O ELIXIR DA LONGA VIDA - Conto Clássico de Terror - Honoré de Balzac


O ELIXIR DA LONGA VIDA
Honoré de Balzac
(1799 – 1850)

Num suntuoso palácio de Ferrara[1], certa noite de inverno, D. Juan Belvidero recebia festivamente um príncipe da casa de Este. Nessa época, uma tal recepção constituía espetáculo maravilhoso que só os tesouros reais ou o fausto dum grande senhor poderiam proporcionar.

Sentados à volta de rica mesa iluminada por velas perfumadas, sete mulheres alegres trocavam frases ligeiras, num ambiente de admiráveis obras-primas de decoração, com os mármores brancos sobressaindo de paredes de estuque vermelho, a contrastarem com preciosas tapeçarias turcas. Vestidas de cetins e resplandecendo ouro e pedrarias que fulguravam menos que os seus olhos, todas falavam de paixões intensas e diversas como os seus tipos de beleza. Só não diferiam nas palavras, nem nas ideias, a que o ar, um olhar, certos gestos prestavam um comentário libertino,sensual, melancólico ou zombeteiro.

Uma afirmava: “Os meus encantos sabem aquecer o coração gelado dos homens já idosos”.

E outra: “Gosto de estar recostada em coxins, para pensar, com embriaguez, nos meus adoradores”. Uma terceira, noviça nesta espécie de banquetes, sentia-se inclinada a corar: “No fundo do meu coração, dizia, sinto um remorso. Sou católica e receio o Inferno, mas amo tanto, oh! tanto!, que poderei sacrificar pelo meu amor a Eternidade!”.

A quarta, esvaziando uma taça de vinho de Chio, exclamava: “Viva a alegria! Eu encarno uma existência nova em cada dia que passa. Esquecida do passado, ébria ainda dos meus sucessos quotidianos, todas as noites esgoto uma vida de felicidade, trasbordante de amor”.

Aquela que estava sentada junto de Belvidero fixava-o com olhar ardente. Conservava-se silenciosa e pensava: “Se o meu amante me abandonasse, nem por isso me entregaria a excessos para o matar!” Logo sorriu, mas a sua mão convulsa destruía uma caixa de amêndoas, em ouro, maravilhosamente cinzelada.

— Quando  será  Grão-Duque? —perguntou a sexta mulher ao Príncipe, com expressão de alegria cruel nos lábios e um brilho de bacante nos olhos.

— E tu, dize-me, quando morrerá o teu pai? — indagou a sétima, lançando o seu raminho de flores a Belvidero, com um delicioso gesto traquinas. Era uma rapariga de ar inocente, habituada a divertir-se com as coisas sagradas.

— Ah! Não me falem disso! — exclamou o jovem e belo D. Juan. — Há neste mundo um único pai eterno, e a desgraça quer que seja o meu!

As sete cortesãs de Ferrara, os amigos de Belvidero e o próprio Príncipe soltaram uma exclamação de horror.

Duzentos anos depois, no tempo de Luís XV, as pessoas de bom tom ter-se-iam rido daquele dito de espírito. Mas, talvez que as almas conservassem ainda, no começo dum festim, a sua lucidez. Apesar do clarão das velas, do fremir das paixões, do aspecto dos vasos de ouro e prata, dos vapores do álcool e da presença de encantadoras mulheres, subsistiria ainda no fundo dos corações um pouco do respeito pelos sentimentos humanos e as coisas divinas, que luta até a orgia o afogar nas últimas gotas dum vinho espumoso. No entanto, já as flores se estiolavam, os olhos desumanizavam-se e a embriaguez chegava, segundo a expressão de Rabelais, à ponta dos pés. E neste momento de silêncio abriu-se uma porta e, como no banquete de Baltazar, o Diabo surgiu sob a aparência de velho criado, de cabeça encanecida, o andar vacilante e as sobrancelhas contraídas. Fez a sua entrada com ar triste e com o olhar murchou as grinaldas, amorteceu o brilho das pratas douradas, o viço das pirâmides de frutos, o esplendor da festa, o vermelho dos rostos e a cor dos coxins amarfanhados pelos níveos braços das mulheres; lançou, enfim, a tristeza no estonteamento, proferindo em voz cava estas palavras sombrias:

— Senhor, vosso pai está a morrer.

D. Juan ergueu-se, lançando aos seus convidados um gesto que poderia traduzir-se por: “Desculpem-me, isto não sucede todos os dias”.

A morte dum pai não surpreende os jovens entre os esplendores da vida ou as loucas expansões dum festim. É tão brusca nos seus caprichos como uma bacante nos seus desdéns, embora, mais fiel do que estas, nunca iluda ninguém.

No momento em que D. Juan fechou a porta da sala do banquete e caminhou por uma extensa galeria, tão álgida como escura, esforçou-se por tomar uma atitude hipócrita porque, pensando na sua dignidade de filho, tinha posto de lado a alegria juntamente com o guardanapo. A noite estava lôbrega. O discreto serviçal que conduzia D. Juan ao aposento paterno iluminava mal o seu amo, de maneira que a Morte — ajudada pelo frio, o silêncio e a obscuridade — pôde suscitar na sua alma, talvez por uma reação da embriaguez, algumas reflexões graves. Assim interrogou o seu passado e ficou cabisbaixo como um acusado caminhando para o tribunal. Bartolomeu Belvidero, pai de D. Juan, era um nonagenário que passara a maior parte da vida em grandes transações comerciais. Tendo percorrido as mais frequentes vezes as regiões enfeitiçadas do Oriente, adquirira avultadas riquezas e, segundo dizia, conhecimentos mais preciosos que o ouro e os diamantes, a que já então nenhuma importância ligava. “Prefiro um dente a um rubi e o poder ao saber”, declarava sorrindo. Este excelente pai gostava de ouvir D. Juan contar-lhe as estúrdias da juventude e dizia, com ar chocarreiro: “Meu querido filho, faz todas as asneiras que te possam divertir”. Devia ser o único velho que sentia prazer diante dum jovem, pois iludia assim a sua velhice com a contemplação de uma vida tão radiosa como era a de D. Juan. Aos sessenta anos Belvidero apaixonara-se por um anjo de beleza e de inocência. O filho fora o único fruto desse tardio e breve amor. Havia quinze anos que o velho chorava a morte da sua querida Joana. A numerosa criadagem e o filho atribuíam a esta dor os hábitos singulares que o ancião contraíra. Refugiado na álea menos confortável do palácio, de onde raramente saía, o próprio D. Juan não entrava ali sem a sua prévia autorização. Quando este estranho anacoreta passeava pelo palácio ou nas ruas de Ferrara, parecia procurar qualquer coisa que lhe faltava, caminhando abstrato, hesitante, meditabundo, como que em luta com uma ideia ou uma recordação. Enquanto o filho dava festas e opalácio ressoava com as expansões da sua alegria, enquanto os cavalos escarvavam nas cocheiras ou os pajens discutiam jogando os dados pelas escadas, Bartolomeu Belvidero comia diariamente sete onças de pão e só bebia água. Se consentia em servir-se de um prato de galinha era para dar os ossos a um cão de caça preto, seu fiel companheiro. Não o incomodava o ruído. Quando doente, se o som duma corneta ou o latido dos cães o estremunhavam, contentava-se em dizer: “Ah! É D. Juan que volta!”. Jamais existiu um pai tão compreensivo e indulgente. Por isso o jovem Belvidero, habituado a tratá-lo sem cerimônia, tinha todos os defeitos das pessoas mimadas, vivendo com seu pai como uma cortesã caprichosa com amante velho, conseguindo o perdão de qualquer impertinência com um sorriso, vendendo o seu bom humor e deixando-se amar.

Reconstituindo no pensamento o quadro dos seus anos de mocidade, D. Juan compreendeu que lhe seria difícil descobrir uma razão de queixa do autor dos seus dias.

Agora, ao atravessar a galeria que o levava ao quarto de Bartolomeu moribundo, sentiu despertar

um remorso no fundo do coração e inclinava-se a perdoar-lhe ter vivido tanto tempo. Nutria sentimentos de piedade filial, como um ladrão que preza a honestidade ante a possível posse de um milhão bem roubado. Em breve entrou nas desconfortáveis e enormes salas que compunham os aposentos do pai. Depois de experimentar os efeitos de uma atmosfera úmida, em que o cheiro a mofo se exalava das velhas tapeçarias e dos armários cobertos de pó, encontrou-se no quarto do velho, diante do seu leito nauseabundo, junto da lareira apagada. O candeeiro, disposto sobre a mesa gótica, projetava, a intervalos desiguais, manchas de luz mais ou menos intensas sobre o leito e mostrava o rosto do ancião sob aspectos que variavam.

O frio entrava pelas frinchas das janelas mal fechadas e a neve, fustigando as vidraças, produzia um ruído surdo. Esta cena contrastava tão chocantemente com a que D. Juan acabava de abandonar, que ele não pôde deixar de estremecer. Percorreu-o um arrepio quando, ao aproximar-se da cama, um clarão do candeeiro, provocado por uma lufada do vento, iluminou a cabeça do velho. Tinhaas feições descompostas e a pele, colada aos ossos, apresentava tons esverdeados, que a brancura da almofada tornava ainda mais horríveis.

Contraída pela dor, a boca entreaberta e desdentada deixava escapar uns gemidos lúgubres, que pareciam prolongados pelos uivos da tempestade. Não obstante estes sinais de destruição, dimanava daquela cabeça uma força sem limites. Dir-se-ia um espírito superior em luta com a Morte. Os olhos encovados pela enfermidade conservavam uma fixidez singular. Parecia que Bartolomeu procurava abater com o seu olhar um inimigo postado junto do leito. A sua mirada, fixa e gélida, tornava-se tanto mais terrível porquanto a cabeça se mantinha imóvel como os crânios lívidos que se veem nas mesas de anatomia. O corpo, desenhado por inteiro pela cobertura da cama, denunciava a mesma fixidez nos membros. Tudo morrera nele, menos os olhos. O ralo que se escapa da sua boca tinha qualquer coisa de mecânico.

D. Juan procurou vencer um retraimento para se aproximar do moribundo, ostentando ainda ao peito o raminho de flores oferecido pela cortesã, trazendo assim para junto da morte de seu pai os perfumes da festa e o cheiro do vinho.

—Divertias-te? — murmurou o velho ao deparar com ele.

Nesse instante a voz pura, suave da cantora que deliciava os convivas, acompanhada pelos acordes dum violino, fez esquecer os uivos do temporal ressoando no quarto fúnebre. D. Juan desejaria bem que não se tivesse feito ouvir ali tão crua afirmativa à pergunta do moribundo.

Este prosseguiu:

— Não te quero mal por isso, meu filho...

Tais palavras, repassadas de doçura, feriram D. Juan que, no íntimo, não perdoou essa pungente bondade paternal:

— Que remorso, pai! — suspirou hipocritamente.

— Pobre Juanin — insistiu o moribundo com voz lúgubre. — Fui sempre tão indulgente para ti que não poderás desejar a minha morte.

— Oh! — exclamou D. Juan. — Se fosse possível restituir-lhe a vida, daria para isso uma parte da minha! “Estas coisas podem sempre dizer- se”, pensou discretamente. “Parece que estou a prometer o mundo à minha amante”.

Mal tinha completado este pensamento o cão ladrou. Aquele ladrido cheio de perspicácia fez estremecer D. Juan. Afigurou-se-lhe ter sido compreendido pelo animal.

— Sabia muito bem, meu filho, que podia contar contigo – continuou Bartolomeu. Viverei, pois, e ficarás satisfeito. Viverei, mas sem roubar um só dos dias que te pertencem.

“Já delira!”, comentou para si o filho.

Depois acrescentou, em voz alta:

— Sim, querido pai, viverá pelo menos tanto como eu, porque a sua imagem nunca se apagará no meu coração.

—Não se trata dessa espécie de vida — replicou o velho, reunindo as poucas forças para se erguer um pouco, pois sentia-se abalado por umadessas suspeitas que só despertam sob o travesseiro dos agonizantes.

— Escuta, Juanin — prosseguiu, enfraquecido por aquele último esforço —, desejo tanto morrer como tu privares-te de amantes, de vinho, de cavalos, de cães, enfim de dinheiro...

“Assim o creio”, conjecturou ainda D. Juan, ajoelhando à cabeceira do leito e beijando uma das mãos daquele quase cadáver:

— Pai, querido pai — disse, temos de nos submeter à vontade de Deus.

  Deus sou eu! — resmungou o velho.

— Não blasfeme! — Suplicou o jovem, deparando no pai com uma expressão de ameaça. — Tenha cuidado, porque recebeu já a extrema-unção, e eu nunca me resignaria vendo-o morrer em pecado!

— Queres ou não escutar-me?! — Vociferou o agonizante, rangendo os maxilares. D. Juan calou-se. Caiu no quarto um silêncio sinistro. Por entre os silvos surdos do granizo, fora os acordes doviolino e o canto melodioso ouviam-se novamente, tênues como a luz dum dia que desponta. O ancião sorriu:

— Agradeço-te teres convidado cantoras e músicos. festa, mulheres jovens e belas, brancas e de cabelos negros, os melhores prazeres da vida... Dize-lhes que fiquem, porque eu vou renascer.

“É já o auge do delírio!”, pensou o filho,quando Bartolomeu lhe disse de súbito:

— Descobri o meio de ressuscitar. Olha: Procura na gaveta da mesa; poderás abri-la carregando no botão que está oculto pelo entalhe que figura um grifo.

— Pronto, meu pai.

— Bem. Tira de lá o frasquinho de cristal.

— Está aqui...

— Gastei vinte anos... — ia o moribundo a contar, mas sentiu que o seu fim chegava e esforçou- se por acrescentar:

— Logo que eu tenha soltado o último suspiro, fricciona-me todo o corpo com esse líquido, e eu ressuscitarei...

— Há muito pouco — notou D. Juan. Entretanto, Bartolomeu, se já não podia falar,tinha ainda a faculdade de ouvir e ver. As palavras do filho fizeram-lhe voltar a cabeça num movimento brusco. Ficou com o pescoço torcido como o duma estátua de mármore condenada pelo escultor a olhar eternamente de lado. As suas pupilas dilatadas tinham tomado uma imobilidade odiosa. Estava morto.

Expirara ao perder a sua última e única ilusão. Ao procurar a sua derradeira salvação no coração do filho, encontrara neste um túmulo mais profundo do que o preparado pelos homens para jazida dos seus mortos. Os cabelos eriçaram de pavor, o seu olhar pareceu exprimir ainda alguma coisa.

Era já como um pai que se erguia do sepulcro para suplicar vingança a Deus.

— Pronto! O homenzinho acabou... — cuidou D. Juan.

Na ânsia de observar o misterioso frasco à luz do candeeiro, à semelhança de um apreciador que examina a sua garrafa no fim do repasto, olhava perplexamente para o pai e o frasco. A seu lado, o cão de caça observava da mesma maneira, ora o frasco ora o dono morto.

O candeeiro projetava clarões movediços. O silêncio tornara-se mais solene.

O violino e a voz da cantora tinham emudecido. O jovem estremeceu, parecendo-lhe que o defunto se mexera. Intimidado pela fixidez acusadora dos seus olhos, foi cerrá-los como teria fechado uma persiana batida pela rajada em noite invernosa.

Conservou-se de pé, imóvel, perdido num caos de pensamentos. De súbito um ruído seco, lembrando o duma mola emperrada, cortou a mudez.

Surpreendido, D. Juan quase deixou cair o frasco. Inundou-o um suor mais frio do que aço de punhal. O galo de madeira pintada do relógio familiar surgiu e cantou três vezes. Era daqueles maquinismos engenhosos, de que se serviam os sábios da época para despertarem à hora fixada para as suas lucubrações. A aurora avermelhava já as janelas. D. Juan tinha passado dez horas a refletir.

O velho relógio era mais fiel do que ele ao cumprimento dos seus deveres para com Bartolomeu. Aquele mecanismo compunha-se de corda, alavanca e rodas dentadas, enquanto ele tinha o músculo peculiar aos homens, que se chama coração. Para não se arriscar a perder o precioso líquido, D. Juan voltou a guardá-lo, ceticamente, na gaveta da mesinha gótica. Nesse instante ouviu nas galerias do palácio um tumulto confuso. Eram vozes indistintas, risos abafados, todo o rumor dum grupo alegre procurando conter-se.

Finalmente, a porta abriu-se e o Príncipe, com os restantes convidados aparecerem com a desordem estonteada dos dançarinos surpreendidos pela claridade da manhã, quando o sol luta ainda com apálida chama das velas. Vinham para dar ao jovem herdeiro as condolências da etiqueta.
— Terá o nosso D. Juan tomado a peito esta morte? — perguntou o Príncipe ao ouvido da Brambilla.

— Talvez — respondeu ela, porque o pai era um homem extremamente bondoso.

As meditações noturnas de D. Juan tinham-lhe gravado no rosto uma tal expressão que o grupo se sentiu perplexo. Os homens permaneceram hirtos.

As mulheres, com os lábios ressequidos pelo álcool, as faces maceradas pelos beijos, ajoelharam e rezaram. O órfão não pôde deixar de estremecer à vista das alegrias contidas, dos risos desfeitos, dos cantos sumidos, da juventude apagada, da beleza desvanecida, de tudo aquilo que personificava o melhor da vida perante a Morte. Porém naquela amável Itália do tempo, o Pecado e a Religião, conjugavam-se de tal maneira que se confundiam.

O Príncipe apertou afetuosamente a mão a D. Juan e todos os rostos esboçaram simultaneamente uma idêntica expressão, meio triste, meio indiferente.

Depois toda esta fantasmagoria protocolar desapareceu, deixando mais vazio o aposento mortuário. Era bem a imagem da Vida.

Ao descer a escadaria, o Príncipe confiou a Rivabarela:

— Quem teria julgado assim o nosso D. Juan, um fanfarrão da impiedade?... Afinal, adorava o pai!

— Reparou no cão?... — indagou Brambilla.

— Aí temos o nosso amigo fabulosamente rico — sugeriu, suspirando, a Bianco Cavatolino.

— Que importa...? — desdenhou a orgulhosa Veronese, que destruíra, com mão nervosa a dourada caixinha de amêndoas.

— Não te importo...? — clamou o Duque. Pois com os seus escudos será tanto um príncipe como eu!

A princípio D. Juan, cedendo a mil pensamentos, hesitou entre vários partidos a tomar. Depois de ter avaliado os tesouros acumulados porseu pai, voltou, de noite, para o quarto fúnebre, a alma esmagada sob feroz egoísmo. Encontrou todos os serviçais ocupados em ordenar os paramentos do catafalco em que o falecido senhor seria exposto no dia seguinte, ao centro duma suntuosa câmara ardente — espetáculo de grande curiosidade, que toda a Ferrara viria admirar.

A um sinal de D. Juan, os criados detiveram-se interditos e trêmulos.

— Deixem-me só — ordenou com a voz alterada. Continuarão depois de eu sair.

Quando os passos do velho Mordomo, que foi o último a retirar-se, deixaram de se ouvir sobre as lajes, D. Juan fechou precipitadamente a porta e disse consigo:

— Experimentemos...

O corpo de Bartolomeu fora deitado sobre uma longa mesa. Para ocultarem o odioso espetáculo de um cadáver a que extrema decrepitude e magreza davam o aspecto de simples esqueleto, os embalsamadores tinham envolvido num lençol todoo corpo, exceto a cabeça. Esta espécie de múmia jazia no meio da dependência, com o sudário a desenhar- lhe vagamente as formar esguias e agudas. No rosto já apareciam largas manchas violáceas, que indicavam a necessidade de se apressar o embalsamamento. Apesar de escudado pelo seu ceticismo, D. Juan hesitou em desrolhar o frasquinho de cristal. Tremia tanto quando se aproximou da cabeça do defunto que se sentiu constrangido a aguardar um momento. Porém, este jovem, bem cedo corrompido completamente pelos costumes duma corte dissoluta, foi encorajado por uma ideia digna do famoso Duque de Albin, ao mesmo tempo que era aguilhoado pela curiosidade. Dir-se-ia que o próprio Diabo lhe segredava estas palavras, que lhe ecoavam no coração: “Umedece um dos olhos”. Pegou num pano e, depois de o embeber avaramente no precioso líquido, passou-o ao de leve sobre a pálpebra direita do cadáver. O olho abriu-se...

— Ah! — exclamou D. Juan, enclavinhando os dedos no frasco, tal como apertamos, em sonhos, a haste de que nos suspendemos num precipício.

Via aquele olho pleno de vida, como olho de criança na cabeça dum morto, a luz cintilando no seu humor líquido juvenil, apenas velada por belos cílios negros, trazendo à memória essas singulares claridades que o viajante avista nos campos desertos, em noites de inverno. Aquele olho resplandecia, parecia querer precipitar-se para D. Juan, pensava, acusava, condenava, ameaçava, vociferava, mordia. Todas as paixões humanas se agitavam nele, as súplicas mais ternas, a cólera dos reis, o amor de uma donzela pedindo misericórdia aos seus algozes. Tinha, por fim, a mirada profunda que um homem lança aos outros do último degrau para o cadafalso. Havia tanta vivacidade naquele fragmento de vida que D. Juan recuou, apavorado. Passeou pelo aposento sem ousar fixar aquele olho, que ele revia no chão, nas tapeçarias, por toda a parte.

Toda a dependência estava semeada de pontos luminosos, fulgurantes de vida, de inteligência. E todos esses pontos que eram outros tantos olhos, perseguiam, cercavam D. Juan.

“Será capaz de viver mil anos”, calculou ele incontidamente, ao voltar junto do pai, levado por uma atração diabólica a contemplar aquela centelha de luz vivente.

De súbito, a pálpebra fechou-se e voltou a abrir-se ágil, como a de uma mulher que concede. Se uma voz lhe tivesse dito: “Sim”, D. Juan não se sentiria mais aterrado.

— Que fazer? — pensou.

Ainda teve coragem para tentar cerrar aquela pálpebra, mas os seus esforços foram inúteis.

— Será um parricídio esmagá-lo?—perguntou-se diante do olho.

— Sim — fez-lhe este compreender com uma piscadela irônica.

D. Juan debruçou-se para o esmagar. Uma grossa lágrima rolou pelas faces encovadas do cadáver e caiu sobre a mão do filho.

A lágrima queimou-o. Sentou-se, fatigado por uma luta que lhe lembrava a de Jacó com o anjo.

Por fim levantou-se, murmurando:

— Contanto que não haja sangue...

Depois, procurando a todo o transe não se acovardar, esmagou o olho, servindo-se de um pano e voltando o rosto. Um gemido inesperado, angustioso, surpreendeu-o. Era o cão que morria uivando.

— Conheceria o segredo do velho? — indagou-se, deitando uma olhadela ao fiel animal.

D. Juan Belvidero passou depois aos olhos do mundo por um filho piedoso.

Mandou construir um monumento de mármore do mais branco sobre o túmulo de seu pai, confiando as figuras que o ornariam aos mais célebres artistas da época. se sentiu perfeitamente tranquilo no dia em que a estátua paterna, ajoelhada aos pés da Religião, impôs o seu peso enorme sobre a sepultura em que enterrou o único remorso que ainda poderia sobressaltar-lhe o coração nos momentos de maior lassidão.

Depois de feito o inventário das riquezas acumuladas pelo velho orientalista, tornou-se avarento. Acaso não tinha ele de garantir duas vidas com o seu dinheiro? O olhar tornou-se-lhe perscrutador, alongando-o pela sociedade humana e melhor compreendendo o mundo por avistá-lo através de um túmulo. Analisou os homens e os seus atos para não se importar, de uma vez para sempre, com o passado representado pela História, o presente, encarnado pelas leis e o futuro, desvendado pelas religiões. Tomou o espírito e a matéria, misturou-os num cadinho e, nada aí encontrando que valesse a pena, tornou-se, autenticamente, D. Juan.

No segredo das ilusões humanas, jovem e belo, lançou-se para a vida, desprezando o mundo para melhor dele se apoderar. Assim, a sua felicidade não poderia ser a ventura burguesa que se contenta com cozido trivial, uma confortante botija de água quente na cama, no inverno, um candeeiro para a noite e umas pantufas novas em cada trimestre. Apoderou-se da existência como um símio que apanha uma noz e, sem perda de tempo, trata espertamente de desembaraçar o fruto da casca inútil, para lhe saborear a polpa. A poesia e os sublimes arroubos das paixões deixaram de o interessar.

Procurou evitar o erro de certos homens poderosos que, supondo que as almas ingênuas creem nas almas fortes, das ideias efêmeras, aconselham a trocar os altos pensamentos do que há de vir pelas pequeninas moedas de nossos ideais transitórios. Poderia bem caminhar, como eles, com os pés sobre a terra e a cabeça a tocar os céus: contudo, preferia refestelar-se e devorar de beijos os lábios duma mulher meiga, fresca e perfumada, já que, semelhante à Morte, extinguindo impudentemente tudo por onde passava, exigindo só o amor que possuía, um amor à oriental, que lhe proporcionasse apenas amores longos e fáceis. Amando na Mulher a fêmea, adotou a ironia como a atitude própria da sua alma. Quando nos seus braços as amantes subiam ao paraíso, perdidas num êxtase de embriaguez, acompanhava-as, meio grave, meio expansivo, tão sincero como um estudante alemão. Dizia sempre “Eu”, enquanto a louca apaixonada dizia “Nós”. Sabia admiravelmente deixar-se cativar por uma mulher. Tinha sempre o domínio suficiente para a fazer acreditar que tremia como o estudantinho do liceu que segreda à primeirarapariga com quem volteia num baile: “Gosta de dançar?”.

Mas não sabia menos utilizar uma espada dura e abater comendadores. Ocultava-se zombaria na sua simplicidade e riso nas suas lágrimas, chorando tão bem como a esposa que diz ao marido: “Dá-me uma carruagem ou morrerei de tísica!”. Para o negociante, o mundo é um acumulado de mercadorias e um bom montante de notas de banco; para a maior parte dos jovens, é uma mulher; para algumas mulheres, um homem; para certos espíritos, um salão, um meio de intrigas, um bairro ou uma cidade inteira. ParaD. Juan o mundo era ele! Modelo de graça e de brandura, espírito sedutor, soube sempre levar a água ao seu moinho. Simulando deixar-se conduzir, nunca ia além do limite onde queria ser levado. Quanto mais observava, mais ia duvidando. Ao analisar os homens, descobriu que, muitas vezes, a coragem não passava de temeridade, e a prudência, de covardia; a delicadeza era idiotice e a generosidade, astúcia; a justiça, um crime, e a probidade, uma convenção. Descobriu, ainda, que, por um singular destino, as pessoas verdadeiramente honestas, delicadas, justas, prudentes e corajosas não mereciam a menor consideração social.

— Que cruel ironia! dizia de si para consigo.

— Não, é certamente, obra de Deus.

Então, renunciando a um mundo melhor, nunca mais se descobriu ao ouvir pronunciar nomes sagrados e considerou as imagens das igrejas como simples obras de arte. Assim, conhecendo o mecanismo das sociedades humanas, procurava não ferir demasiado os preconceitos, por não se sentir tão forte como os carrascos, mas iludia as leis sociais com sutileza e espírito. Foi a encarnação de D. Juan, de Molière; do Fausto, de Goethe; do Manfred, de Byron e do Melmoth, de Maturin. Grandes figuras criadas pelos maiores gênios europeus, cantadas em acordes de Mozart e, talvez, um dia, em árias de Rossini[2].

Entes terríveis, que o príncipe do Mal eterniza e de que se encontram alguns exemplares através dos séculos, quer quando tais personagens entram em negociações com os homens, encarnadas em Mirabeau, quer se contentem em agir em silêncio, como Bonaparte, ou em abraçar o mundo numa ironia, como Rabelais. Mas o Gênio, ainda mais profundo, de D. Juan Belvidero, resumiu, com antecipação, todas essas figuras criadas pela genialidade. A sua foi uma perpétua zombaria, em que envolveu os homens, as coisas, as instituições e as ideias.

Tendo conversado em boa familiaridade, durante meia hora, com o papa Júlio II sobre a Eternidade, ao concluir, disse-lhe, sorrindo:

  Se é em absoluto necessário escolher, prefiro crer em Deus a acreditar no diabo; o poder, aliado à bondade, pode proporcionar-nos melhor refúgio do que aliado à potência do Mal.

—Sim — concordou o Pontífice —, mas o Senhor quer que façamos penitência neste mundo...

— Pensais então sempre nas vossas indulgências? — tornou Belvidero. — Pois bem, eu tenho reservada, para me arrepender da primeira vida, uma outra completa existência...

— Ah! Se compreendes assim a velhice —insistiu Júlio II[3]  —, arrisca-te a ser canonizado...

D. João sorriu, a terminar:

  Depois da vossa elevação ao Papado tudo é possível.

E foram ver os operários ocupados na construção da imensa basílica consagrada a São Pedro.

— O Apóstolo genial que constituiu o nosso duplo poder — acrescentou o Papa a Belvidero — merece este monumento. Mas, por vezes, durante a noite, penso que um novo dilúvio apagará tudo isto e será forçoso recomeçar.

D. Juan e o Pontífice riram, compreendendo- se. Um tolo teria ido, no dia seguinte, divertir-se com Júlio II em casa de Rafael ou na deliciosa Vila Madama, mas Belvidero foi vê-lo oficiar pontificalmente, para se convencer das suas dúvidas. Num banquete, Della Rovere teria podido desmentir-se e comentar o Apocalipse. Mas esta lenda não foi criada para fornecer elementos àqueles que desejem escrever memórias sobre a biografia de D. Juan. Destina-se a provar às pessoas honestas que Belvidero não morreu no seu duelo com uma figura de pedra, como querem fazer-nos acreditar alguns biógrafos.

Quando atingiu os sessenta anos, Belvidero fixou-se em Espanha. Aí, mais avançado em idade, desposou uma jovem e encantadora andaluza. Por cálculo, não foi bom esposo nem bom pai. Tinha concluído que nunca seremos tão ternamente amados como pelas mulheres a quem damos menos atenções.

Dona Elvira, santamente criada por uma velha tia, nos confins da Andaluzia, a algumas léguas de Sanlúcar[4], era toda dedicação e graça. D. Juan pressentiu que seria mulher para lutar durante muito tempo contra uma paixão antes de lhe ceder. Assim esperou poder conservá-la virtuosa até à sua morte. Foi um divertimento arriscado, uma como que partida de xadrez que reservou para jogar quando já fosse velho. Decidiu, pois, subordinar todos os seus atos ao êxito da comédia que deveria ter o desfecho no seu leito de morte. Assim, a sua fortuna permaneceu enterrada no palácio de Ferrara, onde ia raramente. O resto dos seus bens empregou- os em viajar, no prolongamento da sua vida — artimanha esta que deveria ter ocorrido também a seu pai. Porém, tal astúcia não foi para ele de grande proveito. O moço Filipe Belvidero, seu filho, saiu-lhe um espanhol tão conscenciosamente religioso quanto o pai era ímpio. Isto, talvez, em obediência ao provérbio: pai avarento, filho pródigo.

O abade de Sanlúcar foi escolhido para diretor espiritual da Duquesa de Belvidero e de Filipe. Era este eclesiástico um santo homem, de admirável estatura, bem proporcionado, belos olhos e rosto à Tibério, fatigado pelos jejuns, empalidecido pelas macerações e dia a dia tentado, como são os solitários. O já então idoso D. Juan esperava talvez poder ainda matar um anacoreta antes de terminar o primeiro prazo da sua vida. Mas, ou porque o abade fosse de temperamento tão forte como ele, ou por que Dona Elvira possuísse menos ardência ou mais prudência do que a Espanha habitualmente concede às mulheres, Belvidero viu-se constrangido a passar os seus dias calmo como um velho reitor de aldeia, sem escândalos caseiros. Por vezes, sentia prazer em apanhar a mulher ou o filho em falta para com os seus deveres religiosos e ordenava-lhes imperiosamente que cumprissem as suas obrigações de fiéis da Santa Sé Apostólica. Finalmente, raro era tão feliz como quando ouvia o afável cura de Sanlúcar, Dona Elvira e Filipe entretidos em discutir um caso de consciência. Entretanto, apesar dos cuidados extremos que dedicava à sua pessoa, os dias da sua decrepitude chegaram; e, com os achaques da idade, vieram as imprecações da impotência, tanto mais desesperadora quanto maisvivas eram as recordações da sua ardente juventude e de sua voluptuosa maturidade.

Aquele homem para quem o maior divertimento era obrigar os outros a acreditarem nas leis e nos princípios de que desdenhava, adormecia à noite atormentado por um talvez... Modelo de bom-tom, aquele duque, ousado numa orgia, soberbo mas cortês, espirituoso junto das mulheres, a quem vergava pelo coração como um campônio verga uma haste de vime, enfim aquele homem de gênio, tinha um defluxo renitente, uma ciática arreliadora, uma gota feroz. Via os dentes irem-se- lhe como, ao fim duma festa noturna, as mulheres mais brancas e melhor vestidas se retiraram, uma a uma, abandonando a sala deserta e desguarnecida.

Depois, as suas mãos afoitas tremeram, as pernas esbeltas vacilaram e, uma noite, a apoplexia apertou-lhe a garganta com as suas mãos aduncas e gélidas.

Tornou-se, desde então, quezilento, áspero. Censurava a dedicação do filho e da mulher, atribuindo os seus cuidados enternecidos, desvelados, ao fato de ele ter empregado toda a sua fortuna em rendimento vitalício. Elvira e Filipe choravam lágrimas amargas e redobravam de carícias para com o maldoso velho, que, em voz enfraquecida, que procurava tornar afetuosa, dizia:

— Meus amigos, minha querida esposa, perdoam-me, não é verdade? Atormento-vos um pouco. Ah!, meu Deus, porque te serves de mim para pôr à prova estas santas criaturas? Eu, que devia ser a sua alegria, não passo do seu martírio...

Assim os acorrentava à cabeceira do seu leito, fazendo-lhes esquecer meses de rezinga e de crueldade, naquela hora em que lhes desvendava os inesperados tesouros da sua espirituosidade e da sua falsa ternura. Este seu modo paternal resultou infinitamente melhor do que o outro usado por seu pai. Por fim o seu estado agravou-se de tal maneira que, para o meterem na cama, era necessária uma manobra tal como a de meter uma embarcação num canal perigoso. E chegou o dia da morte. Tão brilhante e céptica personagem, em quem só a inteligência parecia escapar à mais terrível de todas as destruições, viu-se entre um médico e um confessor, as suas maiores antipatias. Mas mostrou- se jovial. Para ele não existia qualquer luz cintilando para além da cortina que ocultava o futuro. Sobre essa tela, opaca para os outros e diáfana para ele, as belas arrebatadoras delícias da mocidade moviam-se como sombras.

Foi numa bela noite de verão que D. Juan sentiu que a Morte se aproximava.

O céu de Espanha tinha uma admirável pureza, as laranjeiras perfumavam o espaço; as estrelas irradiavam uma viva claridade. A natureza parecia oferecer-lhe provas irrefutáveis da sua próxima ressurreição. Um filho carinhoso, dedicado, contemplava-o com amor e respeito.

Cerca das onze horas desejou ficar só com tão cândida criatura:

  Filipe — disse-lhe com voz de um afeto e uma ternura tais que o moço estremeceu, chorou de felicidade ao ouvir o pai pronunciar assim o seu nome. — Escuta, meu filho — continuou o moribundo. — Sou um grande pecador. Por isto, toda a vida pensei na Morte. Outrora fui amigo dogrande papa Júlio II. Esse ilustre pontífice receou que os meus excessos me levassem a cometer qualquer pecado mortal entre o meu último suspiro e o momento em que me ministrassem os santos óleos. Para que assim não sucedesse, fez-me presente de um frasco contendo água santa que, noutros tempos, jorrava dos rochedos do deserto. Guardei segredo sobre esta concessão da Igreja, mas fui autorizado pelo dito Papa a, in extremis, revelar tudo a meu filho. Encontrarás esse frasco na gaveta da mesa gótica, que nunca deixei afastar da minha cabeceira... O frasquinho também te poderá ser útil, querido Filipe. Jura-me, pois, pela tua salvação, que executarás pontualmente as minhas determinações!...

Filipe fitou o pai. D. Juan conhecia bem a expressão dos sentimentos humanos para não morrer em paz sem reconhecer fidelidade nos olhos do filho, para mais lembrando-se de que seu pai morrera de desespero soletrando-lhe nos olhos as intenções:

  Merecias melhor paternidade, Filipe — prosseguiu D. Juan. Assim ouso confessar-te, meu filho, que, no momento em que o abade de Sanlúcar me administrava o Sagrado Viático, eu pensava na eterna incompatibilidade de dois poderes tão fortes como o de Deus e o Diabo...

  Oh, meu pai!

  E dizia comigo: quando Satã fizer a paz com a divina onipotência, deverá, sob pena de ser um grande réprobo, estipular o perdão dos seus sequazes. Este pensamento não me largou mais. Porque eu irei para o Inferno, meu filho, se não cumprires à risca os meus últimos desejos...

— Oh, diga-me sem demora, meu pai!

—Pois bem. Logo que eu tenha expirado, talvez daqui a poucos minutos, pegarás no meu corpo ainda quente e estendê-lo-ás sobre uma mesa, no meio deste quarto. Depois apagarás o candeeiro. A claridade das estrelas deverá bastar-te. Então despes-me e, enquanto fores rezando padre-nossos e ave-marias, elevando a tua alma a Deus, terás o cuidado de umedecer, com essa água miraculosa, os meus olhos, os lábios, toda a cabeça, em primeiro lugar e, em seguida, sucessivamente, os membros e o tronco. Entretanto, filho, toma bem nota de que opoder de Deus é tão grande que não deverás estranhar coisa alguma!

Nesta altura, D. Juan, que sentia a morte chegar, acrescentou com voz temível:

  Segura bem o frasco!

Depois expirou suavemente nos braços do filho, que vertia copiosas lágrimas naquelas faces irônicas e lívidas.

Era cerca de meia-noite quando D. Filipe Belvidero colocou o cadáver sobre a mesa. Beijou-lhe a fronte e os cabelos encanecidos e apagou o candeeiro. A claridade suave do luar, que iluminava o campo com revérberos caprichosos, mal permitiu ao piedoso mancebo distinguir o corpo do pai, como uma alongada mancha branca no seio da sombra. Embebeu um pano no líquido e, recolhido em oração, ungiu a cabeça do querido defunto, em profundo silêncio. Ouvia indistintos rumores, mas atribuí-os ao cicio da brisa na copa das árvores. Mal acabava de molhar o braço direito do morto quando lhe pareceu que outro braço veio apertar-lhe tenazmente o pescoço. Sentindo-se estrangulado, soltou um grito dilacerante e deixou cair o frasco, que se quebrou. Os criados acorreram trazendo luzes. O grito tinha-os aterrado como se a trombeta do Juízo Final tivesse abalado os ecos do mundo. Num momento, o quarto encheu-se de gente. A criadagem, trêmula, encontrou D. Filipe desmaiado, mas seguro pelo braço forte de seu pai, que o estrangulava. Depois — caso sobrenatural! — os circunstantes depararam com a cabeça de D. Juan tão jovem e bela como a de Antínoo [5]; uma cabeça de cabelos negros, olhos brilhantes, boca vermelha, e que se agitava horrivelmente sem poder mover o corpo esquelético a que pertencia.

Um velho serviçal gritou:

  Milagre!

E todos aqueles espanhóis repetiram, em uníssono:

  Milagre!

Suficientemente religiosa para não se fiar nos mistérios da Magia, Dona Elvira mandou chamar o abade de Sanlúcar. O pároco, assim que pôde constatar o milagre, pensou logo aproveitar-se do extraordinário fato, como homem esperto e abade que só desejava aumentar os rendimentos da freguesia.

Declarando imediatamente que D. Juan seria canonizado, infalivelmente, marcou a cerimônia para a epifania para o seu convento, que daí em diante — declarou — San Juan de Sanlúcar. A estas palavras, a cara do defunto teve um esgar irônico.

A inclinação dos espanhóis por este gênero de solenidades é tão conhecida que não será difícil conceber a pompa das cerimônias religiosas em que o cura de Sanlúcar celebrou a trasladação do bem- aventurado D. Juan Belvidero para a sua igreja.

Alguns dias depois da morte daquele ilustre senhor, o milagre da sua ressurreição incompleta foi tão largamente comentado, de povoação em povoação, num raio de cinquenta léguas à volta de Sanlúcar, que, num grande espetáculo de peregrinação, os curiosos acorreram de todos os lados, atraídos pela perspectiva de um Te Deum solenemente cantado à luz dos círios. A antiga mesquita, agora igreja do convento de Sanlúcar, maravilhoso edifício construído pelos mouros e cujas abóbadas escutavam, havia séculos, o nome de Jesus em substituição do de Alá, não pôde conter a multidão que vinha assistir ao ato. Apertados como formigas num formigueiro, os fidalgos, com suas capas de veludo e belas espadas à cinta, conservavam-se junto dos pilares, quase sem espaço para dobrar o joelho que só ali se dignavam dobrar.

Encantadoras camponesas com as vasquinhas a moldarem-lhe as formas airosas, davam o braço a velhos encanecidos. Moços, de olhos ardentes, eram vistos ao lado de velhas arrebicadas. Avistavam-se ainda, entre a multidão parzinhos jovens radiantes de alegria, namoradas curiosas trazidas pelos bem- amados, algumas casadinhas de fresco, e, finalmente, crianças receosas pela mão das mães. Toda aquela gente estabelecia flagrantes contrastes, carregada de flores, colorida, despertando um surdo rumor na quietação da noite.

As grandes portas da igreja descerraram-se. Os que haviam chegado tarde demais ficaram no adro, assistindo de longe, pelos portais escancarados, a um espetáculo de que as reduzidas cenas das óperas modernas nunca poderão dar uma pálida ideia. Devotos e pecadores, empenhados em ganhar as boas graças dum novo santo, acenderam em seu louvor milhares de círios na vasta igreja, flâmulas interesseiras que emprestavam aspectos de magia ao majestoso templo. As escuras arcarias, as colunas e os seus capitéis, as capelas profundas, resplandecendo de ouro e prata, as galerias, os rendilhados mouriscos, os mais sutis pormenores daquela arquitetura delicada desenhavam-se num exuberante clarão, como as figuras caprichosas dos grandes brasidos ardentes. Era um mar de luzes, dominado ao fundo pelo coro dourado sobranceiro ao altar-mor, rivalizando, em esplendor, com o Sol nascente. Com efeito, o brilho dos áureos lampadários, dos candelabros argênteos, dos panejamentos, das imagens e dos “ex-voto” parecia esmorecer ante o relicário que continha o corpo de D Juan. Os restos mortais do ímpio resplandeciam de pedrarias, flores, ouro, plumas brancas como asas deanjo e substituíam, sobre o altar, um painel de Cristo. À sua volta numerosas flamas erguiam no ar clarões rutilantes.

O bom abade de Sanlúcar, com paramentos pontificais, a mitra ornada de pedras preciosas, de sobrepeliz e báculo de ouro, sentava-se, como monarca, num cadeirão de luxo imperial, no meio do seu cabido, composto de impassíveis anciãos encanecidos, vestidos de alvas e que o rodeavam, como as santas figuras que os pintores agrupam, nos seus painéis, à volta do Eterno.

O grande chantre e os dignitários do capítulo, ostentando as vistosas insígnias das suas prerrogativas eclesiásticas, iam e vinham por entre nuvens de incenso. Quando chegou a hora da solene consagração, os sinos tangeram e todos dirigiram ao Altíssimo a primeira hossana de louvor, que iniciou o Te Deum.

Clamor sublime! Eram vozes puras, cristalinas, de mulheres em êxtase, confundidas com vozes masculinas, fortes e graves, num coro tão poderoso que o órgão não conseguia dominá-lo com o vibrar dos seus largos acordes. Só as notas agudas dos meninos do Coro e as dos barítonos suscitavam a ideia da infância e da força naquele fantástico concerto de vozes humanas unidas num sentimento de amor:

Te Deum laudamus!

Do âmago do vasto templo enxameado pela multidão ajoelhada, aquele coro cresceu como uma claridade que cintilasse repentinamente na noite e o silêncio como que foi cortado por um ribombar. As vozes ascendiam com as nuvens do incenso que toldavam as majestáticas maravilhas arquitetônicas em diáfanos véus azulados. Tudo era magnificência, perfume luz e polifonia.

No momento em que o grave hino de gratidão e de amor atingiu o altar-mor, D. Juan, suficientemente cortês para nada levar a mal, esboçou um lívido sorriso e envaideceu-se no interior do relicário.

Porém o Diabo, lembrando-lhe o risco de passar assim por um homem vulgar, por um santo, um bonifrates ou um Pantaleão, perturbou a grande polifonia de amor com um bramido, a que se juntaram as mil vozes do Inferno. A Terra abençoava, e o Céu maldizia. O templo estremeceu sobre os seus remotos alicerces.

  Te Deus laudamus! — clamava a multidão.

— Vão para todos os diabos, estúpidos animais que sois! Deus! Deus! Que sois vós com o vosso Deus encanecido?

E uma torrente de imprecações correu como caudal de lavas ardentes, arremessadas por uma erupção do Vesúvio.

— Deus Sabaoth!... Sabaoth! — bramiam os crentes.

— Insultais a majestade do Inferno! — tornouD. Juan, rangendo os maxilares.

Momentos depois, o seu braço ressuscitado, saindo do relicário, ameaçou a turba com um gesto de desespero e de ironia.

— O santo abençoa-nos! — gritaram as velhas, as crianças e as noivas, credulamente.

Desta maneira somos muitas vezes iludidos nas nossas crenças. Mas o homem superior ri-se dos que o louvam e louva, muitas vezes, aqueles de quem se ri no seu íntimo.

No momento em que o pároco, prosternado ante o altar, entoava: Sancte Johannes, ora pro nobis...” ouviu distintamente a palavra “imbecil!”

— Que se passa ali? — exclamou o coadjutor, ao ver o relicário mover-se.

  O Santo antes parece o Diabo — retorquiu o prior.

Nesse instante, a cabeça vivente de D. Juan separou-se violentamente do seu corpo inerte e foi cair sobre a cabeça do esbelto e jovem oficiante:

— Lembra-te de D. Elvira! — gritou aquela cabeça, mordendo o abade.

Este deixou escapar um grito de dor, que interrompeu a solene cerimônia.

Todos os padres acudiram e rodearam o seu superior hierárquico.

— Imbecil! Dize agora que existe um Deus! — rugiu ainda a voz infernal, quando o abade, atingido no crânio pela mordedura, expirava.


Tradução de autor desconhecido.
Ilustração de Édouard Toudouze (1848 – 1907)



[1]  Ferrara, cidade italiana da região da Emília-Romanha, província de Ferrara.

[2] Jean-Baptiste Poquelin, dito Molière (1622 - 1673), dramaturgo francês; Johann Wolfgang von Goethe (1749 - 1832), poeta alemão; George Gordon Byron, (1788 - 1824), poeta inglês; Charles Robert Maturin (1782 1824), escritor irlandês de novelas góticas; Wolfgang Amadeus Mozart (1756 - 1791), compositor austríaco; Gioachino Antonio Rossininota (1792- 1868), compositor italiano.

[3]  Júlio II (1443 — 1515), nascido Giuliano della Rovere, foi Papa entre 1º de novembro de 1503 e 21 de fevereiro de 1515

[4]  Sanlúcar de Barrameda, cidade espanhola da província de Cádiz, região da Andaluzia.

[5] Antínoo (ca. 110/112 — 130) foi um jovem bitínio, favorito do imperador romano Adriano (76 — 130).


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