JULGAMENTO POR ASSASSINATO - Conto Clássico de Terror - Charles Dickens e Charles Allston Collins
JULGAMENTO POR ASSASSINATO
Charles
Dickens (1812 – 1870) e Charles Allston
Collins (1828 – 1873)
Tradução de
Alfredo Ferreira
(1865 – 1942)
Sempre notei uma
predominante falta de coragem, mesmo entre pessoas de inteligência superior e
cultas, em externar suas próprias reações psicológicas de natureza estranha.
Quase todos os homens receiam que o que possam contar em tal matéria não
encontre paralelo ou correspondência na vida íntima do ouvinte e se torne
suspeito ou ridículo. Um viajante digno de fé, que visse uma criatura
extraordinária, no gênero da serpente-marinha, não recearia mencionar o fato.
Mas se o mesmo viajante tivesse tido singular pressentimento, impulso,
transmissão de pensamento, visão — assim chamada—, sonho ou outra notável
impressão mental, hesitaria consideravelmente antes de o confessar. A essa
reserva atribuo grande parte da obscuridade na qual tais assuntos estão
envolvidos. Não comunicamos habitualmente nossas experiências dessas coisas
subjetivas como comunicamos as de origem objetiva. A consequência é que o pouco
que se sabe a esse respeito parece excepcional, e de fato o é, por ser
lamentavelmente imperfeito.
Com o que contarei não
pretendo estabelecer, contestar, ou apoiar teoria. Conheço a história do
livreiro de Berlim, estudei o caso de um falecido astrônomo real conforme foi relatada
por Sir David Brewster[1] e
acompanhei nos pormenores um caso muito mais notável de ilusão espectral,
ocorrido dentro do círculo de meus amigos. É necessário estabelecer, quanto a
esse último, que a vítima, uma senhora, não era aparentada comigo, nem em grau
afastado. Uma presunção errônea nesse sentido sugeriria a explicação para parte
de meu caso, mas somente parte, o que seria infundado. O caso não pode ser
atribuído a predisposição hereditária minha, pois não tive antes experiência semelhante,
nem tive depois.
Não importa há quantos
anos, poucos ou muitos, foi cometido na Inglaterra certo assassinato que
despertou grande interesse. Já é demasiado o que ouvimos sobre os assassinos
quando se evidenciam pela atrocidade do crime, e, se pudesse, eu gostaria de sepultar
a lembrança desse bruto, ao qual me referirei, como seu corpo foi sepultado na
prisão de New Gate. Propositadamente, abstenho-me de dar indício direto quanto
à identificação do criminoso.
Logo que se descobriu o
assassínio, nenhuma suspeita recaiu — ou antes deveria dizer, porque não posso
ser preciso nos fatos, não foi insinuado que recaísse suspeita — sobre o homem
que foi mais tarde levado a julgamento. Como nenhuma referência fosse feita a
ele, naquela ocasião, na imprensa, é obviamente impossível que descrição sua
possa ter sido publicada, no momento, pelos jornais. É essencial que esse fato
seja lembrado.
Desdobrando, ao
desjejum, meu jornal matinal, no qual era relatada aquela primeira descoberta,
achei que o caso era profundamente interessante e o li com a maior atenção. Li
duas vezes, senão três. A descoberta fora feita num dormitório e, quando pousei
o jornal, tive a percepção dum lampejo, ímpeto, visão (não sei como chamar; nenhuma
palavra que possa me ocorrer é suficientemente descritiva) no qual eu via
passar aquele dormitório em minha sala, como um quadro absurdamente pintado num
rio corrente. Embora quase instantâneo em sua passagem, era perfeitamente
claro, tão claro que eu, distintamente, e com sensação de alívio, notei a
ausência do cadáver na cama.
Não foi em algum lugar
romântico que tive essa curiosa sensação, mas sim num apartamento em
Piccadilly, muito perto da esquina da rua São Jaime. Foi inteiramente nova para
mim. Eu estava em minha poltrona, naquele momento, e a sensação foi acompanhada
de um estremecimento que mexeu a cadeira a fora de posição. Mas se deve notar
que a cadeira deslizava com facilidade nos gonzos. Fui até uma das janelas
(havia duas no aposento, que ficava no segundo andar) para refrescar os olhos
no movimento de Piccadilly. Era uma clara manhã de outono e a rua estava
cintilante e alegre. O vento era forte. Quando olhei para fora, uma lufada
trouxe do parque uma quantidade de folhas secas, que um remoinho levantou numa
coluna espiral. Quando a coluna caiu e as folhas se dispersaram vi dois homens
no lado oposto da rua, caminhando de oeste a leste. Iam um atrás do outro. O
homem da frente olhava várias vezes atrás sobre o ombro. O segundo o seguia, a
uma distância de cerca de 30 passos, com a mão direita levantada ameaçadoramente.
Primeiro a singularidade e persistência daquele gesto de ameaça num logradouro
público e movimentado atraiu a minha atenção, e, depois, a circunstância ainda
mais notável de que ninguém o observasse. Ambos os homens abriam caminho entre
os outros pedestres com suavidade dificilmente compatível mesmo com a ação de
caminhar numa rua pavimentada. E nenhuma pessoa, que eu pudesse ver, dava
passagem, os tocava ou olhava. Ao passarem diante de minha janela, ambos me
fitaram. Vi os dois rostos muito distintamente e sabia que poderia os
reconhecer em qualquer lugar. Não que eu tivesse observado conscientemente algo
particularmente notável nos dois rostos, exceto que o homem da frente tinha um
aspecto singularmente abatido e que o rosto do homem que o seguia era cor de
cera velha.
Sou solteiro e todo meu
pessoal é constituído pelo criado e sua esposa. Meu emprego é em uma certa
filial de banco e gostaria que minhas obrigações como chefe de seção fossem tão
leves quanto em geral se supõe. Fizeram-me ficar na cidade naquele outono,
quando eu necessitava duma mudança de ar. Eu não estava doente, mas não andava
passando bem. O leitor que tire a melhor conclusão possível de eu me sentir
cansado, ter uma sensação de abatimento geral por causa da vida monótona que
levava, e de estar ligeiramente dispéptico. Tenho a garantia de um médico
afamado de que meu estado geral de saúde naquela época não merecia maior
atenção e estou afirmando isso de uma resposta escrita a meu pedido.
Conforme a circunstância
do crime, gradualmente se encaminhando ao desfecho, se apossavam cada vez mais
fortemente da opinião pública, eu as conservava afastadas da minha, procurando
saber tão pouco quanto possível sobre elas, no meio da excitação geral. Mas
sabia que fora pronunciado contra o indigitado assassino um veredicto de
homicídio voluntário e que fora preso em New Gate e aguarda o julgamento. Sabia
também que o julgamento fora adiado à próxima audiência da corte criminal sob a
alegação de conveniência geral e de falta de tempo à preparação da defesa. É
possível que também soubesse, mas acho que não, quando, ou aproximadamente
quando, começariam as audiências às quais o julgamento fora adiado.
Minha saleta, quarto de dormir e quarto de vestir, eram todos no mesmo andar. Com o último não existe comunicação, a não ser dentro do dormitório. Na verdade, há uma porta nele, que outrora comunicava com a caixa das escadas, mas parte da armação de meu banheiro fora, e estivera durante vários anos, fixada através dela. Na mesma época, e como parte do mesmo arranjo, a porta fora pregada e recoberta encima com lona pintada.
Minha saleta, quarto de dormir e quarto de vestir, eram todos no mesmo andar. Com o último não existe comunicação, a não ser dentro do dormitório. Na verdade, há uma porta nele, que outrora comunicava com a caixa das escadas, mas parte da armação de meu banheiro fora, e estivera durante vários anos, fixada através dela. Na mesma época, e como parte do mesmo arranjo, a porta fora pregada e recoberta encima com lona pintada.
Numa noite, já tarde, eu
estava em meu quarto de dormir, dando algumas instruções a meu criado, antes de
me deitar. Tinha o rosto voltado à única porta de comunicação em uso ao quarto
de vestir, que estava fechada. Meu criado estava de costas a essa porta.
Enquanto estava falando com ele, vi-a abrir-se, e um homem olhar por ela e me
fazer um aceno misterioso e insistente. Aquele homem era o que ia em segundo
lugar Piccadilly afora e que tinha a cara cor de cera velha.
A figura, tendo acenado,
recuou e fechou a porta. Sem outra demora além do tempo que gastei em
atravessar o dormitório, abri a porta do quarto de vestir, e olhei a dentro.
Tinha na mão uma vela acesa. Não sentia esperança íntima de ver o vulto no
quarto de vestir e não vi.
Consciente de que meu
criado ficara assombrado, voltei-me a ele e disse:
— Derrick, queres acreditar que em
meu juízo perfeito imaginei ver um...
Como nesse momento lhe encostasse a mão no
peito, estremeceu violentamente com um movimento brusco de recuo e disse:
— Ó, meu Deus! Sim,
senhor. Um morto acenando!
Agora não acredito que
John Derrick, meu fiel e dedicado criado havia mais de vinte anos, tivesse
impressão de ter visto aquela figura, antes de eu lhe tocar. A mudança de
fisionomia foi tão espantosa, quando lhe toquei, que plenamente acredito que
por algum oculto processo absorveu a impressão de mim, naquele momento.
Mandei Jonh Derrick
trazer aguardente, dei-lhe um bom gole e gostei de tomar um. Não lhe disse
palavra do que precedera o fenômeno daquela noite. Refletindo no caso, tinha
certeza de que nunca vira aquela cara antes, exceto naquela ocasião em
Piccadilly. Comparando a expressão quando acenara à porta com a expressão de
quando me fitara ao passar na rua, cheguei à conclusão de que na primeira
ocasião quisera-se imprimir em minha memória e, na segunda, se certificara de
que seria imediatamente reconhecido.
Não me senti muito tranquilo
naquela noite, embora sentisse a certeza, difícil de explicar, de que a figura
não voltaria. Ao clarear o dia, caí num sono profundo, do qual fui despertado
por Jonh Derrick chegando junto à minha cama com um papel na mão.
Aquele papel, ao que
parecia, fora causa duma altercação, à porta, entre seu portador e meu criado.
Era uma intimação para eu fazer parte do júri na próxima audiência da corte
criminal central em Old Bailey. Eu nunca fora antes intimado para tal júri,
como Jonh Derrick bem sabia. Acreditava, não estou certo se com razão, que essa
classe de jurado era geralmente escolhida entre pessoas de posição inferior à
minha e, a princípio, se recusara a receber a intimação. O homem que a
entregava tomara o caso de maneira muito fria. Dissera que meu comparecimento
ou não comparecimento não lhe interessava. Ali estava a intimação. E eu devia
fazer uso dela por minha conta e risco, e não ele.
Durante um dia ou dois,
fiquei indeciso sobre se deveria atender àquele convite ou não tomar
conhecimento. Não tive consciência de inclinação misteriosa, influência ou
atração, por uma ou outra decisão. Disso tenho certeza, como tenho de toda
outra alegação que aqui faço. Finalmente decidi, como uma quebra na monotonia
de minha vida, que iria.
A manhã marcada foi a de
um dia invernoso de novembro. Havia um denso nevoeiro castanho em Piccadilly,
que se tornou positivamente preto e num grau muito opressivo a leste de Barra
do Templo. Encontrei os corredores e escadarias do tribunal profusamente
iluminados a gás e a própria sala de audiência igualmente iluminada. Penso que,
até ser conduzido pelos funcionários para dentro do velho tribunal, e ver como
estava repleto, não sabia que o assassino seria julgado naquele dia. Penso que
até ser assim introduzido no velho tribunal, com ingente dificuldade, não sabia
a qual das duas instâncias do tribunal minha intimação me levaria. Mas isso não
deve ser tomado como uma asserção positiva, porque em sã consciência não estou
certo sobre algum desses dois pontos.
Tomei assento no lugar
reservado aos jurados aguardarem, e olhei em volta do tribunal, tão bem quanto
pude, através da nuvem de nevoeiro e respiração que o enchia pesadamente. Notei
a névoa negra flutuando como uma cortina escura no lado de fora das grandes
janelas, e notei o som abafado de rodas na palha ou cortiça acamada na rua. Também o sussurro do povo
reunido lá fora, que um apito agudo, ou um som ou grito mais alto,
ocasionalmente varava. Pouco depois, os dois juízes entraram e tomaram lugar. O
zunzum na sala se acalmou de maneira impressionante. Foi dada ordem para
conduzir o homicida à barra. Quando apareceu, reconheci nele o primeiro dos
dois homens que desciam Piccadilly.
Se meu nome fosse
chamado naquele momento, duvido que poderia responder de maneira audível. Mas
era o sexto ou oitavo do quadro, e, quando chamaram, eu já estava em condição
de dizer “Presente!”. Agora observai. Quando entrei no reservado, o
prisioneiro, que estivera olhando atentamente, mas sem sinal de interesse,
ficou violentamente agitado e acenou ao advogado. O desejo do prisioneiro de me
vetar era tão manifesto que provocou uma pausa, durante a qual o advogado, com
a mão apoiada na barra, cochichou com o cliente e abanou a cabeça. Soube
depois, por aquele cavalheiro, que as primeiras palavras assustadas do
prisioneiro a ele foram:
— Na dúvida, recusa
aquele homem!
Mas, como não
apresentasse razão substancial, e admitisse que nunca ouvira meu nome até que
fora proclamado ali e eu aparecera, não foi atendido.
Tanto pelo motivo já
explicado de evitar reviver a memória daquele perverso assassino, como também
porque uma minuta detalhada daquele longo julgamento não é indispensável à
minha narrativa, eu me limitarei estritamente aos incidentes verificados
naqueles dez dias e noites, durante os quais os jurados fomos conservados juntos,
que mais diretamente se relacionem com minha curiosa aventura. É nesta, e não
no assassino, que desejo interessar meu leitor. É a ela, e não a uma página do
calendário de New Gate, que peço atenção.
Fui escolhido para
presidente do júri. No segundo dia do julgamento, depois de tomados depoimentos
de testemunha durante duas horas (ouvi os campanários da igreja badalarem), acontecendo-me
passar os olhos nos jurados meus colegas, achei uma dificuldade inexplicável em
conta-los. Contei-os várias vezes, encontrando sempre a mesma dificuldade.
Resumindo, sempre achava que havia um a mais.
Toquei no braço do jurado, cujo
lugar era ao lado do meu, e sussurrei:
— Faz-me a
fineza de nos contar.
Pareceu surpreso com o pedido, mas
virou a cabeça e contou. Disse subitamente:
— Ora essa! somos treze. Mas não!
Não é possível! Não! Somos doze.
De acordo com minhas
contagens naquele dia, estávamos sempre certos, separadamente, mas em conjunto
havia sempre um a mais. Não havia aparência, nenhum vulto, para causar isso, mas
eu tinha agora uma vaga noção íntima do vulto que certamente surgiria.
Os jurados estavam
alojados na taberna Londres. Dormíamos todos numa grande sala, em camas
separadas, e estávamos constantemente em função e sob a custódia de um policial
designado para nos conservar em lugar seguro. Não vejo razão para encobrir o
nome verdadeiro desse funcionário. Era inteligente, muito educado, prestimoso
e, gostei de saber, muito respeitado na cidade. Tinha maneiras agradáveis, bons
olhos, invejáveis suíças pretas e uma bela voz sonora. Seu nome era Harker.
Quando nos deitamos em
nossas doze camas, na noite, a cama de senhor Harker foi colocada atravessada
na porta. Na noite do segundo dia, não estando disposto a me deitar, e vendo
senhor Harker sentado em sua cama, fui me sentar a seu lado e ofereci uma
pitada de rapé. Quando a mão de senhor Harker tocou a minha, ao tirar o rapé da
caixa, um estremecimento peculiar lhe percorreu o corpo, e disse:
— Quem é aquele?
Seguindo o olhar de
senhor Harker, e espiando ao fundo da sala, vi de novo a figura que esperava: o
segundo dos dois homens que vira em Piccadilly. Levantei-me e avancei alguns
passos, parei e olhei senhor Harker. Estava absolutamente indiferente, riu e disse
em tom de gracejo:
— Julguei, um momento,
que tínhamos um décimo terceiro jurado, sem cama. Mas agora vejo que era o
luar.
Sem fazer confidência a
senhor Harker, mas o convidando a caminhar um pouco comigo até a extremidade da
sala, observei o que a figura fazia. Ficava parada alguns momentos ao lado da
cama de cada um de meus colegas jurados, junto ao travesseiro. Ia sempre ao
lado direito da cama e sempre prosseguia fazendo volta nos pés da cama
seguinte. Parecia, pelo movimento da cabeça, olhar apenas pensativamente a cada
vulto deitado. Não me prestou atenção, nem à minha cama, que era a mais próxima
da de senhor Harker. Pareceu sair onde entrava o luar, através de uma janela
alta, como que em um lance aéreo de escada.
Na manhã seguinte, ao
desjejum, verificou-se que todos os presentes sonharam com a vítima durante a
noite, exceto eu e senhor Harker.
Eu estava, agora,
convencido de que o segundo homem que descia Piccadilly era o assassinado. Era como
se essa ideia me houvesse sido imposta por seu próprio testemunho imediato. Mas
até mesmo isso aconteceu de uma maneira para a qual não estava em preparado.
No quinto dia do
julgamento, quando o caso se encaminhava ao fim do libelo, foi exibida como
prova uma miniatura pertencente ao assassinado, que estava desaparecida de seu
quarto na ocasião da descoberta do caso, e fora depois encontrada num
esconderijo onde o acusado fora visto cavando. Sendo identificada pela
testemunha em inquirição, foi entregue à mesa, e dali enviada pelo júri a
exame. Quando um funcionário, vestindo uma beca preta, se encaminhava a mim com
ela, o vulto do segundo homem que eu vira descendo Piccadilly avançou
impetuosamente do meio da multidão, tomou a miniatura da mão do funcionário e a
deu a mim com as próprias mãos, dizendo ao mesmo tempo em voz baixa e tom cavo,
antes que eu visse a miniatura que estava num broche:
— Eu era mais
moço nesse tempo e não tinha o rosto macilento pela perda de sangue.
Também se interpôs entre
mim e o jurado a quem eu devia entregar a miniatura, e entre ele e o seguinte.
E assim a passou de mão a mão entre os doze jurados, até que voltou à minha
posse. Nenhum dos outros o percebeu.
Às refeições, e em geral
quando ficávamos fechados juntos sob a custódia de senhor Harker, desde o
princípio discutíamos, naturalmente, um bocado o andamento diário do processo.
No quinto dia, estando encerrado o libelo, e tendo aquele lado do caso
inteiramente desdobrado perante nós, nossa discussão foi mais animada e séria.
Entre nós havia um sacristão, o maior idiota que certamente já conheci, que
refutava a prova mais concreta com as mais absurdas objeções, e que era apoiado
por dois papa-hóstias sem firmeza. Os três procediam de maneira tão escrupulosa
que pareciam estar opinando em seu próprio julgamento por quinhentos crimes.
Quando aqueles perniciosos cabeçudos estavam no auge da discussão, o que seria
cerca da meia-noite, enquanto alguns já nos preparávamos para dormir, vi de
novo o assassinado. Estava ameaçadoramente parado atrás deles, e me fazia
sinal. Quando me encaminhei a eles e me intrometi na conversa, imediatamente se
retirou. Aquilo foi o começo de uma série de aparições separadas, confinadas
àquela grande sala na qual nós estávamos reclusos. Sempre que um grupo dos meus
colegas jurados inclinava a cabeça confabulando, eu via a cabeça do assassinado
entre elas. Sempre que a comparação de notas ia contra si, o vulto acenava
solene e irresistivelmente a mim.
Devemos ter em mente que
até a exibição da miniatura, no quinto dia do julgamento, eu nunca vira a
aparição no tribunal. Três mudanças se verificaram agora que entrávamos na fase
de defesa. Mencionarei primeiro duas juntas. O vulto agora estava continuamente
no tribunal, e ali nunca se dirigia a mim, mas à pessoa que estivesse falando
no momento. Por exemplo: a garganta do assassinado fora cortada de lado a lado.
No discurso inicial de defesa, foi sugerido que o falecido poderia ter cortado
a garganta. Nesse mesmo momento, o vulto, apresentando a garganta no horrível
estado descrito (o que escondera até então), ficou ao lado do orador, movendo
dum lado a outro a traqueia, ora com a mão direita, ora com a esquerda,
demonstrando vigorosamente ao próprio orador a impossibilidade de tal ferimento
ter sido feito, pela vítima, com alguma das mãos. Outro exemplo: uma
testemunha, uma mulher, depondo sobre o caráter do acusado, declarou que o
prisioneiro era o mais afável dos homens. Naquele momento, o vulto parou diante
dela, fitando-a bem no rosto, e apontando ao semblante malvado do prisioneiro,
com o braço erguido e o dedo acusador.
A terceira mudança, a
ser mencionada agora, me impressionou fortemente, parecendo-me a mais notável e
interessante de todas. Não quero criar teoria. Aponto cuidadosamente o fato, e
o deixo consignado. Embora a aparição não fosse na realidade percebida por
aqueles a quem se dirigia, sua aproximação a tais pessoas era invariavelmente
denunciada por perturbação ou abalo da parte delas. Parecia-me como se o
fantasma estivesse impedido, por leis às quais eu não estava sujeito, de se
revelar inteiramente aos outros, mas ainda assim conseguisse, de maneira
invisível, indistinta e vaga, impressionar-lhes o espírito. Quando o
advogado principal da defesa aventou a hipótese de suicídio, e o vulto parou ao
lado do mencionado cavalheiro, fazendo o gesto horripilante de serrar a garganta,
é inegável que o advogado vacilou no discurso, perdeu durante alguns momentos o
fio da engenhosa alegação, enxugou a testa com o lenço, e ficou extremamente
pálido.
Quando a testemunha
sobre o caráter foi enfrentada pela aparição, seus olhos certamente seguiram a
direção do dedo acusador e pousaram hesitantes, e com grande perturbação, no
rosto do prisioneiro. Dois exemplos adicionais bastarão. No oitavo dia do
julgamento, depois da interrupção que se fazia todos os dias no começo da tarde,
para alguns minutos de descanso e refrigério, voltei à sala do tribunal com o
resto dos jurados um pouco antes dos juízes. De pé no reservado e olhando à
minha volta, pensei que o vulto não estava ali, até que, levantando, por acaso,
os olhos à galeria, o vi curvado adiante e inclinado sobre uma respeitável
matrona, como que para verificar se os juízes já voltaram a seus lugares.
Imediatamente depois, aquela senhora deu um grito, desmaiou, e foi levada a
fora. O mesmo aconteceu com o venerável, sagaz e paciente juiz que presidiu o
julgamento. Quando tudo estava terminado e se preparava, com seus papéis, para
sumariar, o assassinado, entrando na porta reservada aos juízes, avançou à
banca de sua excelência e olhou atentamente sobre o ombro dele as páginas de
anotação que estava folheando. Uma mudança se operou no rosto de sua excelência.
Parou o movimento da mão. Aquele estremecimento peculiar, que eu conhecia de
sobra, o agitou. Hesitou.
— Desculpai, alguns
momentos, cavalheiros. Sinto-me um pouco oprimido pelo ar viciado.
E só se refez depois de
beber um copo d’água.
Através de toda a
monotonia de seis daqueles dez dias, os mesmos juízes no estrado, o mesmo
assassino na barra, os mesmos advogados na banca, a mesma toada de pergunta e
resposta se erguendo ao teto do tribunal, o mesmo ranger da pena do juiz, os
mesmos porteiros entrando e saindo, as mesmas luzes acesas nas mesmas horas
quando não havia luz natural do dia, a mesma cortina de névoa do lado de fora
das janelas quando havia nevoeiro, a mesma chuva pingando e gotejando quando
estava mau tempo, as mesmas pegadas de carcereiros e prisioneiro dia após dia
no mesmo serrim, as mesmas chaves fechando e abrindo as mesmas pesadas portas,
através de toda a fatigante monotonia que me fazia ter a sensação de ser
presidente do júri durante um vasto período de tempo e de que Piccadilly
florescera concomitantemente com Babilônia, o assassinado nunca perdeu um traço
de sua clareza a meus olhos, nem foi menos distinto do que outro dos presentes.
Não devo deixar de mencionar, como fato digno de nota, que não vi aparição que
chamo de o assassinado olhar o assassino. Várias vezes pensei: por que não o
faz? Mas nunca olhou.
Nem olhou a mim, depois
da exibição da miniatura, até que os últimos minutos finais do julgamento
chegaram. Retiramo-nos para deliberar quando faltavam dez minutos para as 10h
da noite. O implicante sacristão e os dois papa-hóstias nos deram tanto
trabalho que duas vezes voltamos à sala do tribunal para pedir que fossem lidas
novamente certas passagens das notas do juiz. Nove dentre nós não tinham dúvida
com referência a essas passagens, nem a tinha, parece-me, outra pessoa no
tribunal. O triunvirato de teimosos, no entanto, não tendo outra ideia além de
opor dificuldade, discutiam por essa razão mesmo. Em conclusão, nossa opinião
prevaleceu e o júri enfim voltou à sala do tribunal, à meia-noite e dez
minutos.
Naquele momento, o
assassinado estava bem em frente ao reservado do júri, do outro lado do
tribunal. Quando tomei meu lugar, fitou-me com grande atenção. Pareceu
satisfeito, e lentamente agitou um grande véu cinzento que trazia no braço na
primeira vez, lançando-o sobre a cabeça e sobre todo o corpo. Quando pronunciei
nosso veredicto: “Culpado!”, o véu se abateu, tudo desapareceu, e o lugar
estava vazio.
Quando o assassino foi
inquirido pelo juiz, de acordo com o uso, se tinha algo a alegar antes que a
sentença de morte fosse pronunciada, murmurou indistintamente algo que foi
descrito nos principais jornais do dia seguinte como algumas palavras
gaguejantes e incoerentes, que mal se ouviram e nas quais dava a entender que
se queixava de não ter um julgamento honesto, porque o presidente do júri
estava de prevenção contra ele. A notável declaração que realmente fez foi a
seguinte:
— Meu Deus! Eu sabia que
era um homem condenado quando o presidente de meu júri entrou no recinto
reservado. Meu Deus! Eu sabia que nunca me deixaria escapar porque, antes de
ser preso, conseguiu de alguma maneira chegar junto à minha cama, numa noite, e
me passou uma corda em volta do pescoço.
[1]
David Brewster (1781 – 1868), físico escocês, foi inventor do caleidoscópio.
Aperfeiçoou o estereoscópio.
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