. Pronunciei as palavras quase em voz alta, sem tirar os olhos do
ódio maligno que havia em seu rosto. Mas ele não olhava para mim. Passei
dificultosamente por ele e avancei, arrastando os pés de chumbo pela avenida. Eu
sabia que cada vez que o encontrava, mais próximo eu o levava à realização de
seu intento e do meu destino. Ainda assim, eu tentava me salvar.
Os
últimos raios do sol poente derramavam-se ao longo do grande Arco, sob o qual
passei e encontrei-me cara a cara com ele. Eu o havia deixado lá embaixo, nos
Champs Elysées. Todavia, ele veio em meio a um fluxo de pessoas que voltava do
Bois de Boulonge. Chegou tão perto de mim que me roçou. Sua magra compleição
parecia de ferro dentro de sua capa negra e folgada. Não demonstrava pressa,
nem cansaço, nem qualquer sentimento humano. Todo seu ser exprimia apenas uma
coisa: a vontade e o poder de fazer-me o mal.
Angustiado,
eu o vi a avançar pela larga avenida cheia de gente, na qual reluziam rodas e
arreios de cavalos e os capacetes da Guarda Republicana.
Logo
eu o perdi de vista. Então, virei-me e fugi. Segui ao Bois e muito mais além —
não sei para onde fui —, mas, depois de um bom tempo, conforme me pareceu, a
noite havia caído, e eu me encontrei sentado a uma mesa defronte de um pequeno
café. Eu vagara de volta para o Bois. Fazia horas que eu não o via. A fadiga
física e o sofrimento mental não me deixavam espaço à capacidade de pensar ou
sentir. Eu estava cansado... Tão cansado! E desejava esconder-me em meu
refúgio. Resolvi voltar para casa. Mas ela ficava a uma distância considerável.
Eu
moro no Pátio do Dragão, uma estreita passagem que vai da Rue de Rennes à Rue
du Dragon.
Era
um “impasse”, transitável somente por pedestres. Acima da entrada da Rue de
Rennes há uma varanda sustentada por um dragão de ferro. Dentro do pátio,
erguem-se, de ambos os lados, casas antigas e altas que cerram as extremidades
que dariam para ambas as ruas. Enormes portões, que recuam, abertos, durante o
dia, para junto das paredes de arcos profundos, fecham o pátio à meia-noite.
Para entrar, é preciso tocar a campainha em certas portinholas laterais. O
pavimento esburacado acumula poças insalubres. Íngremes escadas descem até as
portas que se abrem para o pátio. O rés do chão é ocupado por lojas de artigos
de segunda mão e por ferreiros. Durante todo dia, o lugar reverbera o tilintar
dos martelos e o tinir das barras de metal.
Apesar
da insalubridade da parte baixa, há, em cima, alegria, conforto e trabalho
duro.
No
quinto andar ficam os ateliês de arquitetos e pintores, e os refúgios de
estudantes de meia-idade como eu, que querem viver sozinhos. Quando lá cheguei
para morar, eu era jovem e não estava só.
Tive
de andar um bocado antes que um transporte aparecesse, mas, finalmente, quando
quase havia chegado ao Arco do Triunfo novamente, passava um coche vazio e eu o
peguei. O trajeto entre o Arco e a Rue de Rennes faz-se em mais de meia hora,
especialmente quando se é conduzido por um cavalo de aluguel cansado, que
estivera à mercê da gente festiva domingueira.
O
tempo que levei antes de passar sobre as asas do Dragão ter-me-ia permitido
encontrar o meu inimigo várias vezes, mas eu não o vi nenhuma vez e, agora, o
meu esconderijo estava próximo.
Diante
do amplo portão brincava uma pequena multidão de crianças. Nosso porteiro e sua mulher caminhavam entre
elas com seu poodle negro, mantendo a
ordem. Alguns casais dançavam a valsa na calçada. Retribuí seu cumprimento e
entrei apressadamente.
Todos
os moradores do pátio haviam saído à rua. O lugar estava bastante deserto,
iluminado por algumas lanternas penduradas no alto, nas quais o gás queimava
debilmente.
Meu
apartamento ficava no último andar do prédio, a meio caminho do pátio, e
chegava-se a ele por uma escada que descia quase até a rua, deixando livre apenas
uma estreita passagem. Pus os pés no limiar da porta aberta, e a escada
arruinada e amistosa ergueu-se à minha frente para me conduzir ao descanso e ao
abrigo. Ao olhar sobre o ombro, eu o
vi, a dez passos de distância. Ele devia ter entrado comigo no pátio.
Ele
avançava — nem lenta nem rapidamente — diretamente para mim. Agora me fitava.
Nossos olhos voltaram a se confrontar pela primeira vez desde que se haviam
cruzado na igreja e eu sabia que a hora havia chegado.
Recuei
ao pátio, e o encarei. Eu queria escapar pela entrada da Rue du Dragon. Seus
olhos me disseram que eu nunca escaparia.
Parecia
que séculos haviam transcorrido enquanto caminhávamos. Eu recuando e ele
avançando, seguindo pelo pátio em perfeito silêncio. Mas, por fim, senti a
sombra da arcada e o passo seguinte me levou ao seu interior. Tencionava me
virar naquele ponto e correr para a rua. Mas a sombra não era a de uma arcada;
era a de uma cripta. Os grandes portões da Rue du Dragon estavam fechados. Eu
senti isto pela escuridão que me cercava, e no mesmo instante eu pude ler o
mesmo em seu rosto. Como brilhava o seu rosto na escuridão, enquanto
rapidamente se aproximava de mim! As profundas criptas, os enormes portões
fechados, os frios ganchos de ferro estavam todos ao seu lado. Aquilo com que
ele me ameaçara havia chegado: concentrou-se e caiu sobre mim vindo das sombras
insondáveis. O ponto de onde me atacaria seriam os seus olhos infernais. Sem
esperanças, apoiei as minhas costas nos portões cerrados e o desafiei.
*
Houve
um arrastar de cadeiras no chão de pedra e um farfalhar de roupas quando a
congregação se levantou. Eu podia ouvir o guarda suíço na nave sul precedendo o
Monsenhor C..., rumando em direção à sacristia.
As
freiras ajoelhadas despertaram de sua devota abstração e, fazendo uma
reverência, se retiraram. A elegante senhora, minha vizinha, também se levantou
com graciosa reserva. Ao partir, o seu olhar percorreu o meu rosto com
desaprovação.
Meio
morto — ou assim me pareceu —, embora intensamente vivo para cada detalhe,
permaneci sentado em meio à multidão que se movia vagarosamente. Depois,
levantei-me e me dirigi à porta.
Eu
havia dormido durante todo o sermão. Será que eu havia mesmo dormido durante o
sermão? Olhei para cima e o vi passando pela galeria até o seu lugar. Eu só o
vi de lado: seu braço delgado e curvado em sua capa preta parecia um desses
diabólicos instrumentos inomináveis que jazem nas câmaras de tortura
desativadas dos castelos medievais.
Mas
eu havia escapado dele, apesar de os seus olhos me dizerem que eu não
escaparia. Mas eu havia escapado
realmente? Aquilo que lhe conferia poder sobre mim ressurgiu do esquecimento
onde eu pretendia mantê-lo. Pois, agora, eu o conhecia. A morte e a terrível
morada das almas perdidas, para onde a minha fraqueza há muito o havia enviado,
tinham-no transformado para todos os outros olhos, à exceção dos meus. Eu o
reconhecera quase desde o princípio. Em nenhum momento duvidei daquilo que ele
viera fazer. E agora eu sabia que, enquanto o meu corpo permanecia sentado e
seguro naquela alegre igrejinha, estivera ele a caçar a minha alma no Pátio do
Dragão.
Rastejei
para a porta. Acima, o órgão irrompeu, estrondoso. Uma luz deslumbrante encheu
a igreja, apagando o altar diante dos meus olhos. As pessoas sumiram, os arcos,
o teto abobadado desaparecerem. Levantei os meus olhos chamuscados para o
reluzir insondável e vi estrelas negras pendendo dos céus, e os ventos úmidos
do lago de Hali regelaram a minha face.
E
agora, bem ao longe, sobre léguas de nebulosas ondas agitadas, vi a lua
espargindo jatos d’água. E, mais além, as torres de Carcosa[4] erguiam-se
por detrás da lua.
A
morte e a terrível morada das almas perdidas, para onde a minha fraqueza há
muito o havia enviado, tinham-no transformado para todos os outros olhos, à
exceção dos meus. E agora eu ouvia a sua
voz, que se erguia, encorpava-se, retumbando através da luz radiante. E,
enquanto eu caía, a irradiação, que aumentava mais e mais, derramou sobre mim
ondas de fogo. Então, mergulhei nas profundezas e ouvi o Rei de Amarelo
sussurrando à minha alma:
—
Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo![5]
Tradução de Paulo Soriano
[1]
Poema de Edward FitzGerald (1809 – 1883), constante da introdução à sua
tradução do “Rubaiyat”, de Omar Khayyam (1048 – 1131).
[2]
Salmo 104, versículo 22.
[3] Trecho de Up at Villa-Down in the City, poema satírico do escritor inglês
Robert Browning (1812 – 1889).
[4]
Referência à cidade fantástica de Carcosa, cenário do conto O Habitante de Carcosa, do escritor
norte-americano Ambrose Bierce (1842 – 1914?). Hali, nome citado no parágrafo anterior, aparece
no conto, mas não designa um lago, senão um vetusto escritor versado em coisas
d’além-túmulo.
[5]
Epístola aos Hebreus, livro canônico
erroneamente atribuído a Paulo de Tarso (ca. 5 – ca. 67 d.C.), São Paulo para
os católicos, capítulo 10, versículo 31.
Mais um texto que não me recordo de ter visto em coletâneas nacionais. Parabéns pela iniciativa!!
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