O EU INTRUSO - Conto de Terror - Rogério Silvério de Farias
O
EU INTRUSO
Rogério
Silvério de Farias
“Em vários tempos e
lugares, a loucura foi considerada sagrada, e deve haver razão nisso no
sentimento que se apodera de nós quando, ao vermos um louco desarrazoar,
pensamos logo que já não é ele quem fala, é alguém, alguém que vê por ele,
interpreta as coisas por ele, está atrás dele, invisível!…”
Lima Barreto
Prólogo
A
vida cotidiana é recheada de acontecimentos bizarros, insólitos e fantásticos.
Estamos predestinados a nos deparar com acontecimentos inauditos, aparentemente
sem uma explicação lógica plausível. Alguns desses acontecimentos estranhos e
no fundo perturbadoramente prodigiosos, chamamo-los usualmente de
sobrenaturais. E nessa mesma vida, nos deparamos com pessoas assustadoramente
excêntricas, personagens do drama humano que é o existir neste mundo-inferno da
dor e da crucificação, o planeta Terra.
Aconteceu
quando eu era bem jovem, acho que eu contava umas dezenove ou vinte primaveras.
Não lembro com exatidão a data certa, pois hoje estou no outono da vida, e me
custa recordar certas coisas que, inconscientemente ou não, eu queira esquecer;
como eu ia dizendo, naquela época, bem nos tempos em que trabalhei na
prefeitura da estranha cidade de Maremontes, fui designado para assumir uma
repartição considerada uma das piores daquele serviço público, a “Repartição
dos Mortos”, como era chamada pejorativamente pelos servidores mais antigos; na
verdade era a “Central Municipal de Óbitos”, um órgão da prefeitura responsável
pelo registro do passamento dos cidadãos.
Eu
tinha sido aprovado na seleção de candidatos ao maldito emprego público em
primeiro lugar, e isso, ao contrário do que deveria ser, me trouxera muitos
problemas ao assumir a vaga porque o chefe do setor administrativo era um
sujeito assaz invejoso e malvado; tal sujeito nefando ficara com inveja da
minha pessoa porque na época eu era estudioso, fazia faculdade, era jovem e
boa-pinta etc., enquanto ele, em sua sina de malévolo, era feio, egoísta,
preguiçoso para estudar e com a curva de uma felicidade fajuta e efêmera
proporcionada pela gula desenhada engraçadamente na pança protuberante. Hoje,
sou um bom velho vagabundo e barbudo, e, sem fazer mal a uma pulga manca, não
estou nem aí para essa cidade estranha e mesquinha que se tornou Maremontes,
então me lembro dessas coisas assim com certo espanto, porque percebi, com a
maior dor no coração, que o mundo é um asilo de loucos e endemoniados, alguns
deles inofensivos, porém alguns terrivelmente demoníacos... Sim, a vida
material, física, é um circo caótico e medonho, e o artista principal ou triste
palhaço é o ser humano, condenado a ser engolido vivo no picadeiro do tempo por
um fantasmagórico leão das sombras, a morte!
A
Central Municipal de Óbitos, responsável pelos trâmites e burocracias
concernentes aos falecimentos nos hospitais da cidade, ficava numa espécie de
garagem de prédio, bem perto da rua do cemitério. Meu único amigo era o vigia
noturno, um cara que também tinha sido aprovado na seleção e, assim como eu,
estava ali na labuta em busca do pão nosso de cada dia, adquirido penosamente
pelo suor do trabalho honesto, pão esse que era o pão que o diabo amassou.
Porém estávamos decididos a largar aquela porcaria de sonho de ser servidor
público municipal numa droga de prefeitura comandada por demônios sórdidos e
cujo demônio chefe, o sujo prefeito com cara e alma de suíno, não dava a mínima
para nós, tolos trabalhadores e muito menos aos demais cidadãos, também
pagadores de impostos escorchantes.
A
fauna humana é exótica e excêntrica na floresta do mundo. Ali, em Maremontes, a
coisa não era diferente. Odiávamos a dona da funerária, que ganhara a licitação
(de forma fraudulenta) para recolher os mortos do necrotério e oferecer os
serviços às famílias atordoadas pelo passamento dos parentes. O nome da
funerária e o slogan eram por demais estranhos: “Funerária Bem Morrer – aqui
sua morte é levada a sério!”.
“Quantos
morreram hoje, meus lindos querubins das sombras da vida e da morte?”, ela, a
dona da funerária, telefonava de hora em hora nos perguntando em tom jocoso
isso que foi escrito no início deste parágrafo. Quando dizíamos que não tinha
morrido ninguém com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o carpinteiro da
Terra, ela falava do outro lado da linha bem assim, chateada, mas de vez em
quando soltando risadinhas sarcásticas de bruxa malévola:
“Miséria
humana! A Ceifadora de Almas parece estar em greve. Bem, tomara que morram mais
uns três malditos desgraçados até a noitinha, pois quero viajar até o Rio de
Janeiro semana que vem com meu novo marido, o Deoclécio, um garotão lindo de
olhos verdes e bolsos vazios. Se não morrer ninguém, subo nessa porcaria de
hospital aí na frente da Central e esgano algum doente em estado terminal ou
vegetativo! A morte é a parte lucrativa de meu negócio, não tenham dúvida
alguma, meus querubins!”
Depois
que ela desligava, eu comentava com meu amigo vigia:
“Caramba!
E temos de conviver com esse belo exemplar da ralé espiritual do umbral! Essa
dona da funerária é uma bruxa dos tempos modernos e sujos onde vivemos! E esse
emprego é um lixo, só arrumo esses malditos empregos precários, com salários
baixos e ambiente sinistro, aqui nesta sórdida Maremontes onde Judas perdeu as
botas. Enquanto isso, meus irmãos estão todos ricos como profissionais
liberais, e orgulhando meus pais, que me tomam por um reles inepto ao não
conseguir encontrar belas sinecuras. Quando terminar minha faculdade irei dar o
fora desse calabouço macabro de malditos, essa repartição dos infernos. De que
adiantará meus estudos, minha faculdade, quando percebo que o mundo é demoníaco
e só se salvam as crianças, alguns poucos velhos e adultos desiludidos? Às
vezes me desanimo e penso em desistir de tudo. Penso: não vou mais estudar e
trabalhar, vou virar vagabundo que dá mais lucro. Cansei de ser um fracassado
com carteira assinada. Vou virar um estoico poeta louco e viver de brisa. Ó
brisa do mar, vou morar na praia e só pescar.”
“Mas
tu não sabes nem o que é um anzol, rapaz! Nunca te vi pescando uma piabinha
sequer! Teu negócio é escrever, um dia haverás de ser um grande escritor e eu
trabalharei como vigia noturna em tua mansão amealhada graças ao sucesso de
teusbest sellers!Eh, eh, eh!...Relaxa, a vida é assim, como uma mulher, uma
hora está boa, outra ruim...A vida é mulher, e tem seus momentos de TPM...”,
comentava o vigia e começava a rir, depois completava que iria largar também a
droga do emprego e casar com a mulher certa, uma viúva velha, rica e perneta, a
qual ele drogaria com soníferos para poder vadiar pela noite, em busca de
“altas gatas”, como ele dizia. Era um pássaro estranho e rapinante, esse vigia
noturno.
Eu
e o vigia amigo levávamos livros e histórias em quadrinhos de horror para
lermos, enquanto não tocasse o maldito telefone com a enfermeira do hospital
dizendo para que avisássemos a funerária para buscar um morto no necrotério.
Uma
noite enfadonha de domingo, quando fazíamos o plantão, o vigia começou a me
contar histórias assombrosas e fantásticas. Ele tinha fama de mentiroso, mas
acreditei numa de suas histórias extraordinárias.
Disse-me
que seu tio, no passado, tinha sido rico, mas acabou ficando louco e morrendo
em circunstâncias estranhas junto com sua namorada, num incêndio. Ele me contou
a história medonha e real. No quarto de seu tio, que era excêntrico e dado a
leituras de ciências ocultas, foi encontrado pelo meu amigo vigia um diário.
Esse diário era por seu tio intitulado “Diário de aventuras espirituais”.
Resumidamente, eis alguns trechos, que o vigia me contou e que não esqueço até
hoje, pois ele me mostrou o diário no outro dia, e me deu a mim. Era um caderno
velho e puído, a capa, incongruente com o conteúdo sinistro do livro, mostrava
uma bela paisagem de verão, com um sol se pondo numa praia, e o título em
garrafais feito com esferográfica azul: “Diário de aventuras espirituais”.
Ainda tenho esse caderno em casa. Pretendo queimá-lo, mas ainda não tive
coragem.
Diário
de Aventuras Espirituais
12
de março de 1980. Ontem fumei muito no narguilé. Depois das viagens que fiz no
final do ano passado, trouxe comigo o narguilé e com ele um tabaco especial do
oriente chamado narshastra. Ah, como fumar o narshastra no narguilé é
delicioso, estranho e divertido! Acho que é melhor que ópio. O narshastra,
segundo especialistas em drogas, ainda é um mistério. Às vezes parece simples
tabaco, mas às vezes, segundo algumas variedades, é pura erva ou uma espécie de
opiáceo incrível. O narshastra que trouxe comigo, me disseram aqueles que o
venderam para mim, é uma variedade mais suave já que em alguns países, como a
Índia, sua variedade mais forte e exótica é considerada uma espécie de cânhamo
e não nicotiana propriamente dita, sendo usado secretamente em rituais místicos
já que o narshastra mais forte é considerado droga com alto potencial
alucinógeno e terrivelmente enlouquecedor e cancerígeno sendo proibido o seu
uso e a sua venda. Em algumas ordens iniciáticas do oriente, ela é usada com
parcimônia para a recordação de vidas passadas e – incrível! – até visões de
reencarnações futuras!
O
dia todo bebi vinhos capitosos e inebriantes, também. Sou um vagabundo entregue
a vícios e prazeres mundanos, um insensato procurando a morte através de
caminhos obscuros e pecaminosos. Meus pais morreram e me deixaram uma boa
herança, duas casas e uma fortuna em joias. Vou torrar tudo, não quero nem
saber! Sim, pouco a pouco estou gastando tudo, sou um estroina e resolvi fazer
da minha vida um piquenique muito louco e divertido. Vou me divertir muito e
depois... Bem, depois – dane-se! – irei apenas morrer, por o ponto final na
minha louca existência neste mundo de infelizes e desgraçados inventado pelo
sonho louco de um Demiurgo cochilando em seu trono de merda.
Hoje,
estou de ressaca, ressaca que vai passando aos poucos, pois estou tomando
bastante água, e isto me proporciona alívio. Agora é de manhã, estou escrevendo
neste caderno algumas lembranças meio confusas do que me aconteceu ontem, a
partir da meia-noite, quando caí no sono após vagabundear o dia todo, imerso
nos delírios infernais da droga e do álcool.
Tudo
começou com uma estranha sensação. Houve uma sensação de ruptura, de queda. Foi
um despertar de uma espécie de estranho sono com sonhos bem reais, e na verdade
não sei se foram sonhos alucinantes de fato ou uma espécie estranha de viagem
fora do corpo. Foi a primeira vez que aquilo me aconteceu, então por isso
resolvi fazer este diário, um diário daquilo que chamei de “aventuras
espirituais”; pressinto coisas sombrias, no futuro, o enigma da existência
humana é estranho e assustador. Na verdade, esses sonhos e sensações continuam
acontecendo, mas de maneira caótica, como o sentimento que um morto tem ao
saber que não está de fato morto, mas abismado na dimensão do além-túmulo; não
sei se são apenas pesadelos loucos, realmente não sei. É uma coisa louca, uma espécie de projeção do
corpo astral ou uma possessão ou, talvez, uma separação. Na verdade, não sei o
que fundamentalmente venha a ser isso. Não estou conseguindo explicar
direito...
Bem,
foi assim: despertei fora do corpo, mas era apenas minha consciência fora do
corpo, uma espécie de corpo mental, sendo que eu não tinha um corpo astral ou
coisa parecida como costuma ocorrer entre os que experimentam essas atividades
extracorpóreas; era apenas o que eu chamo de meu Eu Verdadeiro, fora do corpo
denso, um eu sem qualquer tipo de corpo, era como se eu fosse um grande olho
invisível, solitário, ímpar.
Eu
sou, nesses momentos de experiência fantástica, uma espécie de neblina
translúcida, invisível para a maioria dos olhos humanos, sem forma
antropomórfica de qualquer espécie, sou como uma radiação elétrica, atômica,
anímica, translúcida. Mas eu vejo meu corpo físico na cama, e ele, meu corpo
físico, se levanta sozinho e sai, e vive! Sem o meu Eu Verdadeiro dentro. É
assim que acontece.
Uma
vez, olhei para o rosto dele, do corpo sem o meu Eu Real, era evidentemente o
meu corpo, mas havia um quê de sarcástico e maligno em suas feições, como se
fosse hospedeiro de um “id” das sombras do meu aparelho psíquico excêntrico.
Era um semblante malvado na maior parte do tempo, eu creio. Eu o vi levantar-se
e vestir a roupa lá pela uma hora da madrugada. Saiu quase como um zumbi. Era
eu, mas ao mesmo tempo não era eu. Que coisa estranha! Eu, na verdade, sou
dois? Será que é isso? O meu Eu Verdadeiro e o Eu Intruso no corpo físico,
somos apenas um? Este eu é apenas um substrato instintivo e louco até então
oculto em minha psique? Ou é uma entidade separada do meu self? Será que estou
louco? Será que eu convivera com ele a vida toda e não percebera sua maldita
existência? Ele se vestiu e saiu para a rua, altas horas da noite! Ele, o meu
corpo físico em cujo cérebro se aninha um eu vagabundo e safado que não sou
exatamente eu, mas provavelmente uma parte de mim que eu não imaginava existir.
O
que essa “miséria” vai fazer a uma hora dessas?... Comecei a segui-lo com minha
consciência real, ou corpo mental. Meu Deus será que estou louco? Dane-se!”.
15
de março de 1980. De novo aconteceu.
Ainda bem que comecei a anotar tudo neste meu diário, um caderno que arranjei.
Ontem à noite tive outras daquelas experiências. Parei de beber e usar
narshastra, mas as experiências continuam! E eu que pensava que essas aventuras
espirituais eram fruto de alucinações provocadas pela bebida e pelo uso
excessivo do narshastra no narguilé, tenho que admitir que talvez não seja
exatamente isso. Talvez elas, as bebidas e o maldito narshastra, tenham servido
de catalisadores ou impulsionadores físicos e psíquicos, mas não é exatamente a
causa do que tenho sentido e presenciado.
Toda
noite, eu saio do meu corpo, como já falei aqui no diário. Algo como meu Eu
Mental sai, sem qualquer tipo de corpo. Sou como uma consciência ambulante. Mas
o meu corpo físico que fica na cama, se ergue, como se estivesse possuído e vai
vagabundear como um sonâmbulo pelas ruas! Mas não é um estranho ou outro
espírito que o possui, é uma parte do meu ego, eu acho. Pode ser que meu corpo
físico tenha vida própria, separado da minha alma, do meu real ser, e esse
corpo físico tenha um eu próprio, que sempre o habitara, será que é isso?
Cheguei
a cogitar isso, mas acho que não é, acho que é algo mais profundo. O meu corpo não está possuído, mas sim sou eu
mesmo, ou alguma parte de meu eu que agora dominou a parte física por completo.
Talvez eu seja “eus”! Talvez o ego seja múltiplo. Legião! Oh, meu deus será que
sou esquizofrênico?
Tenho
me seguido todas as noites. O meu corpo físico com este meu Eu Intruso, vai aos
lugares mais sinistros e abjetos. Prostíbulos, bares fedorentos, cemitérios, às
vezes rouba, às vezes vandaliza. Quando pela madrugada meu corpo físico volta
para cama e se deita, exausto, então o meu Eu Verdadeiro, ou minha consciência,
reentra no físico, e aquele outro eu, parece sumir-se nos recônditos do
inconsciente ou apaga ou dorme em seu sono nos recônditos das profundezas do
meu ser.”
16
de março de 1980. Estou anotando neste diário, agora pela manhã, tudo o que
vivi ontem à noite. Saí do meu corpo por volta da meia-noite, e meu corpo
físico se ergueu possuído por uma vontade própria, ou seja, uma parte do meu
eu; então um eu maquiavélico, malvado, usa a noite toda esse meu corpo físico,
como se ele fosse uma máquina ou um veículo. Enquanto eu fico apenas ao seu
redor ou por sobre ele, como uma nuvem invisível flutuante, uma alma penada,
seguindo aquele ser estranho que, na verdade, sou eu mesmo, ou uma parte de mim
que eu até então desconhecia, algo que toma conta do meu corpo físico, que o
possui.
Meu
Deus, como é canalha a entidade que habita meu corpo físico! Aquela parte de
mim, ou parte do meu eu, ontem encontrou uma prostituta de rua, usufrui de seus
favores num beco escuro, depois a esbofeteou quando ela pediu a paga pelos
serviços lúbricos prestados a mim, ou melhor, ao meu corpo e aquele eu que me
envergonha de ser parte mesma de minha alma. Meu Deus, eu sou uma lata de lixo ambulante!
Ou melhor, aquela parte de mim que domina meu corpo físico todas as noites, é
um lixo! Ou será que ele, aquele meu eu inferior, aquele intruso de mim mesmo,
me domina todas as horas, todos os dias, e eu só consigo descobrir quem e o que
faz aquele eu ou parte mim, quando adormeço e projeto minha real consciência ou
meu eu superior para fora daquele ergástulo, daquela prisão ambulante de carne,
sangue e ossos que é o corpo físico?”
17
de março de 1980. Ontem meu corpo físico, com seu eu inferior dentro dele, ou
seja, meu eu inferior, voltou para casa com uma dessas mulheres de rua.
Chama-se Sônia, a prostituta. O meu corpo físico com aquele Eu Intruso anda
todo faceiro. Parece que se apaixonou por essa maldita vagabunda. Na verdade,
está doentiamente apaixonado por ela. Sônia parece corresponder esse amor
doentio. O intruso, aquele eu que sou
eu, mas ao mesmo tempo não sou eu, disse a ela seu nome. Agora sei como se
chama: Morbleim !...Que nome estranho esse, mas ele deu a entender que não é bem
um nome, mas uma espécie de título ou condição.
É como se alguém perguntasse a um rei qual o seu nome e ele disse
apenas: eu sou rei ou eu sou o rei; como se uma mulher perguntasse o nome a um
homem e ele respondesse: meu nome é homem ou eu sou o homem; ou como se um
alienígena de outro planeta perguntasse a um terráqueo qual o seu nome e ele, o
terráqueo, dissesse: meu nome é humano.
Eles
adormeceram juntos, na cama, Morbleim e Sonia, e pela manhã voltei ao meu corpo
físico e o meu outro eu, o Morbleim, abismou-se em uma inconsciência ou prisão
dos mundos internos do subconsciente que não ouso imaginar, dimensões além de
qualquer hipótese humana. Sonia parecia estar me estranhando, e com razão. O
meu eu superior não tinha nada a ver com ela. Ela se despediu com um beijo
lascivo, e marcamos um novo encontro, na praça. Antes de sair pela porta, ela
comentou que eu parecia meio diferente. Apenas ri. Mas ela desconfiara, ficara
confusa, ela sentira que eu não parecia o Morbleim. Senti nojo dessa vagabunda
de cabelos ruivos e olhos verdes dentro de minha casa. Acho que vou me mudar
hoje mesmo, vou comprar um chalé no campo. Farei isso hoje mesmo. Talvez assim
eu me livre dos dois, de “mim mesmo”, o Morbleim, e dela, Sonia.
03
de abril de 1980. No mês passado, quando altas horas da noite, ele despertou e
se viu noutra casa, longe da cidade, ficou irritado. Eu estava ao seu lado,
invisível, no meu corpo mental. Vi quando ele foi para o banheiro e olhou seu
reflexo. Seu reflexo, ele acreditava, era eu. Então ele sabia de minha
existência! Disse ao reflexo que não iria ficar assim, que eu era um miserável,
um idiota. Que eu não merecia ser dono do corpo físico onde minha alma morava e
nascera. Que eu era um idiota e merecia morrer, ficar num mundo sem corpo para
sempre. Morbleim disse que eu era um fraco, um misógino. Disse que ia procurar
Sônia e trazê-la para morar naquilo que ele chamou de ninho da luxúria, a casa
onde eu, ou melhor, nós dois, eu e meu outro eu, o Morbleim, estávamos agora
morando. Ele, meu outro eu, meu eu inferior, me odeia!...
05
de abril de 1980. Pela manhã, acordei-me na sarjeta. Eu, ou melhor, o Morbleim,
o Eu Intruso que se apossa do meu corpo todas as noites, parece ter bebido
demais, talvez não tenha encontrado Sonia.
Eu,
ou melhor, meu corpo físico habitado por mim e pelo meu outro eu que é o
Morbleim, parece que foi espancado. Voltei para casa e anoto agora no meu
diário minhas impressões. Acredito que algum rufião ou cafetão de Sonia tenha
dado uma boa surra no Morbleim. Preciso fazer alguma coisa. Preciso tomar
medidas drásticas. Isto está ficando muito louco. Se alguém me matar, eu morro,
mas continuarei vivo num corpo mental? Meu Deus será que enlouqueci? Será um
caso de dupla personalidade ou esquizofrenia?
07
de abril de 1980. Ele, Morbleim, o intruso, fala comigo, ao se olhar no espelho
do banheiro. Insulta-me, me chama de lixo, de hipócrita. De fracassado. De
frustrado e cretino. Humilha-me. Sinto vontade de me matar, ou melhor, de
matá-lo, matar aquele miserável eu inferior, um eu intruso que eu desconhecia
haver dentro de mim, o Morbleim.
Diz
que vai se vingar por eu ter me metido no seu namoro com Sonia. Morbleim me
odeia. Tenho medo do que esse louco eu, ou o lado sombrio de meu ego, pretende
fazer.
Preciso
fazer alguma coisa. Estou me tornando desleixado, meu corpo físico está ficando
feio, não faço a barba faz tempo, meu cabelo está grande e desgrenhado. Pareço
um ermitão louco...
Morbleim
parece um louco!
02
de maio de 1980. Faz tempo que não saio mais do corpo com minha consciência.
Acho que tudo acabou. Toda aquela história sobre o Morbleim, o eu intruso,
teria sido um surto psicótico, talvez. Algum tipo de loucura passageira. Talvez
Morbleim nunca tenha existido, talvez tenha sido produto de minha imaginação ou
do narshastra e do álcool. Dormi muito bem esta noite e desde o mês passado
aquele meu eu inferior não se apossou mais do meu corpo físico todas as noites.
Graças a Deus tudo parece ter acabado.
08
de maio de 1980. Praga dos diabos! Ontem o filho da mãe voltou a se apossar do
meu corpo outra vez. E com maior fúria. Agora, de dia também! Morbleim está de
volta! Está tomando conta de mim, do meu corpo físico, digo. Quando fui tirar
uma soneca depois do almoço, o maldito voltou e se apossou de mim, ou de meu
corpo. Ficou no meu corpo até o outro dia, pela manhã. Parece que Morbleim
arranjou um jeito de me fazer dormir longas horas. Por outro lado, ele tenta
não dormir, mas precisa, assim como eu, de sono. Já sei o que vou fazer, vou
dormir o mínimo possível. Tomar bastante café, remédios ou receitas caseiras
para afugentar o sono!
10
de maio de 1980. Estou sem dormir a vários dias. Não posso dormir, senão o
maldito Morbleim vai se apossar de mim! E temo que ele pretenda fazer isso para
sempre!... Oh, meu Deus, o que farei? O que farei?
Quando
cochilo, tenho pesadelos horrendos com ele, o Morbleim, esse meu outro eu, o
meu eu inferior. Vejo Morbleim nos meus sonhos e pesadelos, me amaldiçoando, e
até lutando com minha alma, o lado bom de minha alma. Meu Deus, não estou
conseguindo mais ficar sem dormir. E sei que quando adormecer, ele, o Morbleim,
vai tomar conta de mim, do meu corpo. Preciso fazer algo, preciso!
11
de maio de 1980. Ele anda lendo meus livros de ocultismo, aquele miserável
intruso, o Morbleim! Ele soube que comprei livros de ocultismo e magia negra
para tentar destruí-lo. Morbleim também apareceu com outros livros, bem mais
raros. Quer me destruir, também. Parece que comprou em sebos, em bairros
obscuros de Maremontes. Jesus, são livros da mais medonha magia negra! Livros
terríveis, de feitiçarias, de bruxarias, de pactos com os servos da energia do
inferno!...Eu sou louco, ou melhor, ele, Morbleim, o meu eu inferior que se apossa
do meu corpo físico é louco!...Vai ser um duelo, um duelo mortal entre eus!...
12
de maio de 1980. Estou apavorado fora do meu corpo físico. Oh, em que horrores
espirituais fui me meter! Não consigo mais voltar ao meu corpo. Só consigo
escrever no diário quando ele sai, pois consigo folhear o caderno e escrever
nele, como um fantasma semi-materializado pegaria uma caneta e escreveria. Mas
é muito difícil fazer isso. Erguer a caneta, abrir o caderno e escrever através
de processos de levitação e controle de objetos materiais. Pareço um fantasma
tentando interagir com o mundo físico. Tomara que Morbleim não encontre o
diário.
Parece
que o miserável não dorme mais. Fez rituais no meu quarto, desenhou
pentagramas. Fez algum tipo de encanto maldito!
Oh,
meu Deus, o Morbleim tomou conta definitivamente do meu corpo físico! Preciso
acabar com ele. Mas fora do meu corpo físico, sou apenas um corpo mental. O que
farei? Preciso fazer algo!
Ele
saiu o dia todo, agora. Estou sozinho na casa, sou um fantasma vivo, um
fantasma sem sequer um corpo astral, sem nenhum corpo! Ele deixou alguns livros
estranhos, sobre a escrivaninha. Livros de magia negra que ele usou para me
expulsar definitivamente do meu corpo físico. Um deles era o lendário e
abominável “Regnun Tenebris”, e o outro era o não menos medonho e raro
“Necrosophia”, ambos escritos pelo mago louco Kolga Salba, nos primórdios do
antigo continente da Lemúria, e adaptado e traduzido para o latim, segundo
alguns exegetas da literatura ocultista, pelo excêntrico monge e alquimista
medieval chamado Rosabis Torvatus.
Diziam
os estudiosos do ocultismo, Torvatus era a própria reencarnação de Kolga Salba,
que com sua própria pena adaptara as obras escritas em uma de suas muitas vidas
passadas, alterando em alguns trechos, para o seu tempo, na Idade Média.
13
de maio de 1980. Ando sozinho pelos campos. Sou uma espécie de alma penada
viva. Quando ele sai de casa, vou até lá e consigo escrever no diário. Mas
ontem bebi na fonte do conhecimento maldito mais uma vez, estudei com afinco as
páginas mofadas e negras do Necrosophia. Agora sei o que fazer. Eu vou matá-lo!
Vou acabar com o intruso! Vou matar Morbleim!
14
de maio de 1980. É a última vez que escrevo neste diário. Vou voltar para a
outra casa, na cidade e deixar este caderno por lá. Ontem, com ajuda dos
conhecimentos de magia negra adquiridos no Necrosophia e no Regnun Tenebris,
fui a um cemitério e consegui entrar no corpo de um cadáver na sepultura que
com muito custo violei. Sim, meti meu corpo mental dentro da carcaça pútrida.
Dentro do morto, tornei-me uma espécie de zumbi ou morto-vivo, numa possessão
cadavérica, e, cambaleando em meio às névoas da noite, fui, em passos trôpegos,
até a casa onde encontrei eu mesmo, ou melhor, o meu eu inferior, o Morbleim,
possuindo meu corpo físico, deitado com Sonia entregues a mais nojenta das
luxúrias.
Morbleim
e Sonia se apavoraram quando arrebentei a porta do quarto. Foi uma briga
intensa, mas eu os matei. Sonia desmaiou de medo, foi fácil matá-la depois de
liquidar o meu rival. Primeiro esganei a
mim mesmo, ou seja, matei meu Morbleim dentro do meu corpo físico. Mas assim
como eu, ele voltou a tornar vivo o cadáver, ele voltou para o corpo morto por
esganadura. Então, enquanto ele cambaleava entrando no corpo do cadáver que
outrora me pertencera, olhei o lampião pendurado na parede e selei nosso
destino. Arrebentei o lampião na parede do chalé e o fogo resvalou também sobre
as cobertas da cama, as chamas se alastraram como salamandras sequiosas de
morte. Corpos calcinados não tornam a vida, desta forma matei Morbleim, o
ladrão do meu corpo físico, e matei Sonia, aquela vagabunda também!
Eu,
possuindo o cadáver de um desconhecido, como se fosse um zumbi, pulei a janela
com o livro nas mãos. E agora estou aqui, na cidade. Com muito custo terminarei
de escrever o diário. Já começa a amanhecer, depois voltarei para a sepultura,
retornarei com este cadáver redivivo ao seu túmulo. E então, como uma alma
penada, como um deus ou demônio que se livrou do cativeiro do corpo carnal,
vagarei a esmo pelos campos e ruas, eternamente condenado, eternamente
solitário em meu corpo mental, em meu espírito vagabundo...
Epílogo
Não
sei como ainda consigo me lembrar dessas coisas insanas da minha juventude.
Ainda tenho o tenebroso caderno em mãos. É de fato um diário assustador,
contendo relatos medonhos e inacreditáveis, blasfêmias que ainda me deixam arrepiado.
Pretendo
queimá-lo em breve. Não sei se essa história toda foi invenção do velho amigo
vigia noturno e companheiro de trabalho, não sei se foi uma brincadeira dele
para me assustar. Se for isso, acho que conseguiu. Ou talvez ele próprio, o vigia,
tenha escrito esse diário, embora na época eu houvesse tido a oportunidade de
comparar sua caligrafia e ela era um tanto diferente se comparada com a do
diário. Mas, pensando bem, ele pode ter disfarçado na forma de escrever. Talvez
ele seja só um gozador, um brincalhão. Mas não vou correr o risco. Vou jogar no
fogo esse diário de danação e horror, antes que aquele seu dono estranho de
alguma forma volte e tenha a infeliz ideia de tornar a escrever nele. Pretendo
esquecer tudo isso, essa loucura toda.
Certas
coisas na vida têm que ser esquecidas para só serem relembradas nas horas
sombrias que antecedem nossa morte. No entanto, fico pensando: teria sido o tio
do meu amigo vigia noturno apenas um insano, um anormal? Era só um louco?... Um
delirante viciado no exótico narshastra? Ou alguém com um eu intrometido ou
estranha entidade dentro de seu corpo, um invasor de seu próprio corpo e alma
que ele chamava de Morbleim, o intruso!
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