UM CERTO PAPAI NOEL (ou O INVERSO DO NATAL) - Conto de Terror Natalino - Luiz Poleto



UM CERTO PAPAI NOEL
(ou O INVERSO DO NATAL)
 Luiz Poleto

O gosto na boca tornou-se amargo quando o cigarro começou a queimar no filtro. Eu mal percebi, pois ainda estava hipnotizado pela parede vermelha à minha frente. Vermelho: a cor que algumas pessoas associam com paixão; não vejo como essa cor pode ser paixão, sinceramente. Vermelho lembra Papai Noel e aquela sua roupa ridícula. Vermelho lembra as bolas da minha velha árvore de Natal. O rótulo da Coca-Cola sobre a mesa. Sangue, vermelho lembra sangue. Muito sangue.


Havia uma lenda na minha cidade natal que dizia que Papai Noel era uma figura inventada para substituir a figura do famoso bicho-papão. Pelo menos na minha cidade, a lenda dizia que o bicho-papão não saia de dentro do armário; ao invés disso, aparecia na noite de Natal para levar as crianças em seu imenso saco vermelho. Depois da criação do mito do Papai Noel, a lenda sofreu algumas variações através do tempo, e a mais recente dizia que Papai Noel levava as crianças para servirem de alimento às renas – e era daí que elas tiravam a sua capacidade de voar: alimentando-se das almas puras e inocentes.


Eu nunca acreditei em lendas e fiz questão de que meus dois filhos – Ariel e Samuel – nunca tomassem conhecimento da história, mas era óbvio que eles tomaram conhecimento da lenda, afinal, todos na cidade a conheciam. Quando me perguntavam, eu desconversava. E ponto final. Hoje, entretanto, me pergunto se eu deveria ter dado mais atenção à esta famigerada lenda. Hoje, após todos os acontecimentos que tornaram minha vida insuportável, eu tenho certeza de que deveria ter acreditado em lendas.


Era uma noite de véspera de Natal e o calor chegava aos 32 graus. Havíamos feito a ceia e nos divertido um bocado. Depois que minha esposa Anne colocou as crianças para dormir, seguimos a tradição de colocar os presentes ao pé da árvore de Natal para que as crianças os encontrassem no dia seguinte. Era o décimo Natal de Ariel e o oitavo de Samuel, e todos os natais anteriores seguiram rigorosamente esta tradição. Pudera eu voltar no tempo e fazer diferente daquela vez. Sem presentes, sem árvore, sem Papai Noel.


Anne sempre insistia para que dormíssemos perto das crianças, com medo de que elas levantassem de madrugada e fossem pegas pelo bom velhinho. Eu, é claro, repudiava a ideia e sempre impus a minha vontade de não deixá-la fazer isso. Era por volta de meia noite e trinta quando Ariel se levantou da cama (até hoje não sabemos se para pegar os presentes ou para ir ao banheiro) e passou pela sala; eu e Anne dormíamos um sono pesado e delicioso nesta hora e não ouvimos quando ela se levantou. Não sabemos o que houve. Só me lembro de acordar com o grito desesperado de minha filha e o barulho da porta da rua sendo aberta à força. Acordei assustado e corri para a sala para encontrar a porta da rua destruída e minha filha desaparecida. Não sei se foi raiva ou desespero que tomou conta de mim naquele momento, mas sei que corri mais ou menos doze quilômetros em busca de Ariel. Mesmo a polícia, durante seis meses, não a encontrou. Anne atribuiu seu sumiço ao Papai Noel; eu acredito (acreditava, é melhor frisar isso agora) que ela tenha tido uma crise de sonambulismo e desapareceu noite afora.


Os meses após o sumiço de Ariel foram de tristeza. Mesmo aceitando que ela já estivesse morta, era difícil não ter o seu corpo para enterrar. Ainda assim, tentamos levar a vida da forma que nos era possível. Passamos a dedicar total atenção a Samuel, que foi o único filho que nos restou e tornou-se mais especial e amado do que já era antes. Anne passou por um momento bem difícil e quase precisou ser internada, mas felizmente, superamos tudo juntos (embora discordássemos quanto à razão do sumiço de nossa filha).


Dois anos se passaram até que conseguimos superar de vez o trauma ocorrido, com isso voltamos a comemorar o Natal (coisa que não fizemos no ano anterior – a dor era muita naquele momento). Tudo preparado como de costume: ceia, presentes, árvore de Natal e até uma foto do Papai Noel ajudou a decorar a sala. Eu e Anne quase chegamos ao divórcio quando eu quis seguir a tradição de deixar os presentes embaixo da árvore de Natal para que Samuel os encontrasse no dia seguinte. Após muita discussão, consegui convencê-la a aceitar, propondo que eu dormisse um pouco mais tarde e ficasse atento para o caso de Samuel acordar e ir para a sala.


A vida é cruel algumas vezes, e algumas pessoas parecem escolhidas a dedo por Deus ou quem quer que governe o Universo. Samuel levantou-se no mesmo horário em que Ariel havia levantado dois anos antes, mas desta vez eu estava um pouco mais atento, e ouvi quando ele abriu a porta do quarto e dirigiu-se à sala. Levantei da cama sem acordar Anne, e bem devagar, segui Samuel. Eu estava sonolento, mas creio que as palavras que cuspo agora neste papel estão bem fiéis ao que vi – ou penso ter visto. Ao chegar na sala, Samuel estava mexendo nos presentes. Doce, inocente, ingênuo. Creio que era exatamente o que Papai Noel procura, porque em um piscar de olhos, uma leve fumaça espalhou-se ao redor da árvore de Natal e vi – juro que vi – Papai Noel com sua ridícula roupa vermelha e um imenso saco da mesma cor, bastante cheio (de crianças, penso agora). Ele parou na frente de Samuel, que parecia tão incrédulo quanto eu, fez-lhe um carinho nos cabelos e abruptamente agarrou sua cabeça e o sacudiu como se fosse um bicho de pelúcia. Naquele momento eu me desesperei e tentei correr em direção àquela cena grotesca e salvar Samuel, mas minhas pernas pareciam pesar como chumbo.


Apesar do esforço tremendo que eu fazia, elas pareciam coladas ao chão, e tudo o que eu podia fazer era ver a criatura jogando Samuel de um lado para o outro, fazendo o sangue sujar o chão, as paredes, o sofá e até o teto. Eu chorava compulsivamente ao mesmo tempo em que tentava sair do lugar. Quando pensei que a cena de horror tivesse terminado, o dito cujo abriu uma boca que mais parecia um jacaré – mas com dentes de tubarão – e sem remorso, sem piedade, sem qualquer escrúpulo, engoliu a cabeça de Samuel. Engoliu-a inteira, da mesma forma que engolimos uma azeitona ou um ovo de codorna. Nesse momento, eu acho que desmaiei, pois só me recordo de acordar quando o dia amanhecia e Anne gritava desesperada por Samuel. Mais uma vez, um filho nosso era levado pela lenda que teimei em não acreditar a minha vida toda.


Desnecessário dizer que meu casamento com Anne não resistiu à perda de mais um filho. Tentamos terapia, assistência religiosa e qualquer coisa que prometesse ajudar a superar os problemas, mas alguma coisa dentro de nós havia mudado. Eu passei a beber compulsivamente; primeiro, durante as noites, mas quando vi, eu passava o dia inteiro com uma garrafa de pinga barata cambaleando pelos cantos. A cidade, que apesar de acreditar na lenda e passá-la adiante de geração em geração, tentava me culpar pela morte de meus filhos, entretanto, a polícia nunca encontrou provas que pudessem me incriminar. Pensando agora, a cadeira elétrica seria uma ótima opção para dar desfecho a esta vida vazia. Mas isso não vai acontecer.


Não tenho certeza se dez ou vinte anos se passaram desde os ocorridos, a bebida provavelmente me impede de lembrar até o meu próprio nome. Hoje, véspera de Natal, voltei à minha velha casa para uma última ceia. Anne não está mais aqui – aliás, ela já não está mais entre nós. Enquanto eu me afundei na bebida, ouvi que Anne pegou uma arma e estourou os miolos no mesmo local em que Samuel fora levado. Eu não tenho uma arma em minhas mãos. Tenho apenas uma garrafa de pinga vagabunda, um galão cheio de gasolina e fósforo, muitos fósforos. Sei que ele só aparece para pegar crianças, mas por algum motivo, a data de hoje me parece especial e tenho a impressão de que ele vai aparecer (esqueci de mencionar apesar de encontrarem uma arma junto ao corpo de Anne, ela nunca foi usada).


Hoje é véspera de Natal, e aguardo ansiosamente a chegada do bom velhinho.


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