OS IMIGRANTES - Conto Clássico de Horror - Horacio Quiroga



OS IMIGRANTES
Horacio Quiroga
(1878 – 1937)
Tradução de Paulo Soriano


O homem e a mulher caminhavam desde as quatro da manhã. O tempo, decomposto em asfixiante calma de tormenta, tonava ainda mais pesado o vapor nitroso da charneca. A chuva, por fim, caiu e durante uma hora o casal, encharcado até os ossos, avançou obstinadamente.

A chuva cessou. O homem e a mulher olharam-se, então, com angustiosa desesperança.

― Ainda tem força para caminhar mais um pouquinho? ― disse ele. ―Talvez consigamos alcançá-los...

A mulher, lívida e com profundas olheiras, sacudiu a cabeça.

― Vamos ― disse, retomando o caminho.

Mas logo se deteve, amparando-se, crispada, a um galho. O homem, que seguia em frente, ouviu novamente o gemido.

 ― Não consigo mais!... ― ela murmurou com a boca torcida e empapada de suor. ― Ai, meu Deus!...

O homem, após um amplo olhar ao seu redor, convenceu-se de que nada podia fazer. A sua mulher estava grávida. Então, sem saber onde punha os pés, alucinado de excessiva fatalidade, o homem cortou uns ramos e, estendendo-os no chão, deitou-a sobre eles. Sentou-se junto a ela, colocando a cabeça da mulher sobre as pernas.

Passou um quarto de hora em silêncio. Depois, a mulher estremeceu profundamente, e foi necessária toda maciça força do homem para conter aquele corpo, projetado violentamente para todos os lados pela eclampsia.

Passada a convulsão, ele permaneceu ainda sobre a mulher, cujos braços continha com os joelhos de encontro ao chão. Finalmente, o homem se ergueu, afastando-se, vacilante, uns passos. Socou a própria testa e tornou a colocar sobre suas pernas a cabeça da mulher, agora mergulhada em profundo torpor.

Veio outro ataque de eclampsia, do qual a mulher saiu ainda mais inerte. Logo em seguida, teve outro, mas, ao extinguir-se este, a vida extinguiu-se também para ela.

O homem percebeu-lhe a morte quando ainda estava de quatro sobre a mulher, somando todas as suas forças para conter as convulsões. Ficou aterrorizado, os olhos fixos na espuma fervente da boca, cujas borbulhas sanguinolentas agora ressumavam na negra cavidade.

Sem saber o que fazia, tocou-lhe a mandíbula com um dedo.

― Carlota! ― disse com uma voz que não era sua, que não tinha entonação alguma. O som de suas palavras o fez voltar a si.  Erguendo-se, o homem olhou para todos os cantos com os olhos absortos.

― É fatalidade demais ― murmurou.

― É fatalidade demais... ― murmurou outra vez, ao tempo em que se esforçava para entender o que acontecera. Eles vinham da Europa, isto não oferecia dúvida. E tinham deixado lá o primogênito, de dois anos.  Sua mulher estava grávida e eles seguiam para Makallé com outros companheiros... Haviam ficado para trás e sozinhos porque ela não podia caminhar direito... E em más condições, sua mulher poderia... poderia ter estado em perigo.

E virou-se bruscamente, olhando enlouquecido:

― Morta, ali!...

Novamente sentando-se, colocando outra vez a cabeça morta de sua mulher sobre as coxas, por quatro horas pensou no que faria.

Não chegou a conclusão nenhuma. Mas quando a tarde caía, alçou a mulher nos ombros e retomou o caminho.

Margeavam outra vez a charneca. O ervaçal se estendia sem fim na noite prateada, imóvel e todo zusunante de mosquitos. O homem, com a nuca vergada, caminhou com igual passo até que a mulher morta caiu bruscamente de seus ombros. Ele ficou de pé uns instantes, rígido, e desmoronou depois dela.

Quando despertou, o sol ardia. Comeu bananas de imbé, embora desejasse algo mais nutritivo, posto que alguns dias passariam até que pudesse depositar em solo sagrado o cadáver de sua mulher.

Levou nos ombros mais uma vez o cadáver, mas as suas forças diminuíam. Então, enrolando-o com cipós entrelaçados, fez do corpo um fardo e, assim, avançou com menos cansaço.

Durante três dias, descansando, reiniciando a caminhada sobre o céu branco de calor, devorado à noite pelos insetos, o homem caminhou e caminhou, sonâmbulo de fome, envenenado por miasmas cadavéricos, com todo o seu desempenho concentrado em uma só e obstinada ideia: arrancar do país hostil e selvagem o corpo de sua mulher.

Na manhã do quarto dia, viu-se obrigado a deter-se, e somente à tarde pôde prosseguir na caminhada. Mas, quando o sol afundava, um profundo calafrio percorreu pelos nervos esgotados do homem que, deitando à terra o corpo morto, sentou-se ao lado dele.

A noite já havia caído e o monótono zumbido de mosquitos enchia o ar solitário. O homem pôde senti-los tecer sua pungente rede sobre o rosto. Mas, do fundo de sua medula gelada, os calafrios afloravam sem cessar.

A ocre lua minguante havia surgido finalmente por trás da charneca. As palhas altas e rígidas brilhavam até os confins em fúnebre mar amarelento. A febre perniciosa subia agora a rédeas soltas.

O homem lançou um olhar para a horrível massa esbranquiçada que jazia ao seu lado e, cruzando as mãos sobre os joelhos, ficou a mirar, fixamente, a charneca venenosa, em cujas lonjuras o delírio desenhava uma aldeia da Silésia, à qual ele e sua mulher, Carlota Phoening, regressavam felizes e ricos para buscar seu adorado primogênito.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

A MULHER ALTA - Conto Clássico de Terror - Pedro de Alarcón

O CORAÇÃO DELATOR. Conto clássico de terror. Edgar Allan Poe