JULGAMENTO POR ASSASSINATO - Conto Clássico de Terror - Charles Dickens e Charles Allston Collins



JULGAMENTO POR ASSASSINATO

Charles Dickens  (1812 – 1870) e Charles Allston Collins (1828 – 1873)

Tradução de Alfredo Ferreira
 (1865 – 1942)

Sempre notei uma predominante falta de coragem, mesmo entre pessoas de inteligência superior e cultas, em externar suas próprias reações psicológicas de natureza estranha. Quase todos os homens receiam que o que possam contar em tal matéria não encontre paralelo ou correspondência na vida íntima do ouvinte e se torne suspeito ou ridículo. Um viajante digno de fé, que visse uma criatura extraordinária, no gênero da serpente-marinha, não recearia mencionar o fato. Mas se o mesmo viajante tivesse tido singular pressentimento, impulso, transmissão de pensamento, visão — assim chamada—, sonho ou outra notável impressão mental, hesitaria consideravelmente antes de o confessar. A essa reserva atribuo grande parte da obscuridade na qual tais assuntos estão envolvidos. Não comunicamos habitualmente nossas experiências dessas coisas subjetivas como comunicamos as de origem objetiva. A consequência é que o pouco que se sabe a esse respeito parece excepcional, e de fato o é, por ser lamentavelmente imperfeito.

Com o que contarei não pretendo estabelecer, contestar, ou apoiar teoria. Conheço a história do livreiro de Berlim, estudei o caso de um falecido astrônomo real conforme foi relatada por Sir David Brewster[1] e acompanhei nos pormenores um caso muito mais notável de ilusão espectral, ocorrido dentro do círculo de meus amigos. É necessário estabelecer, quanto a esse último, que a vítima, uma senhora, não era aparentada comigo, nem em grau afastado. Uma presunção errônea nesse sentido sugeriria a explicação para parte de meu caso, mas somente parte, o que seria infundado. O caso não pode ser atribuído a predisposição hereditária minha, pois não tive antes experiência semelhante, nem tive depois.

Não importa há quantos anos, poucos ou muitos, foi cometido na Inglaterra certo assassinato que despertou grande interesse. Já é demasiado o que ouvimos sobre os assassinos quando se evidenciam pela atrocidade do crime, e, se pudesse, eu gostaria de sepultar a lembrança desse bruto, ao qual me referirei, como seu corpo foi sepultado na prisão de New Gate. Propositadamente, abstenho-me de dar indício direto quanto à identificação do criminoso.

Logo que se descobriu o assassínio, nenhuma suspeita recaiu — ou antes deveria dizer, porque não posso ser preciso nos fatos, não foi insinuado que recaísse suspeita — sobre o homem que foi mais tarde levado a julgamento. Como nenhuma referência fosse feita a ele, naquela ocasião, na imprensa, é obviamente impossível que descrição sua possa ter sido publicada, no momento, pelos jornais. É essencial que esse fato seja lembrado.

Desdobrando, ao desjejum, meu jornal matinal, no qual era relatada aquela primeira descoberta, achei que o caso era profundamente interessante e o li com a maior atenção. Li duas vezes, senão três. A descoberta fora feita num dormitório e, quando pousei o jornal, tive a percepção dum lampejo, ímpeto, visão (não sei como chamar; nenhuma palavra que possa me ocorrer é suficientemente descritiva) no qual eu via passar aquele dormitório em minha sala, como um quadro absurdamente pintado num rio corrente. Embora quase instantâneo em sua passagem, era perfeitamente claro, tão claro que eu, distintamente, e com sensação de alívio, notei a ausência do cadáver na cama.

Não foi em algum lugar romântico que tive essa curiosa sensação, mas sim num apartamento em Piccadilly, muito perto da esquina da rua São Jaime. Foi inteiramente nova para mim. Eu estava em minha poltrona, naquele momento, e a sensação foi acompanhada de um estremecimento que mexeu a cadeira a fora de posição. Mas se deve notar que a cadeira deslizava com facilidade nos gonzos. Fui até uma das janelas (havia duas no aposento, que ficava no segundo andar) para refrescar os olhos no movimento de Piccadilly. Era uma clara manhã de outono e a rua estava cintilante e alegre. O vento era forte. Quando olhei para fora, uma lufada trouxe do parque uma quantidade de folhas secas, que um remoinho levantou numa coluna espiral. Quando a coluna caiu e as folhas se dispersaram vi dois homens no lado oposto da rua, caminhando de oeste a leste. Iam um atrás do outro. O homem da frente olhava várias vezes atrás sobre o ombro. O segundo o seguia, a uma distância de cerca de 30 passos, com a mão direita levantada ameaçadoramente. Primeiro a singularidade e persistência daquele gesto de ameaça num logradouro público e movimentado atraiu a minha atenção, e, depois, a circunstância ainda mais notável de que ninguém o observasse. Ambos os homens abriam caminho entre os outros pedestres com suavidade dificilmente compatível mesmo com a ação de caminhar numa rua pavimentada. E nenhuma pessoa, que eu pudesse ver, dava passagem, os tocava ou olhava. Ao passarem diante de minha janela, ambos me fitaram. Vi os dois rostos muito distintamente e sabia que poderia os reconhecer em qualquer lugar. Não que eu tivesse observado conscientemente algo particularmente notável nos dois rostos, exceto que o homem da frente tinha um aspecto singularmente abatido e que o rosto do homem que o seguia era cor de cera velha.

Sou solteiro e todo meu pessoal é constituído pelo criado e sua esposa. Meu emprego é em uma certa filial de banco e gostaria que minhas obrigações como chefe de seção fossem tão leves quanto em geral se supõe. Fizeram-me ficar na cidade naquele outono, quando eu necessitava duma mudança de ar. Eu não estava doente, mas não andava passando bem. O leitor que tire a melhor conclusão possível de eu me sentir cansado, ter uma sensação de abatimento geral por causa da vida monótona que levava, e de estar ligeiramente dispéptico. Tenho a garantia de um médico afamado de que meu estado geral de saúde naquela época não merecia maior atenção e estou afirmando isso de uma resposta escrita a meu pedido.

Conforme a circunstância do crime, gradualmente se encaminhando ao desfecho, se apossavam cada vez mais fortemente da opinião pública, eu as conservava afastadas da minha, procurando saber tão pouco quanto possível sobre elas, no meio da excitação geral. Mas sabia que fora pronunciado contra o indigitado assassino um veredicto de homicídio voluntário e que fora preso em New Gate e aguarda o julgamento. Sabia também que o julgamento fora adiado à próxima audiência da corte criminal sob a alegação de conveniência geral e de falta de tempo à preparação da defesa. É possível que também soubesse, mas acho que não, quando, ou aproximadamente quando, começariam as audiências às quais o julgamento fora adiado. 

            Minha saleta, quarto de dormir e quarto de vestir, eram todos no mesmo andar. Com o último não existe comunicação, a não ser dentro do dormitório. Na verdade, há uma porta nele, que outrora comunicava com a caixa das escadas, mas parte da armação de meu banheiro fora, e estivera durante vários anos, fixada através dela. Na mesma época, e como parte do mesmo arranjo, a porta fora pregada e recoberta encima com lona pintada.

Numa noite, já tarde, eu estava em meu quarto de dormir, dando algumas instruções a meu criado, antes de me deitar. Tinha o rosto voltado à única porta de comunicação em uso ao quarto de vestir, que estava fechada. Meu criado estava de costas a essa porta. Enquanto estava falando com ele, vi-a abrir-se, e um homem olhar por ela e me fazer um aceno misterioso e insistente. Aquele homem era o que ia em segundo lugar Piccadilly afora e que tinha a cara cor de cera velha.

A figura, tendo acenado, recuou e fechou a porta. Sem outra demora além do tempo que gastei em atravessar o dormitório, abri a porta do quarto de vestir, e olhei a dentro. Tinha na mão uma vela acesa. Não sentia esperança íntima de ver o vulto no quarto de vestir e não vi. 

Consciente de que meu criado ficara assombrado, voltei-me a ele  e disse:

— Derrick, queres acreditar que em meu juízo perfeito imaginei ver um...

 Como nesse momento lhe encostasse a mão no peito, estremeceu violentamente com um movimento brusco de recuo e disse:

— Ó, meu Deus! Sim, senhor. Um morto acenando!

Agora não acredito que John Derrick, meu fiel e dedicado criado havia mais de vinte anos, tivesse impressão de ter visto aquela figura, antes de eu lhe tocar. A mudança de fisionomia foi tão espantosa, quando lhe toquei, que plenamente acredito que por algum oculto processo absorveu a impressão de mim, naquele momento.

Mandei Jonh Derrick trazer aguardente, dei-lhe um bom gole e gostei de tomar um. Não lhe disse palavra do que precedera o fenômeno daquela noite. Refletindo no caso, tinha certeza de que nunca vira aquela cara antes, exceto naquela ocasião em Piccadilly. Comparando a expressão quando acenara à porta com a expressão de quando me fitara ao passar na rua, cheguei à conclusão de que na primeira ocasião quisera-se imprimir em minha memória e, na segunda, se certificara de que seria imediatamente reconhecido.

Não me senti muito tranquilo naquela noite, embora sentisse a certeza, difícil de explicar, de que a figura não voltaria. Ao clarear o dia, caí num sono profundo, do qual fui despertado por Jonh Derrick chegando junto à minha cama com um papel na mão.

Aquele papel, ao que parecia, fora causa duma altercação, à porta, entre seu portador e meu criado. Era uma intimação para eu fazer parte do júri na próxima audiência da corte criminal central em Old Bailey. Eu nunca fora antes intimado para tal júri, como Jonh Derrick bem sabia. Acreditava, não estou certo se com razão, que essa classe de jurado era geralmente escolhida entre pessoas de posição inferior à minha e, a princípio, se recusara a receber a intimação. O homem que a entregava tomara o caso de maneira muito fria. Dissera que meu comparecimento ou não comparecimento não lhe interessava. Ali estava a intimação. E eu devia fazer uso dela por minha conta e risco, e não ele.

Durante um dia ou dois, fiquei indeciso sobre se deveria atender àquele convite ou não tomar conhecimento. Não tive consciência de inclinação misteriosa, influência ou atração, por uma ou outra decisão. Disso tenho certeza, como tenho de toda outra alegação que aqui faço. Finalmente decidi, como uma quebra na monotonia de minha vida, que iria.

A manhã marcada foi a de um dia invernoso de novembro. Havia um denso nevoeiro castanho em Piccadilly, que se tornou positivamente preto e num grau muito opressivo a leste de Barra do Templo. Encontrei os corredores e escadarias do tribunal profusamente iluminados a gás e a própria sala de audiência igualmente iluminada. Penso que, até ser conduzido pelos funcionários para dentro do velho tribunal, e ver como estava repleto, não sabia que o assassino seria julgado naquele dia. Penso que até ser assim introduzido no velho tribunal, com ingente dificuldade, não sabia a qual das duas instâncias do tribunal minha intimação me levaria. Mas isso não deve ser tomado como uma asserção positiva, porque em sã consciência não estou certo sobre algum desses dois pontos.

Tomei assento no lugar reservado aos jurados aguardarem, e olhei em volta do tribunal, tão bem quanto pude, através da nuvem de nevoeiro e respiração que o enchia pesadamente. Notei a névoa negra flutuando como uma cortina escura no lado de fora das grandes janelas, e notei o som abafado de rodas na palha ou cortiça acamada na rua. Também o sussurro do povo reunido lá fora, que um apito agudo, ou um som ou grito mais alto, ocasionalmente varava. Pouco depois, os dois juízes entraram e tomaram lugar. O zunzum na sala se acalmou de maneira impressionante. Foi dada ordem para conduzir o homicida à barra. Quando apareceu, reconheci nele o primeiro dos dois homens que desciam Piccadilly.

Se meu nome fosse chamado naquele momento, duvido que poderia responder de maneira audível. Mas era o sexto ou oitavo do quadro, e, quando chamaram, eu já estava em condição de dizer “Presente!”. Agora observai. Quando entrei no reservado, o prisioneiro, que estivera olhando atentamente, mas sem sinal de interesse, ficou violentamente agitado e acenou ao advogado. O desejo do prisioneiro de me vetar era tão manifesto que provocou uma pausa, durante a qual o advogado, com a mão apoiada na barra, cochichou com o cliente e abanou a cabeça. Soube depois, por aquele cavalheiro, que as primeiras palavras assustadas do prisioneiro a ele foram:

— Na dúvida, recusa aquele homem!

Mas, como não apresentasse razão substancial, e admitisse que nunca ouvira meu nome até que fora proclamado ali e eu aparecera, não foi atendido.

Tanto pelo motivo já explicado de evitar reviver a memória daquele perverso assassino, como também porque uma minuta detalhada daquele longo julgamento não é indispensável à minha narrativa, eu me limitarei estritamente aos incidentes verificados naqueles dez dias e noites, durante os quais os jurados fomos conservados juntos, que mais diretamente se relacionem com minha curiosa aventura. É nesta, e não no assassino, que desejo interessar meu leitor. É a ela, e não a uma página do calendário de New Gate, que peço atenção.

Fui escolhido para presidente do júri. No segundo dia do julgamento, depois de tomados depoimentos de testemunha durante duas horas (ouvi os campanários da igreja badalarem), acontecendo-me passar os olhos nos jurados meus colegas, achei uma dificuldade inexplicável em conta-los. Contei-os várias vezes, encontrando sempre a mesma dificuldade. Resumindo, sempre achava que havia um a mais.

Toquei no braço do jurado, cujo lugar era ao lado do meu, e sussurrei:

— Faz-me a fineza de nos contar.

Pareceu surpreso com o pedido, mas virou a cabeça e contou. Disse subitamente:

— Ora essa! somos treze. Mas não! Não é possível! Não! Somos doze.
De acordo com minhas contagens naquele dia, estávamos sempre certos, separadamente, mas em conjunto havia sempre um a mais. Não havia aparência, nenhum vulto, para causar isso, mas eu tinha agora uma vaga noção íntima do vulto que certamente surgiria.

Os jurados estavam alojados na taberna Londres. Dormíamos todos numa grande sala, em camas separadas, e estávamos constantemente em função e sob a custódia de um policial designado para nos conservar em lugar seguro. Não vejo razão para encobrir o nome verdadeiro desse funcionário. Era inteligente, muito educado, prestimoso e, gostei de saber, muito respeitado na cidade. Tinha maneiras agradáveis, bons olhos, invejáveis suíças pretas e uma bela voz sonora. Seu nome era Harker.

Quando nos deitamos em nossas doze camas, na noite, a cama de senhor Harker foi colocada atravessada na porta. Na noite do segundo dia, não estando disposto a me deitar, e vendo senhor Harker sentado em sua cama, fui me sentar a seu lado e ofereci uma pitada de rapé. Quando a mão de senhor Harker tocou a minha, ao tirar o rapé da caixa, um estremecimento peculiar lhe percorreu o corpo, e disse:

— Quem é aquele?

Seguindo o olhar de senhor Harker, e espiando ao fundo da sala, vi de novo a figura que esperava: o segundo dos dois homens que vira em Piccadilly. Levantei-me e avancei alguns passos, parei e olhei senhor Harker. Estava absolutamente indiferente, riu e disse em tom de gracejo:

— Julguei, um momento, que tínhamos um décimo terceiro jurado, sem cama. Mas agora vejo que era o luar.

Sem fazer confidência a senhor Harker, mas o convidando a caminhar um pouco comigo até a extremidade da sala, observei o que a figura fazia. Ficava parada alguns momentos ao lado da cama de cada um de meus colegas jurados, junto ao travesseiro. Ia sempre ao lado direito da cama e sempre prosseguia fazendo volta nos pés da cama seguinte. Parecia, pelo movimento da cabeça, olhar apenas pensativamente a cada vulto deitado. Não me prestou atenção, nem à minha cama, que era a mais próxima da de senhor Harker. Pareceu sair onde entrava o luar, através de uma janela alta, como que em um lance aéreo de escada.

Na manhã seguinte, ao desjejum, verificou-se que todos os presentes sonharam com a vítima durante a noite, exceto eu e senhor Harker.

Eu estava, agora, convencido de que o segundo homem que descia Piccadilly era o assassinado. Era como se essa ideia me houvesse sido imposta por seu próprio testemunho imediato. Mas até mesmo isso aconteceu de uma maneira para a qual não estava em preparado.

No quinto dia do julgamento, quando o caso se encaminhava ao fim do libelo, foi exibida como prova uma miniatura pertencente ao assassinado, que estava desaparecida de seu quarto na ocasião da descoberta do caso, e fora depois encontrada num esconderijo onde o acusado fora visto cavando. Sendo identificada pela testemunha em inquirição, foi entregue à mesa, e dali enviada pelo júri a exame. Quando um funcionário, vestindo uma beca preta, se encaminhava a mim com ela, o vulto do segundo homem que eu vira descendo Piccadilly avançou impetuosamente do meio da multidão, tomou a miniatura da mão do funcionário e a deu a mim com as próprias mãos, dizendo ao mesmo tempo em voz baixa e tom cavo, antes que eu visse a miniatura que estava num broche:

— Eu era mais moço nesse tempo e não tinha o rosto macilento pela perda de sangue.

Também se interpôs entre mim e o jurado a quem eu devia entregar a miniatura, e entre ele e o seguinte. E assim a passou de mão a mão entre os doze jurados, até que voltou à minha posse. Nenhum dos outros o percebeu.

Às refeições, e em geral quando ficávamos fechados juntos sob a custódia de senhor Harker, desde o princípio discutíamos, naturalmente, um bocado o andamento diário do processo. No quinto dia, estando encerrado o libelo, e tendo aquele lado do caso inteiramente desdobrado perante nós, nossa discussão foi mais animada e séria. Entre nós havia um sacristão, o maior idiota que certamente já conheci, que refutava a prova mais concreta com as mais absurdas objeções, e que era apoiado por dois papa-hóstias sem firmeza. Os três procediam de maneira tão escrupulosa que pareciam estar opinando em seu próprio julgamento por quinhentos crimes. Quando aqueles perniciosos cabeçudos estavam no auge da discussão, o que seria cerca da meia-noite, enquanto alguns já nos preparávamos para dormir, vi de novo o assassinado. Estava ameaçadoramente parado atrás deles, e me fazia sinal. Quando me encaminhei a eles e me intrometi na conversa, imediatamente se retirou. Aquilo foi o começo de uma série de aparições separadas, confinadas àquela grande sala na qual nós estávamos reclusos. Sempre que um grupo dos meus colegas jurados inclinava a cabeça confabulando, eu via a cabeça do assassinado entre elas. Sempre que a comparação de notas ia contra si, o vulto acenava solene e irresistivelmente a mim.

Devemos ter em mente que até a exibição da miniatura, no quinto dia do julgamento, eu nunca vira a aparição no tribunal. Três mudanças se verificaram agora que entrávamos na fase de defesa. Mencionarei primeiro duas juntas. O vulto agora estava continuamente no tribunal, e ali nunca se dirigia a mim, mas à pessoa que estivesse falando no momento. Por exemplo: a garganta do assassinado fora cortada de lado a lado. No discurso inicial de defesa, foi sugerido que o falecido poderia ter cortado a garganta. Nesse mesmo momento, o vulto, apresentando a garganta no horrível estado descrito (o que escondera até então), ficou ao lado do orador, movendo dum lado a outro a traqueia, ora com a mão direita, ora com a esquerda, demonstrando vigorosamente ao próprio orador a impossibilidade de tal ferimento ter sido feito, pela vítima, com alguma das mãos. Outro exemplo: uma testemunha, uma mulher, depondo sobre o caráter do acusado, declarou que o prisioneiro era o mais afável dos homens. Naquele momento, o vulto parou diante dela, fitando-a bem no rosto, e apontando ao semblante malvado do prisioneiro, com o braço erguido e o dedo acusador.

A terceira mudança, a ser mencionada agora, me impressionou fortemente, parecendo-me a mais notável e interessante de todas. Não quero criar teoria. Aponto cuidadosamente o fato, e o deixo consignado. Embora a aparição não fosse na realidade percebida por aqueles a quem se dirigia, sua aproximação a tais pessoas era invariavelmente denunciada por perturbação ou abalo da parte delas. Parecia-me como se o fantasma estivesse impedido, por leis às quais eu não estava sujeito, de se revelar inteiramente aos outros, mas ainda assim conseguisse, de maneira invisível, indistinta e vaga,  impressionar-lhes o espírito. Quando o advogado principal da defesa aventou a hipótese de suicídio, e o vulto parou ao lado do mencionado cavalheiro, fazendo o gesto horripilante de serrar a garganta, é inegável que o advogado vacilou no discurso, perdeu durante alguns momentos o fio da engenhosa alegação, enxugou a testa com o lenço, e ficou extremamente pálido.

Quando a testemunha sobre o caráter foi enfrentada pela aparição, seus olhos certamente seguiram a direção do dedo acusador e pousaram hesitantes, e com grande perturbação, no rosto do prisioneiro. Dois exemplos adicionais bastarão. No oitavo dia do julgamento, depois da interrupção que se fazia todos os dias no começo da tarde, para alguns minutos de descanso e refrigério, voltei à sala do tribunal com o resto dos jurados um pouco antes dos juízes. De pé no reservado e olhando à minha volta, pensei que o vulto não estava ali, até que, levantando, por acaso, os olhos à galeria, o vi curvado adiante e inclinado sobre uma respeitável matrona, como que para verificar se os juízes já voltaram a seus lugares. Imediatamente depois, aquela senhora deu um grito, desmaiou, e foi levada a fora. O mesmo aconteceu com o venerável, sagaz e paciente juiz que presidiu o julgamento. Quando tudo estava terminado e se preparava, com seus papéis, para sumariar, o assassinado, entrando na porta reservada aos juízes, avançou à banca de sua excelência e olhou atentamente sobre o ombro dele as páginas de anotação que estava folheando. Uma mudança se operou no rosto de sua excelência. Parou o movimento da mão. Aquele estremecimento peculiar, que eu conhecia de sobra, o agitou. Hesitou.

— Desculpai, alguns momentos, cavalheiros. Sinto-me um pouco oprimido pelo ar viciado.

E só se refez depois de beber um copo d’água.

Através de toda a monotonia de seis daqueles dez dias, os mesmos juízes no estrado, o mesmo assassino na barra, os mesmos advogados na banca, a mesma toada de pergunta e resposta se erguendo ao teto do tribunal, o mesmo ranger da pena do juiz, os mesmos porteiros entrando e saindo, as mesmas luzes acesas nas mesmas horas quando não havia luz natural do dia, a mesma cortina de névoa do lado de fora das janelas quando havia nevoeiro, a mesma chuva pingando e gotejando quando estava mau tempo, as mesmas pegadas de carcereiros e prisioneiro dia após dia no mesmo serrim, as mesmas chaves fechando e abrindo as mesmas pesadas portas, através de toda a fatigante monotonia que me fazia ter a sensação de ser presidente do júri durante um vasto período de tempo e de que Piccadilly florescera concomitantemente com Babilônia, o assassinado nunca perdeu um traço de sua clareza a meus olhos, nem foi menos distinto do que outro dos presentes. Não devo deixar de mencionar, como fato digno de nota, que não vi aparição que chamo de o assassinado olhar o assassino. Várias vezes pensei: por que não o faz? Mas nunca olhou.

Nem olhou a mim, depois da exibição da miniatura, até que os últimos minutos finais do julgamento chegaram. Retiramo-nos para deliberar quando faltavam dez minutos para as 10h da noite. O implicante sacristão e os dois papa-hóstias nos deram tanto trabalho que duas vezes voltamos à sala do tribunal para pedir que fossem lidas novamente certas passagens das notas do juiz. Nove dentre nós não tinham dúvida com referência a essas passagens, nem a tinha, parece-me, outra pessoa no tribunal. O triunvirato de teimosos, no entanto, não tendo outra ideia além de opor dificuldade, discutiam por essa razão mesmo. Em conclusão, nossa opinião prevaleceu e o júri enfim voltou à sala do tribunal, à meia-noite e dez minutos.

Naquele momento, o assassinado estava bem em frente ao reservado do júri, do outro lado do tribunal. Quando tomei meu lugar, fitou-me com grande atenção. Pareceu satisfeito, e lentamente agitou um grande véu cinzento que trazia no braço na primeira vez, lançando-o sobre a cabeça e sobre todo o corpo. Quando pronunciei nosso veredicto: “Culpado!”, o véu se abateu, tudo desapareceu, e o lugar estava vazio.

Quando o assassino foi inquirido pelo juiz, de acordo com o uso, se tinha algo a alegar antes que a sentença de morte fosse pronunciada, murmurou indistintamente algo que foi descrito nos principais jornais do dia seguinte como algumas palavras gaguejantes e incoerentes, que mal se ouviram e nas quais dava a entender que se queixava de não ter um julgamento honesto, porque o presidente do júri estava de prevenção contra ele. A notável declaração que realmente fez foi a seguinte:

— Meu Deus! Eu sabia que era um homem condenado quando o presidente de meu júri entrou no recinto reservado. Meu Deus! Eu sabia que nunca me deixaria escapar porque, antes de ser preso, conseguiu de alguma maneira chegar junto à minha cama, numa noite, e me passou uma corda em volta do pescoço.




[1] David Brewster (1781 – 1868), físico escocês, foi inventor do caleidoscópio. Aperfeiçoou o estereoscópio.  

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