A COVA DA MOURA - Conto Clássico Fantástico - Gustavo Adolfo Becquer
A COVA DA MOURA
Gustavo
Adolfo Becquer
(1836
– 1870)
Tradução
de Paulo Soriano
I
Defronte
ao estabelecimento de banhos de Fitero[1], e
sobre umas rochas cortadas a pico, ao sopé das quais corre o rio Alhama[2],
ainda se veem os restos abandonados de um castelo árabe, célebre nos anais
gloriosos da Reconquista por haver sido teatro de grandes e memoráveis
façanhas, tanto por parte dos que o defenderam, quanto pelos que corajosamente
cravaram sobre seus merlões o estandarte da cruz.
Dos
muros não restam mais que alguns ruinosos vestígios. As pedras da atalaia
caíram uma sobre as outras ao fosso e o cobriram completamente. No pátio de
armas crescem silveiras e matas de saramago. Por todas as partes para onde se
voltem os olhos, veem-se apenas arcos rotos, silhares escuros e carcomidos:
aqui um lanço de barbacã, entre cujas rachaduras nasce a hidra; ali um torreão,
que ainda se mantém em pé como por milagre; acolá, os postes de argamassa com
os anéis de ferro que sustentavam a ponte levadiça.
Durante
a minha estadia nos banhos, tanto para fazer exercícios que, segundo me diziam,
eram convenientes ao estado de minha saúde, tanto por curiosidade, todas as
tardes tomava, entre aqueles tortuosos caminhos, um que conduz às ruínas da
fortaleza árabe e ali passava horas e horas escarafunchando o chão a ver se
encontrava algumas armas, dando golpes no muro para observar se estavam ocos,
descobrir o esconderijo de um tesouro, e metendo-me por todos os rincões com a
ideia de encontrar a entrada de algum desses subterrâneos que dizem existir em
todos os castelos dos mouros.
Minhas diligentes
pesquisas foram por demais infrutíferas.
Apesar
disto, numa tarde em que, já desesperançado de achar algo de novo e curioso no
alto da rocha na qual se assenta o castelo, renunciei a subir a ela, e limitei
o meu passeio às margens do rio que corre a seus pés. A andando e andando ao
longo da orla, vi uma espécie de boqueirão aberto na pedra viva e meio oculto
por frondosos e espessíssimos matagais. Não sem um pouquinho de temor, separei
a ramagem que cobria a entrada daquilo que me pareceu uma cova formada pela
Natureza e que, depois de alguns passos, se revelou um subterrâneo aberto a
pico. Não podendo penetrar até o fundo, que se perdia entre as sombras,
limitei-me a observar cuidadosamente as particularidades da abóboda e do piso,
que me pareceu que se elevava, formando uns grandes degraus em direção à altura
em que se acha o castelo a que me referi, e em cujas ruínas recordei então ter
visto uma poterna encoberta. Sem dúvida, havia descoberto um desses caminhos
secretos tão comuns nas obras militares daquela época, e que deve ter servido
para proporcionar saídas furtivas ou para recolher, durante o cerco, a água do
rio que ali corre bem próxima.
Para
assegurar-me da verdade que poderia haver em minhas deduções, travei, depois
que saí da cova por onde havia entrado, conversa com um trabalhador que andava
podando umas videiras naquelas ásperas e dificultosas sendas, e do qual me
aproximei a pretexto de pedir-lhe fogo para acender um cigarro.
Falamos
de várias coisas casuais: das propriedades medicinais das águas de Fitero, da
colheita passada e da vindoura, das mulheres de Navarra e do cultivo das
videiras. Falamos, enfim, de tudo o que ocorreu ao bom homem, antes de tocarmos
na gruta, objeto de minha curiosidade.
Quando,
finalmente, a conversa recaiu sobre este ponto, perguntei a ele se sabia de
alguém que já houvesse penetrado na cova e visto o seu fundo.
—
Penetrar na cova da moura! — disse-me assombrado ao ouvir a minha pergunta. —
Quem se atreveria? Não sabe você que dessa gruta sai todas as noites uma alma?
— Uma alma? — exclamei,
sorrindo. — A alma de quem?
—
A alma da filha de um alcaide mouro, que ainda anda a penar por estes lugares. Ela
é vista, todas as noites, saindo dessa cova, vestida de branco, para encher uma
jarrinha d’água à beira do rio.
Soube,
pela explicação daquele bom homem que, acerca do castelo árabe, e do
subterrâneo que eu supunha comunicar-se a ele, havia uma historieta. E como eu
me inclino a ouvir estas tradições, especialmente dos lábios da gente do povo,
supliquei a ele que me narrasse a história, o que ele fez, pouco mais ou menos
nos mesmos termos em que eu, a minha vez, vou narrar a meus leitores.
II
Quando
o castelo — do qual agora só restam algumas ruínas informes — pertencia aos reis mouros, e suas torres — das quais não ficou pedra sobre pedra —
dominavam o alto da rocha em que tem assento todo aquele fertilíssimo vale fecundado
pelo rio Alhama, houve, junto à vila de Fitero, uma renhida batalha, na qual
caiu ferido e prisioneiro dos árabes um famoso cavaleiro cristão, mui digno de
renome tanto por sua fé quanto por sua valentia.
Conduzido
à fortaleza e preso em ferros por seus inimigos, permaneceu alguns dias no
fundo do calabouço, lutando entre a vida e a morte, até que, curado quase
milagrosamente de suas feridas, seus parentes o resgataram com pagamento em ouro.
Voltou
o prisioneiro a seu lar. Voltou a estreitar em seus braços os que lhe deram a
vida. Seus irmãos de arma e seus homens de guerra se alvoroçaram ao vê-lo, crendo
a chegada a hora de empreender novos combates.
Mas a alma do cavaleiro enchera-se de profunda melancolia, e nem o
carinho paterno, nem os esforços da amizade eram capazes de dissipar sua
estranha melancolia.
Durante
o seu cativeiro, logrou ver a filha do alcaide mouro, de cuja famosa formosura
tinha notícias antes de conhecê-la. Mas quando a conheceu, encontrou-a tão
superior à ideia que dela tinha formado que não pôde resistir à sedução de seus
encantos, e se apaixonou perdidamente por um objeto para ele impossível.
Meses
e meses passou o cavaleiro a tramar os projetos mais atrevidos e absurdos: ora
imaginava um meio de romper as barreiras que o separavam daquela mulher, ora
fazia os maiores esforços para esquecê-la. Às vezes, decidia-se por uma coisa;
outras tantas, mostrava-se partidário de outra absolutamente oposta. Por fim,
reuniu seus irmãos e companheiros de armas, mandou chamar os seus homens de
guerra e, depois de fazer com o maior sigilo todos os preparativos necessários,
caiu de surpresa sobre a fortaleza que guardava a formosura objeto de seu
insensato amor.
Quando
da partida desta expedição, todos acreditavam que o seu líder era unicamente
movido pelo afã de vingar-se dos que o fizeram sofrer agrilhoando-o no fundo
dos calabouços. Mas, depois de tomada a fortaleza, a todos ficou claro o
verdadeiro móvel daquela arrojada empreitada, em que tantos bons cristãos
haviam perecido para contribuir com o êxito de uma paixão indigna.
O
cavaleiro, embriagado pelo amor que ao fim logrou acender no peito da
formosíssima moura, não fazia caso dos conselhos de seus amigos, nem parava
entre os murmúrios e as queixas de seus soldados. Uns e outros clamavam por
sair o quanto antes daqueles muros, sobre os quais era natural que os árabes
haveriam de cair novamente, uma vez recompostos do pânico e da surpresa.
E,
de fato, isto aconteceu. O alcaide reuniu as gentes dos lugares circunvizinhos
e, certa manhã, o vigia, que estava a posto na atalaia da torre, desceu para
anunciar aos enamorados que por toda serra, das rochas que irrompem da terra,
via-se descer uma nuvem de guerreiros, que bem seria possível assegurar-se que
toda a mourama cairia sobre o castelo.
A
filha do alcaide ficou a ouvi-lo, pálida como a morte. O cavaleiro pediu suas
armas a grandes vozes e todos se puseram em movimento na fortaleza. Os soldados
saíram em tumulto de seus alojamentos. Os chefes começaram a dar ordens.
Baixaram-se os rastrilhos. Ergueu-se a ponte levadiça. As ameias coroaram-se de
besteiros.
Algumas horas depois,
começou o assalto.
Podia-se
chamar, com razão, de inexpugnável o castelo. Somente por surpresa, como dele
se apoderaram os cristãos, era possível rendê-lo. Resistiram, pois, seus defensores um, dois e
até dez investidas.
Os mouros se limitaram,
vendo a inutilidade de seus esforços, a cercá-lo rigorosamente para fazer capitular
seus defensores pela fome.
A
fome começou, de fato, a fazer estragos horríveis entre os cristãos. Mas, sabendo
que, uma vez rendido o castelo, o preço da vida de seus defensores era a cabeça
de seu líder, ninguém quis traí-lo, e mesmo os que haviam reprovado a sua
conduta juraram perecer em sua defesa.
Os
mouros, impacientes, resolveram envidar um novo ataque no meio da noite. A
investida foi iracunda, a defesa desesperada e o choque horrível. Durante a
peleja, o alcaide, partida a fronte por um golpe de machado, caiu ao fosso do
alto muro, que galgara com a ajuda de uma escada, ao mesmo tempo em que o
cavaleiro recebia um golpe mortal na fenda seteira, onde uns e outros combatiam
corpo a corpo entre as sombras.
Os
cristãos começaram a recuar e recolher-se. Neste ponto, a moura se inclinou
sobre seu amante, que jazia, moribundo no chão. E, tomando-lhe em seus braços
com forças que o desespero e a ideia do perigo ampliavam, arrastou-o até o
pátio de armas. Ali, premiu uma alavanca. Pela abertura que se fez ao
deslocar-se uma pedra, que se ergueu como se deslocada por um impulso
sobrenatural, desapareceu com sua preciosa carga, e começou a descer, até
chegar ao fundo do subterrâneo.
III
Quando
o cavaleiro voltou a si, lançou ao redor um olhar incerto e disse:
—
Tenho sede! Estou morrendo! Estou ardendo!
E,
em seu delírio, precursor da morte, de seus lábios secos, pelos quais sibilava
a respiração ao transpô-los, só se ouviam estas palavras angustiosas:
—Tenho sede! Estou
ardendo! Água! Água!
A
moura sabia que aquele subterrâneo tinha uma saída para o vale onde corre o
rio. O vale e todas as alturas que o coroavam estavam cheios de soldados mouros
que, uma vez rendida a fortaleza, procuravam em vão, por todas as partes, o
cavaleiro e a sua amada para saciar neles sua sede de extermínio. Todavia, ela
não vacilou um instante sequer e, tomando o elmo do moribundo, deslizou como
uma sombra por entre o mato espesso que cobria a abertura da cova e desceu à
margem do rio.
Já
havia bebido a água e já se punha a levantar e voltar à companhia do seu
amante, quando silvou uma seta e ressoou um grito.
Dois
guerreiros mouros que vigiavam ao redor da fortaleza haviam disparado seus
arcos na direção em que ouviram moverem-se os galhos.
A
moura, ferida de morte, ainda assim conseguiu arrastar-se à entrada do
subterrâneo e penetrar até o fundo, onde se encontrava o cavaleiro. Este, ao
vê-la coberta de sangue e prestes a morrer, fremiu o coração. E, conhecendo a
enormidade do pecado que tão duramente expiavam, voltou os olhos ao céu, pegou
a água que a sua amante lhe oferecia e, sem aproximá-la dos lábios, perguntou à
moura:
— Queres ser cristã?
Queres morrer na minha religião e, se me salvo, salvar-te comigo?
A
moura, que havia caído ao solo, desvanecida pela falta de sangue, fez um
movimento imperceptível com a cabeça, sobre a qual o cavaleiro derramou a água
batismal, invocando o nome do Todo-Poderoso.
No
dia seguinte, o soldado que disparou a seta viu um rastro de sangue à margem do
rio e, seguindo-o, entrou na cova, onde encontrou os cadáveres do cavaleiro e
sua amada, que ainda vem à noite vagar por aqueles contornos.
[1]
Cidade da Espanha, situada na província de Navarra, famosa pelo conjunto
balneário, um dos mais antigos da Península Ibérica.
[2]
Afluente do Ebro. O seu nome provém do árabe “Al Hama”, que significa “águas
quentes”.
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