VAMPÍRICA - Conto Clássico de Terror - Dorothy Dunn
VAMPÍRICA
Dorothy Dunn
(Séc. XX)
Tradução de autor desconhecido do séc. XX
Charles Endicott, um dos homens mais ricos dos Estados Unidos, estava à morte, naquela hora. Tinha um pedacinho de esparadrapo na ponta do nariz e um arranhão no lóbulo da orelha direita. Mas, eu bem sabia, esses ferimentos eram superficiais; estava agonizando de aflição e, num dia ou dois, morreria de febre tropical, exatamente como seu filho de dezoito anos, duas semanas antes. Deitado entre os quentes e pesados lençóis do hotel de Monterrey, meu amigo não podia sossegar. Não fosse eu médico, diplomado pela John Hopkins, e ainda assim sentiria que sua agitação naquele momento era apenas mental.
— Um pouco d’água, Paul. Minha garganta…
Despejei um pouco do líquido morno no copo sabre a mesinha de cabeceira. Beberia, depois passaria a língua pelos lábios secos, como se nada pudesse aplacar-lhe a sede. Era natural. Estávamos no mês de agosto, e nem o gelo parece frio em Monterrey, em pleno meio-dia; e seu corpo estava febril, um toque da doença de Chagas, possivelmente transmitida pelo morcego vampiro.
*
Não podia afastar da mente o terrível morcego. O animal ali permanecia e surgia na conversação como um persistente motivo do Mal e da Morte. Falava de Francine, sua jovem e bela segunda esposa; de Walter, o filho morto, fruto de meu primeiro casamento. Depois, voltava a falar do morcego, cujo ventre distendido, cheio de sangue humano, o impedia de voar.
— Gostaria que tivesses vindo mais cedo, Paul. Aquele horrível animal, seguro às cortinas com as garras das asas e os pés traseiros pousados no chão! O sangue de Walter cobria todo o travesseiro e escorria-lhe pelo pescoço; e nem chegou a despertar! Três dias depois, estava morto! Por que, Paul? O médico do lugar, sujeito ignorante, assegurou-nos: não havia perigo, as mordidelas não eram fatais…
— Eu diria — observei, em atitude profissional — que, na maioria dos casos, as mordidelas não são fatais. O organismo do rapaz devia estar esgotado e aberto ao ataque dos germens que os morcegos às vezes transmitem.
— Sim — concordou Charles, hesitante. —Ele nunca foi forte. Ainda tinha ataques, de vez em quando, embora tenha melhorado muito com o tratamento que lhe fizeste o ano passado. Mas essa doença o tornaria mais vulnerável, Paul? O médico daqui limitou-se a sacudir a cabeça e a resmungar qualquer coisa sobre infecção inexplicável. Assinou o atestado de óbito, mas percebi em sua fisionomia que não compreendia as condições de Walter. Gostaria que estivesses aqui na ocasião. Parecia tão tolo!
— Estou aqui agora — retruquei, acalmando-o. — E duvido que o doutor seja um tolo. Os médicos são seres humanos, a final de contas. Há muitas coisas que não sabemos.
— Ainda assim, eu me sentiria melhor se estivesses aqui.
Perguntei a mim mesmo qual a causa dessa confiança Já não exercia a medicina. A Associação Médica Americana reprovara certas experiências por mim feitas, bem como a minha recente descoberta, uma droga para combater alergias da pele. A droga havia curado muitos casos, mas alguns pacientes desenvolveram horríveis lesões. Uma mulher morreu e fui processado por prática irregular da medicina. Mas a ciência será, afinal, beneficiada. Tenho trabalhado em laboratório particular e estou conseguindo larga margem de segurança para a droga. A maior parte dos especialistas da pele sabe pouquíssimo. As erupções nunca foram fatais e todo o dinheiro destinado a pesquisas médicas é empregado no estudo de doenças mais importantes. Mas, algum dia, se eu continuar estudando, haverá uma cura para a pele, tão certa como a sulfa para a pneumonia.
— Como se chama teu médico, Charles?
— Alfredo Sanchez. Mas não é mais meu médico. Quero que tomes conta de mim.
— Não posso fazer isso. Mesmo que estivesse exercendo a medicina, não poderia apoderar-me do caso de outro.
— É preciso, Paul! Não me sinto bem. Estou queimando por dentro e nenhuma destas malditas pílulas me faz bem algum. Morrerei, se esse charlatão continuar a me tratar.
Não quis dizer-lhe que ia morrer de qualquer maneira. Dei-lhe, apenas, outro copo d’água, corri um olhar profissional pela receita do vidro de pílulas que Sanchez lhe dera, e balancei a cabeça, com ar entendido.
— Ótimo. Não teria receitado melhor. Teu médico não é nenhum charlatão, Charles.
Isso o confortou. Estava cansado e mergulhou naquele estado de silenciosa contemplação, próprio das pessoas que ainda não cessaram de chorar seus mortos.
— Walter não era mau, Paul. É que nunca levou vida normal e era velho demais para a idade.
— Quem disse que ele era mau?
— Ninguém. Francine é que nunca conseguiu gostar dele. Naturalmente, é tão jovem que nunca esperei que tratasse Walter como filho. Mas era esquisita…
— Esquista?
— A maneira como ficava parada, olhando-o com seus grandes olhos negros. Já viste como parece colar os olhos em algum objeto?
Sim, tinha visto.
— Pois bem. Costumava olhá-lo como se não o visse. Isso o fazia sentir-se mal. Certa vez, num descontrole de nervos, gritou que ia abrir-lhe um buraco no pescoço, se continuasse a olhá-lo daquela maneira. Ela voltou a si, num sobressalto, como quem desperta de um transe. Pobre Francine! Tem aqueles alheamentos, depois fica tão ansiosa de corrigir as coisas… Linda mulher, Francine! Encontrei-a em Paris, antes da guerra. Tão jovem! Parece que nunca mudará.
Começou a agitar-se, inquieto, no leito. Fui ao banheiro e trouxe uma toalha úmida. Isso não diminuiria a febre, mas lhe daria alívio. Sua gratidão pelo meu gesto era de causar dó.
— Obrigado, Paul. É bom que estejas aqui, afinal. Toma conta de Francine. Vivo preocupado por sua causa. Tem a mania das excursões; leva guias, naturalmente, mas, numa cidade estranha…
Finalmente, mergulhou no sono. Percorri a série de quartos à procura da empregada mexicana e ordenei-lhe ficasse junto ao leito de Charles até que o Dr. Sanchez viesse para a visita da tarde.
Depois, desci as escadas à procura de Francine. Ela teria muito que explicar. Morcegos vampiros vivem em cavernas, não em hotéis na cidade de Monterrey. Tinha o pressentimento de que a moça acrescentara este toque fantasmagórico à simplicidade de nosso plano original. Não estava gostando. O crime é perigoso de qualquer maneira e os mexicanos não são tolos. Não compreendia o motivo da introdução do morcego no caso A injeção hipodérmica seria coisa rápida, limpa e segura. A lembrança dos animais de asas de couro, sugadores de sangue, me revoltava.
*
Encontrei-a no Sanborn bebendo chá gelado. Fiquei por um momento parado na soleira, esquecendo-me de tudo, vendo apenas sua beleza. Trazia um chapéu branco de abas largas, enfeitado com uma coroa de flores e sem copa, de forma que seu brilhante cabelo negro-azulado se destacava contra a palha. O vestido era branco, de mangas largas e compridas. Parecia uma boneca francesa com sua pele acetinada e a pequenina boca vermelha. Estava sentada a uma das mesas do centro. Compreendi que não podíamos conversar ali. Fiquei de pé a seu lado, durante um minuto inteiro, apreciando-lhe a beleza, antes que me visse. Estivera olhando atentamente para uma senhora gorda ao lado.
— Olá, Francine!
— Paul, só te esperava pela manhã!
— Consegui passagem de avião mais cedo. Vamos a qualquer parte.
Alugamos um carro e o chofer nos levou para fora da cidade, a fim de visitarmos as ruínas de um velho castelo. O homem ficou no carro, com o chapéu cobrindo-lhe a cara, e penetramos no edifício onde encontramos um pedaço de parede ainda de pé; ali podíamos ficar na sombra sem sermos vistos.
Beijei-a com toda a sede de três meses de separação. Seus lábios colaram-se aos meus e seus dedos agarraram-se a meus ombros como pequeninas garras. Afastei-me, finalmente, trêmulo e fraco. Seus olhos brilhavam, e ali a via tão cheia de vida quanto eu de fraqueza. Era como se me tivesse tirado toda a força.
— Paul, querido! Senti tanto a tua falta! Que meses horríveis passei aqui só com Charles e aquele horrível Walter.
Acariciei-lhe a linha delicada da face.
— Walter não era tão mau assim!
— Era tão velho! — exclamou.
Sorri.
— Achas que dezoito anos é velhice?
— Ele era velho desde que nasceu, Paul. Não havia juventude em seu coração, nem sangue vermelho em suas veias.
— Era doente.
— Eu sei. Aqueles horríveis ataques… Não sentes, por isso, tanto remorso pelo que tivemos de fazer, não é, Paul?
— Tens Razão. Quando estou contigo, concordo com tudo. Isso não importa. Dentro em breve, tudo estará acabado e ficaremos juntos para sempre.
— Com dinheiro bastante para continuares tuas experiências médicas pelo tempo que quiseres! Vai ser maravilhoso. Paul, tu és jovem! Não és como Charles. Estou tão cansada de homens velhos, Paul!
Às vezes não a conseguia entender. Eu era mais moço que Charles Endicott; mas não muito mais moço.
— Todos nós envelhecemos — respondi. — Esperas ficar sempre jovem e bonita como agora?
— Assim espero — respondeu, com seriedade.
Tornou a beijar-me e, mais uma vez, seus lábios sequiosos varreram-me tudo o mais da mente. Era-me impossível pensar claramente junto dela, lembrar-me de que havia necessidade de mais uma injeção para liquidar-lhe o marido. Havia as passagens de avião a reservar. Havia o caso dos morcegos a ser esclarecido.
Afastei-lhe as mãos com firmeza e pus-me de pé, acendendo um cigarro para ajudar a manter a conversa num plano abstrato.
— Francine…
— Que é, Paul?
— Aquele morcego. Como foi que um vampiro entrou no hotel?
Seus olhos se detiveram sobre um balde pendurado no velho poço do pátio.
— Não tenho certeza, Paul. Creio que deve ter ficado preso no forro de meu casaco. Estive na caverna.
Mordi selvagemente o cigarro, desejando que parasse de falar aos pulinhos.
— Por quê? Por que diabos havias de ir a uma caverna de vampiros, esses animais nojentos?
Não me olhou. Seu olhar continuava preso ao balde e seu rosto perdera o brilho. Estava mergulhada num daqueles vagos alheamentos que tanto perturbara o marido.
— Fui porque queria ver, Paul. Um guia falou-me a respeito e, por cem dólares, arranjou a visita à caverna.
— Mas que ladrão! O miserável…
— Valeu a pena, Paul. Eles não são como os outros animais. Andam nas patas traseiras e nos cotovelos das asas. Ficam de cabeça para baixo, pendurados no teto. E seus dentes, Paul! Nunca vi nada tão afiado. Voam sobre o leito e dilaceram a carre sem despertar a pessoa…
— Depois sugam o sangue — concluí, enojado.
— Não — retrucou ela, o corpo ligeiramente tenso. — Não, Paul, não sugam o sangue. Cortam a veia e, quando o sangue começa a correr, lambem-no como um gatinho lambe o leite.
— Meu Deus! Por que não procuraste coisa menos horrível para conhecer? Francamente, Francine…
— Ele deve ter ficado preso ao forro de meu casaco — continuou, sonhadoramente. — Com certeza, foi assim que entrou no hotel. O Dr. Sanchez disse que era possível.
A maneira por que ignorava meu aborrecimento era de enfurecer. Sua insensatez com o morcego podia fazer com que a morte de Walter fosse objeto de muito falatório Devia ter usado apenas o veneno simples que lhe dei e que daria como resultado diagnosticado de morte natural. Nenhum médico assistente teria dúvida alguma em assinar o atestado de óbito. Mas Francine não se mostrava absolutamente preocupada com as consequências de sua visita à caverna. Parecia estar a milhões de quilômetros de distância.
— Francine…
Não me olhou.
Aproximei-me e sacudi-a.
— Olha para mim! Deixa de olhar para aquele balde e olha para mim!
Estremeceu, como se fosse necessário um esforço físico para afastar-se do objeto a que estava presa. Levantou o rosto para mim e colocou ternamente as mãos em minhas faces.
— Paul, meu querido, não quis ser grosseira. Amo-te.
Senti-me perdido outra vez na forca envolvente de sua beleza. Queria tomá-la nos braços, esmagá-la com ardor maior que o seu. Mas não ousei tentar. Ia precisar de todas as forças.
— Paul, o que é? Por que estás preocupado?
— É a morte de Walter — retruquei. — A dentada de um morcego não devia ser fatal. O médico pode achar isso estranho. Nosso plano corre perigo de ser descoberto.
— Mas todos nós fomos mordidos — disse, num tom destinado a afastar meus temores. — Walter, Charles e eu fomos mordidos na mesma noite pelo mesmo vampiro. A criada encontrou-o na manhã seguinte.
— Charles me contou. O estômago do animal estava por demais distendido e impedia-o de voar. Que lhe aconteceu?
— O criado apanhou-o na rede. Segundo o médico, era, provavelmente, portador de aluma doença.
— Bem, doença essa que vitimou Walter no dia seguinte? Nenhum médico acreditaria nisso. Há uma coisa que se chama período de incubação.
— Bem, isso não importa. O rapaz morreu de infecção e posso assegurar-te que o doutor não suspeita de mim. Talvez tenha ficado admirado, mas não tem suspeita… Não me olhes com essa cara, Paul.
Eu olhava atentamente para a ponta de seu nariz e para o lóbulo da orelha.
— Foste mordida pelo morcego? — perguntei.
— Sim, durante a noite.
— Charles ainda tem um esparadrapo no nariz, Francine. E um ligeiro arranhão na orelha.
— Eu sei.
Minhas mãos ficaram subitamente úmidas e a voz saiu-me num murmúrio rouco da garganta.
— Francine, não tens marca nenhuma.
Ela pôs-se de pé, colocando o grande chapéu branco sobre os cabelos negros.
— Minha pele cicatriza depressa, Paul.
— Sem o menor sinal de ter sido mordida? Não esqueças de que sou médico, Francine. E especialista de pele. Mentiste-me, não sei por quê. Os dentes daquele morcego nunca te tocaram!
— Paul! Por que havia de mentir-te? Somos cúmplices. Pergunta à empregada do hotel que me viu na manhã seguinte. Ela te contará
Voltamos para a cidade.
Pouco antes do jantar, encontrei a empregada no vestíbulo. Interroguei-a. Respondeu em espanhol, e lhe pedi que repetisse, devagar, para ter certeza.
— O travesseiro sob a cabeça da patroa estava molhado de sangue. As pontas dos cabelos negros e a face branca estavam também ensanguentados.
A empregada estremeceu ao me referir o fato e estremeci, por minha vez, durante todo o jantar. Não me contara uma coisa: não mencionara qualquer marca de arranhão na face da patroa.
Charles morreu às dez horas daquela noite. Estava eu sentado no vestíbulo, saboreando o único cigarro que me permito diariamente, quando o Dr. Sanchez desceu. Era um homenzinho de pele cor de oliva e testa alta. Seus olhos, protegidos pelos óculos, tinham uma expressão inteligente e bondosa. Deixou-se cair numa cadeira de couro junto a mim.
— Sinto muito — começou —, mas o seu amigo, o senhor Endicott, acaba de morrer.
Dei um salto, sinceramente surpreso e chocado. Não devia ter sido tão cedo! Francine devia ter feito o trabalho nas primeiras horas da manhã. Eu tinha sido firme ao traçar sua linha de conduta. Que se passara? Que ela teria feito?
— Compreendo — continuou o médico com a voz cansada. — O senhor o viu hoje à tarde e sabia que a febre não era nada. Mas o coração estava fraco. Pobre homem! Sofria com a morte do filho. Não podia sossegar e, com a tensão da febre e o choque das últimas semanas, seu coração fraquejou. Bem o sabia, mas pensei que, talvez, sua força de vontade o ajudasse a viver.
Muita coisa depende do desejo de viver. Eu não o ouvia. Meu cérebro rodopiava numa confusão de pensamentos. Teria Charles morrido naturalmente? Ou teria Francine feito o trabalho mais cedo? O médico, pelo visto, não suspeitava de coisa alguma.
— E a senhora Endicott? — perguntei. — Ela está bem?
— A pobre senhora parecia estonteada. Olhava fixamente para a frente, creio que por demais entorpecida para reagir. Sua visita a Monterrey foi bem trágica. Eu o lamento bastante. Dei-lhe um sedativo e deixei-a aos cuidados de uma boa mulher. Quer se encarregar dos pormenores do caso?
— Se avisasse a empresa funerária… — sugeri. — Não se preocupe com as despesas. Estou certo da que a senhora Endicott há de querer que o corpo do marido seja enterrado em sua pátria. Terei de reservar os lugares. Isto é um verdadeiro choque. Charles parecia tão bem!
O Dr. Sanchez teve uma gesto de simpatia.
— Tenho um primo que se encarregará de tudo. Se acha…
— Ótimo. Estou certo de que saberá desincumbir-se muito bem da missão. Se quiser fazer o favor de chamá-lo…
— Pois não. Quer que a remoção seja feita já?
— A senhora Endicott deve voltar para junto dos seus o mais breve possível. Precisará de multo conforto moral quando compreender inteiramente sua desgraça.
Meu interlocutor engoliu tudo, mas para mim foi difícil dizer “os seus”. Francine nunca me falara sobre sua família ou de seu passado. Às vezes perguntava a mim mesmo se teria algum parente na França. Nem sabia de que parte da França viera. Charles nunca dissera coisa alguma a esse respeito.
Meu colega levantou-se e, curvando-se profundamente:
— Se puder fazer alguma coisa… — ofereceu-se, e com uma expressão de sinceridade na voz suave.
Agradeci-lhe e subi para o quarto, sentindo-me nervoso e triste pela morte de Charles. Precisava da beleza de Francine diante de mim para estimular aquele momento de triunfo. Precisava senti-la selvagem, em meus braços, para que aquilo valesse a pena. Precisava saber o que ela fizera.
Fiquei sentado no quarto escuro por mais de uma hora, pensando, e, quando ouvi bater na ja1anela que dá para a varanda, julguei que era o vento ou minha imaginação. Mas a batida persistiu. Olhei outra vez e vi Francine com o rosto colado à vidraça, fazendo-me sinal com a mão. Ilusão das sombras, pensei. Mas por um breve momento, tive medo de enfrentar algo de estranho e sobrenatural. Abri a janela e ela entrou. Trazia um longo vestido preto, de mangas flutuantes, e percebi que seu cabelo negro a transformaria numa sombra se alguém a olhasse pelas costas. As ilusões são assim. Não, não era um fantasma; era mesmo Francine, e eu a tomei nos braços sem detença.
Estava agitada, inquieta.
— Paul — sussurrou —, ele está morto, afinal. Reserva já as passagens de avião, querido. Quero sair daqui. Quero partir agora mesmo!
Não houve meio de convencê-la do contrário. Telefonei, finalmente, mas só havia um lugar no avião que partia de madrugada.
— Irei nele, Paul — insistiu.
Reservei a passagem e virei-me, espantado, para ela.
— Podes tomar o avião seguinte e encontrar-me em Memphis — propôs. — Não é essa a primeira parada?
Assenti. Em Memphis, tomaríamos o aparelho de outra companhia. Era o que eu tinha feito na vinda.
— Não será uma longa separação, meu amor.
Achei que estava bem assim. Talvez fosse melhor. Sim, devia ir sozinha. Sua beleza sempre confundia-me as ideias e eu tinha negócios a resolver. Tinha de assistir ao embarque do corpo de Charles. Tinha telegramas a enviar e contas a pagar.
Olhei o relógio.
— Podes fazer as malas em duas horas?
Seus olhos estavam fitos um pouco acima de meu colarinho.
— Já estão feitas, Paul.
— Muito bem. Francine, diz-me uma coisa: não precisaste aplicar a droga em Charles, não é verdade?
— Não… Foi mesmo o coração. Eu nem estava no quarto quando isso aconteceu O doutor nada pôde fazer. O pobre queria morrer.
— Nesse caso, é melhor que me entregues aquela ampola. É perigoso conservá-la.
— Mais tarde. Está guardada na mala. Paul, Precisamos voltar já para Nova York? Não poderíamos viajar? Não podíamos tomar um avião para a América do Sul? Estamos ricos, agora.
Sempre desprezava os pormenores. Teria de comparecer ao enterro do marido. Mas parecia uma garotinha vivendo um conto de fadas. Não me dei ao trabalho de acalmar-lhe o entusiasmo daquele momento.
— É melhor voltares para teu quarto, Francine. A mulher que o doutor deixou contigo deve estar imaginando aonde terias ido a esta hora da noite. Encontrar-te-ei no vestíbulo, daqui a duas horas.
Afastou os olhos de meu pescoço e dirigiu-se para a janela.
— Aquela estúpida! — murmurou.
— Não tem importância, Francine. Podem pensar que saíste a passeio, para acalmar os nervos abalados.
Soltou uma gargalhada argentina. Depois, sumiu dentro da noite, o vestido e os cabelos negros tão identificados com a escuridão que ela quase se tornava invisível.
*
Apanhei a garrafa de uísque na mala e despejei um pouco no copo. O calor abatera-me: as roupas incomodavam-me. Teria de tomar banho e mudá-las. Precisava ficar de pelo resto da noite. Mas o que mais desejava naquele momento era deitar-me e dormir. Talvez Francine me julgasse velho se eu dormisse de vez em quando. Parecia sempre fresca e bela sem nunca dormir.
O uísque auxiliou bastante, embora me fizesse transpirar.
Eu a vi à minha espera no vestíbulo, quando desci. Trocara o vestido por um costume de seda verde, e seu longo cabelo negro estava escondido sob um turbante da mesma cor. Mostrou-se estranhamente silenciosa na viagem para o aeroporto. Senti falta de suas tranças. Já não parecia a mesma.
— Não gosto disto que trazes à cabeça.
— É por causa do vento, Paul. Para não desmanchar o cabelo.
Apertei-lhe a mão.
— Amo-te — sussurrei. — Mas do que a moral, a ética ou a própria vida. Meu amor é assim: forte e desarrazoado.
— Sim, Paul.
Aceitou minha devoção como uma coisa natural, sem compreender até que ponto perdera eu a consciência por sua causa. Mas jamais conheceria a luta da consciência: parecia ter nascido sem ela.
Havia mais nove passageiros. Eram, pois, dez passageiros, ao todo, e três tripulantes Tive tempo de vê-la confortavelmente instalada e assegurar-me que me encontraria com ela em Memphis no dia seguinte.
Fiquei por trás da cerca, vendo o avião levantar voo e cortar os ares, como um pássaro gigante.
Quando voltei ao hotel, havia uma pequena multidão junto à porta do apartamento de Endicott. A polícia ali estava. Abri caminho por entre os curiosos.
A empregada mexicana, deixada pelo médico para vigiar Francine, jazia no leito, com um talho no pescoço. Estava morta, com o horror estampado nos olhos vidrados…
Do burburinho da multidão, consegui entender o seguinte: tinha havido mais dois casos naquela noite. Primeiro, um menino que dormia ao relento junto à colina, atrás da praça do mercado. Não morrera; mas alguma coisa afiada rasgara-lhe a pele. “Parecia um morcego” — contara. “Despertei e vi-me envolvido pela sombra negra de um morcego gigantesco que estivera bebendo meu sangue.”
A outra vítima fora um homem que dormia na lama, atrás de uma cantina donde tinha sido expulso. Tinha a garganta cortada e estava morto Ninguém se preocupara com sua morte até o momento em que o menino contou sua história e a mulher foi encontrada morta no hotel.
A cidade corria perigo. Diziam alguns que os morcegos vampiros tinham deixado a caverna onde viviam, a duzentas milhas de distância. Outros, mais supersticiosos, afirmavam existir uma criatura na cidade que voltara do túmulo para se alimentar do sangue dos vivos.
A policia não quis interrogar-me, de início. Queria investigar cuidadosamente antes de pedir a volta da senhora. Não queriam cometer nenhum erro.
Afastei-me da multidão com o corpo coberto de um suor úmido, a cabeça transformada numa negra carreira de pensamentos tumultuosos.
Tranquei-me no meu quarto com a garrafa de uísque. O vestido! O vestido negro que a tornava tão invisível! Nunca a vira usar aquela cor.
Tolice! Estava deixando que os supersticiosos mexicanos me impressionassem. No entanto, ela estivera fora do hotel. Talvez não quisesse que a empregada mencionasse sua ausência. Talvez…
Bebi em grandes goles, horrorizado. Francine, lambendo sangue ainda quente? Por Deus, não! Era impossível. Não existem vampiros humanos. Bebi até perder a consciência.
*
Naquela tarde, multo depois do meio-dia, o médico velo bater à porta. Tonto, com os nervos tensos, saltei da cama e tomei um gole da garrafa para poder atravessar o quarto.
Ele ali estava, parecendo um corvo melífluo, todo pesaroso outra vez.
— Señor, o jornal. Já viu?
Entrou e desdobrou a folha diante de mim.
— O avião da senhora Endicott. Pobre senhora! A desgraça nunca vem só.
Arranquei-lhe o jornal das mãos. Não havia dúvida. O nevoeiro… a montanha… Os destroças espalharam-se por várias centenas de metros. Todos mortos: dez passageiros e três tripulantes. O aparelho incendiara-se, tornando difícil a identificação.
Estremeci. O Dr. Sanchez resmungou qualquer coisa sobre o destino, o momento fatal que todos temos de enfrentar.
— Saia — disse-lhe com voz pastosa. — Saia, por favor.
Saiu, dizendo compreender.
Mas não compreendia. Eu estava contente que Francine tivesse ido naquele avião! As autoridades daqui Já não fariam perguntas. Eu não precisaria ser torturado pela lembrança de seu vestido negro, da maneira pela qual seus olhos me olharam, e de como seus dedos me seguravam como garras. Não seria invado por seus beijos a mais nenhuma ideia de crime, por aqueles beijos que me tiravam as forças, que me penetravam como um veneno e me tornavam seu escravo.
Não precisava mais saber, com certeza, o que ela fizera. Já não precisava buscar coragem para manter-me afastado dela. Já não existia. Subitamente, senti-me aliviado, como que livre de um feitiço que fizera de mim outro homem. Voltaria ao meu trabalho e algum dia havia de provar que a Associação Médica se enganara a meu respeito.
Tomei um banho, barbeei-me, vesti-me e arrumei a mala. O corpo de Endicott seria embarcado no trem para Nova York. Ali, seus sócios e procuradores se ocupariam dele.
Eu estava livre. Até minha consciência estava livre. Planejara dois crimes em minha loucura por Francine, mas esta usara seus métodos pertinentes em Walter. Charles, pelo que todos sabiam, tivera morte natural. Meu único pecado, a ampola, jazia entre os destroços do avião.
Telefonei, reservando passagem. Devia partir um aparelho às seis horas. Quereria o señor voar depois?…
O señor queria voar. Se alguma coisa tem de acontecer, até no atravessar da rua acontece.
Fui à portaria e paguei as contas com cheques meus. Cobraria dos herdeiros de Endicott… talvez. Se não cobrasse, não fazia mal. Eu devia a Charles alguma coisa.
Fui à sula de jantar e vi-me sorrindo para a copeira. Era bem bonita. Bom sinal. Nunca mais reparara em outra mulher desde que Francine penetrou em meu sangue.
Tinha terminado a sopa quando o empregado veio chamar-me.
— Telefone, señor. Pode atender na primeira cabine. Interurbano.
A voz era clara e alegre, como se nada tivesse acontecido.
— Paul, querido! Precisava falar contigo. Estou ansiosa, aqui, em Memphis. Chegarás breve, não é?
— Francine! Teu avião, Francine!
— Que aconteceu, Paul? Que estás sentindo?
— Teu avião destroçou-se! Era direto. Tu estavas nele. Vi quando disseste adeus de teu lugar. Não podias ter saltado. Ele explodiu, incendiou-se. Todos os passageiros foram mortos!
— Estou com voz de além-túmulo, Paul?
Eu mal podia arrancar as palavras da boca seca.
— O desastre, Francine! Tu estavas no desastre. Tinhas que estar!
— Não fui ferida — replicou, como se isso explicasse tudo.
Bom Deus, pensei, deve ser verdade aquilo que eu tinha medo de admitir! Minha razão recusa-se a acreditar. Mas dizem que eles nunca morrem… nunca morrem…
— Paul! Ainda estás aí? Paul, responde-me!
— Sim…
— Estou com tantas saudades tuas, Paul! Virás no próximo avião? Sinto-me tão só!
— Sim — murmurei, desanimado. Eu vou, Francine.
*
Saí cambaleando, para a rua, com o Sol da tarde queimando-me o cérebro.
Eles não sangram; não se pode matá-los; permanecem sempre jovens.
Todas as velhas superstições ficaram ressoando em meu cérebro, expulsando-me a razão. Comecei a correr como se, afastando-me do hotel, deixasse de ouvir sua voz ao telefone.
Parei, arquejante, e encostei-me à parede de um edifício. Não podia fugir dela. Nem podia contar o que sabia a seu respeito. Ninguém me acreditaria. Como eu também não acreditara até então.
Continuei a andar, sabendo que teria de voltar ao hotel para apanhar a bagagem, e tomar aquele avião para Memphis. Tinha de vê-la novamente, para ter certeza.
Mas parei numa loja primeiro; comprei um pequeno revólver, depois dei uma ordem ao homem sentado a um banco, nos fundos da loja.
Ali, esperei, trêmulo e com frio, apesar do calor, até que ele terminasse. Parecia ter passado uma eternidade antes que voltasse com um embrulhinho.
— Aqui está, señor. É bala de prata.
Olhou-me, como se eu estivesse louco. Talvez esteja. Só o saberei quando chegar a Memphis, depois que a tornar a ver e sentir suas garras em minha carne. Talvez haja uma explicação lógica. Mas se essas coisas existem, e se ela alguma vez vier para mim durante a noite, e pousar seus dentes em meu pescoço, estarei preparado Os vampiros não passam de uma velha superstição: e, de acordo com esta superação, é preciso uma bala de prata para matá-los. Sim, estarei preparado.
Fonte: “Policial em Revista”/RJ, edição de fevereiro de 1949.
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