O GOLPE DE MISERICÓRDIA - Conto Clássico de Horror - Ambrose Bierce
O
GOLPE DE MISERICÓRDIA
Ambrose
Bierce
(1842
– 1913?)
A
luta havia sido dura e incessante. Todos os sentidos testemunhavam isto. Até o
cheiro da batalha flutuava no ar. Mas, agora, já havia terminado. Só restava
tratar dos feridos e enterrar os mortos... “Limpar um pouco” — como dizia o
humorista do pelotão de sepultadores. E tinham muito o que limpar! Até onde a
vista alcançava, dentro do bosque, viam-se restos de homens e de cavalos, entre
os quais se moviam alguns padioleiros, recolhendo e transportando os poucos que
davam sinais de vida. A maior parte dos feridos havia morrido de hemorragia,
uma vez que até o direito de socorrê-los estava em disputa. Os feridos tinham
que esperar! Era o que determinavam os chefes militares, para os quais a melhor
maneira de cuidar deles era ganhar a batalha. E deve-se admitir que a vitória
representa grande vantagem para um homem que necessita de atenções médicas.
Porém, muitos não vivem para tirar partido dela!
Os
mortos eram dispostos em fileiras de quinze ou vinte, enquanto se cavavam as
sepulturas que haviam de recebê-los. Alguns, que estavam demasiadamente
afastados, eram enterrados onde haviam tombado. Ninguém fazia esforços para
identificá-los, embora, na maioria dos casos, os pelotões de enterradores
anotassem os nomes dos mortos vitoriosos. Mas as baixas inimigas eram contadas
por muitos. E, não raro, contavam várias vezes. Daí por que o total que
aparecia no comunicado do comandante vencedor representava mais uma esperança
do que propriamente um resultado.
À
pequena distância do local onde um dos pelotões de enterradores havia
estabelecidos sua “trincheira de morte”, um oficial dos Federais permanecia
apoiado contra uma árvore. Desde os pés até o rosto, sua atitude era de fadiga
absoluta, total. Mas a cabeça se movia irrequieta, de um para outro lado. Sua
mente, ao que parecia, não descansava. Talvez não soubesse que direção tomar. O
mais provável era que não permanecesse ali por muito tempo, porque os raios
oblíquos do sol poente já manchavam de vermelho os claros do bosque, e os
soldados exaustos abandonavam suas tarefas. Era difícil que pernoitasse entre
os mortos. Depois da batalha, nove de cada dez homens perguntavam uns aos outros
o destino de algum agrupamento do exército... como se alguém pudesse saber. Sem
dúvida alguma, esse oficial estava perdido. Após descansar um momento,
caminharia atrás dos pelotões de sepultadores.
Quando
todos se haviam ido, começou a caminhar através do bosque, na direção do sol
poente, cuja luz lhe manchava o rosto com reflexos sanguíneos. O ar de
segurança com que agora avançava indicava que se encontrava em terreno
familiar: conseguira orientar-se. Andava sem olhar os mortos que jaziam à
direita e à esquerda. Tampouco lhe detinham os queixumes de algum infeliz,
esquecido pelos grupos de reboque, e que passaria uma terrível noite sob as
estrelas, sem outra companha que não a sede e o desespero. O oficial nada podia
fazer: não era médico e nem tinha água.
Na
extremidade de uma suave depressão no terreno, jazia um pequeno grupo de
cadáveres. O oficial os viu. Abandonou a estrada em que seguia e dirigiu-se
para ele. Ao se aproximar, deteve-se diante de um dos cadáveres, que se achava
a curta distância dos demais, perto de um capão de mato. Examinou-o
atentamente: parecia mover-se. Agachou-se e colocou-lhe a mão no rosto. O corpo
gritou.
O
oficial era o capitão Downing Madwell, de um regimento de infantaria de
Massachusets, soldado inteligente e audaz, além de homem honrado.
No
regimento havia dois irmãos de sobrenome Halcrow. Caffal e Creed Halcrow.
Caffal era sargento na companhia do capitão Madwell. E esses dois homens, o
sargento e o capitão, eram amigos íntimos. Dentro do que permitiam a diferença
de graduação, a disparidade das obrigações e os requisitos da disciplina
militar, andavam sempre juntos. E um hábito do coração não se desenraíza
facilmente. Caffal Halcrow nada tinha de marcial em seu caráter e em seus
gestos, mas a ideia de separar-se do amigo desagradara-lhe profundamente. E,
por isso, se alistou na companhia onde Madwell era então tenente. Ambos haviam
subido dois postos, mas entre o suboficial mais alto e o oficial subalterno, o
abismo social era profundo. E aquela velha relação, mantida com imensa
dificuldade, já não podia ser idêntica.
Creede
Halcrow, irmão de Caffal, era o major do regimento. Um homem cínico, saturnino.
Entre ele o capitão Madwell reinava uma antipatia natural, que as
circunstâncias haviam alimentado e fortalecido, até se converter numa ativa
animosidade. Não fosse a influência mediadora de Caffal, não havia dúvida de
que cada um desses compatriotas teria tratado de privar a sua pátria do serviço
do outro.
Ao
começar a batalha, nessa manhã, o regimento cumpria uma missão avançada, a uma
milha do corpo principal do exército. Foi atacado e quase cercado num bosque,
mas manteve pé firme no terreno. Ao diminuir momentaneamente a luta, o major
Halcrow se dirigiu ao capitão Madwell. Trocaram saudação formal e o major
falou:
—
Capitão, o coronel lhe ordena que avance com a sua companhia até o começo dessa
quebrada, a fim de manter a posição, até nova ordem. Não preciso salientar o
caráter perigoso da manobra e, se desejar, pode passar o comando ao seu
primeiro-tenente. Entretanto, o coronel não me ordenou autorizar essa substituição.
Trata-se, simplesmente, de uma sugestão pessoal e extraoficial.
A
essas palavras insultuosas, replicou friamente o capitão:
—Senhor,
convido-o a participar da manobra. Um oficial montado seria um alvo perfeito, e
sempre sustentei a opinião de que o senhor valeria mais se estivesse morto!
Já
em 1862 se cultivava nos círculos militares a arte da réplica.
E,
meia hora depois, a companhia do capitão Madwell foi desalojada da sua posição
com perdas equivalentes a um terço de seu efetivo. Entre os caídos estava o
sargento Halcrow. Pouco depois, o regimento teve que retornar às linhas
principais e, ao terminar a luta, encontrava-se a várias milhas de distância. O
capitão estava agora em pé, junto do amigo e subordinado.
O
sargento Halcrow estava gravemente ferido. O uniforme aberto deixava ver o
abdome. Alguns dos botões da túnica haviam sido arrancados e estavam espalhados
no solo, com outros fragmentos da roupa. O cinturão de couro estava partido e
parecia ter sido arrancado violentamente. Não havia muito sangue derramado. A
única ferida visível era um grande e irregular rasgão no ventre, que estava
sujo de terra e de folhas secas. Em toda a sua vida militar, o capitão Madwell
nunca havia visto ferimento semelhante. Não podia imaginar como fora produzido,
nem explicar as circunstâncias que o determinaram: o uniforme estranhamente
rasgado, o cinturão partido, as manchas na pele. Aproximou-se a fim de fazer um
exame mais atento. Quando se pôs de pé, percorreu com a vista várias direções,
como se estivesse procurando um inimigo. A cinquenta metros de distância, no
cimo de uma ladeira coberta de arbusto, viu vários objetos escuros, que se
moviam entre os homens caídos. Era uma manada de porcos! Um estava de frente
para ele e apoiava as patas sobre um corpo humano. A cabeça, abaixada, não era
visível. A eriçada saliência do lombo se recortava no negro contra o vermelho
do sol poente. O capitão Madwell desviou a vista e tronou a dirigi-la para
aquele que havia sido seu amigo.
O
homem que havia padecido aquelas monstruosas mutilações continuava vivo. Ainda
movia as pernas. A cada suspiro, sucedia um gemido. Olhava tristemente o rosto
do amigo. Em sua terrível agonia, havia remexido o chão em que estava
estendido. Suas mãos crispadas se achavam cheias de terra, folhas e raízes. Não
conseguia articular uma palavra. Era impossível saber se sentia algo que não
fosse dor física. A expressão de seu rosto era um rogo. Seus olhos pareciam
pedir algo. O que seria?
Impossível
enganar-se com o significado daquele olhar. O capitão o havia visto com
bastante frequência. Conscientemente ou não, esse retorcido fragmento de
humanidade, essa imagem do sofrimento, essa mistura de homem e animal, esse
humilde Prometeu em seu heroísmo, suplicava a todos e a tudo o benefício de não
mais existir. À terra e ao céu, às árvores, ao homem, a tudo quanto adquirisse
forma nos sentidos ou na consciência, esse sofredor dirigia sua súplica
silenciosa.
O
que significava? O que concedemos à pior das criaturas desprovidas de razão, o
que só negamos aos infortunados da nossa espécie: a ansiada libertação, o rito
da paixão máxima, o golpe de misericórdia.
O
capitão Madwell pronunciou o nome de seu amigo. Repetiu, várias vezes, sem
resultado, até que se sentiu afogado pela emoção. Suas lágrimas rolaram sobre
aquelas faces esquálidas. Agora só via um vulto indistinto e móvel, mas os
gemidos eram mais claros do que nunca, entrecortados por gritos agudos. Deu
meia-volta e afastou-se. Os porcos, ao vê-lo, ergueram os focinhos rubros e
afastaram-se. Um cavalo, com a pata terrivelmente estilhaçada, levantou a
cabeça do solo e soltou um doloroso relincho. Madwell avançou mais um passo,
sacou o revólver e deu-lhe um tiro entre os olhos, observando, atento, a agonia
do pobre animal que, ao contrário do que esperava, foi violenta. Mas,
finalmente, permaneceu imóvel. Os tensos músculos de seus lábios, que haviam
descoberto os dentes num horrendo esgar, relaxaram. O perfil nítido e fino da
cabeça adquiriu um aspecto profundo de paz e repouso.
A
oeste, por trás dos bosques, extinguiam-se os últimos esplendores do
entardecer. A luz que acariciava os troncos das árvores se havia esmaecido. No
topo das copas, aninhavam-se as sombras como enormes pássaros escuros. A noite
chegava e entre o capitão Madwell e o acampamento estendia-se um bosque
espectral. Entretanto, ali permanecia, junto do animal morto, parecendo
inteiramente desvinculado das coisas que o rodeavam: os olhos cravados no solo
e a mão direita empunhando a pistola. De repente, levantou o rosto, olhou o
amigo moribundo e voltou para o seu lado. Achegou-se o mais próximo possível,
armou a pistola, apoiou o cano na fronte do sargento, desviou a vista e apertou
o gatilho. Não houve detonação. A última bala havia sido gasta com o cavalo.
O
moribundo gemeu e seus lábios se moveram convulsivamente. A espuma que dele
brotava tinha uma tonalidade de sangue. O capitão Medwell ficou de pé e
desembainhou a espada. Passou os dedos da mão esquerda ao longo da lâmina.
Estendeu-a para frente, como para pôr à prova os próprios nervos. A lâmina não
tremia. O amortecido fulgor refletido pela luz do céu permanecia imóvel e
firme. Inclinou-se, abriu com a mão esquerda a camisa do moribundo. Colocou a
ponta da espada sobre o coração. Desta vez, não desviou a vista. Segurando o
cabo com ambas as mãos, empurrou com todas as suas forças. A lâmina penetrou no
corpo do homem. Atravessou a carne e cravou-se na terra. O capitão Madwell
esteve a ponto de cair sobre o amigo. O moribundo encolheu as pernas e, ao
mesmo tempo, levou a mão ao peito, segurando o aço com tanta força que os nós
dos dedos embranqueceram. Com este violento e inútil esforço para livrar-se da
espada, ampliou a ferida, e dela escapou um fio de sangue, que se infiltrou
sinuosamente no uniforme esfacelado.
Nesse
momento, três homens saíram silenciosamente do capão de arbustos que haviam
ocultado o seu avanço. Dois deles eram enfermeiros e traziam uma maca.
O
terceiro era o major Creed Halcrow.
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: Eu Sei Tudo,
edição de março de 1957.
Ilustração: Winslow
Homer (1836 – 1910).
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