O CORVO - Edgar Allan Poe - 1a. Tradução Brasileira (em Prosa)
O CORVO
Edgar
Allan Pöe
(1809
– 1849)
Tradução
de Venceslau de Queiroz
(1963 – 1921)
Esta é, provavelmente, a primeira tradução do célebre poema de Allan Pöe a ser publicada no Brasil (saiu no periódico O Mequetrefe, edição de 20 de abril de 1885). Malgrado em prosa, porque realizada a partir da versão francesa de Baudelaire, conserva o clima lúgubre e melancólico do original. O tradutor, conforme informa o escritor Múcio Leão, em artigo publicado em 1939, era paulista. “Poeta e prosador, jornalista e polemista, crítico de assuntos literários e musicais”, é autor de Goivos, Versos e Cantilenas (talvez conservado inédito), além do volume Rezas do Diabo, que reúne poemas avulsamente publicados em jornais e revistas de São Paulo e, mais tarde, coligidos pelo filho do autor.
Uma
vez, pelas desoras lúgubres da noite, enquanto, fraco e fatigado, eu meditava
sobre velhos e curiosos volumes de uma doutrina antiga, enquanto, quase
adormecido, toscanejava, subitamente ouvi uma pancada, como se batessem de leve
à porta do meu quarto. “Alguém, talvez, que me procura”, pensei, “e que bate-me
à porta, talvez seja isso, e nada mais”.
Ah!
Lembro-me distintamente: corria o mês de dezembro, frio e glacial, e cada acha
de lenha, acesa no fogão, desenhava no soalho um reflexo de agonia. Eu esperava
a manhã, ansiosamente; há muitas horas já, em vão, pedi aos livros um
instantâneo repouso à minha tristeza, essa tristeza nervosamente horrível que
me acabrunha desde que perdi Lenora, honesta e graciosa virgem que os anjos no
céu hoje chamam Lenora, e que no mundo ninguém mais poderá chamar; ai! Nunca
mais!
E
o brando, triste e vago ondular do reposteiro de púrpura impressionava-me,
enchia-me de terrores fantásticos, para mim desconhecidos até essa noite;
afinal, para abrandar a pulsação precípite do meu peito, levantei-me,
repetindo: “Alguém talvez, que me procura; talvez algum retardado visitante que
bate-me à porta; sim, talvez seja isso, e nada mais”.
Minha
alma nesse instante sentia-se mais forte. Não hesitei, pois, por mais tempo e
falei, supondo que fosse alguém que batesse:
—
Peço-vos desculpas, eu ia adormecendo, quando vos ouvi bater-me à porta, tão
docemente, tão brandamente, que fiquei ainda incerto de vos ter ouvido.
E
abri a porta, de par em par; só vi trevas, e nada mais.
A
perscrutar profundamente essas trevas, ali fiquei por muito tempo, estarrecido
de espanto, de medo e de dúvida, sonhando coisas que no mundo ninguém ainda
ousara sonhar; mas o silêncio não foi perturbado, e tudo se conservou imóvel. A
única palavra que ouvi sibilaram-ma aos ouvidos: “Lenora!” Tinha sido eu mesmo
quem a balbuciara, e um eco por sua vez também repetira: “Lenora”. Fora isso, e
nada mais. Ao entrar de novo no quarto
com a alma sobressaltada, ouvi logo uma pancada um pouco mais forte que a
primeira.
“Com
certeza”, pensei comigo, “com certeza, há alguma coisa entre as folhas da
janela. Antes, porém, acalmemos o coração; talvez seja o vento, e nada mais”. Abri
então a janela, e, com um tumultuoso batimento de asas, entrou um majestoso
corvo, digno dos primeiros dias da criação. Não me fez a menor reverência, não
parou, não hesitou um minuto; mas, com a sem-cerimônia de um lord ou de uma lady, empoleirou-se num busto de Palas que encimava a porta do
quarto; empoleirou-se, instalou-se, e nada mais.
Esta
ave de ébano, pela gravidade de seu porte e severidade de sua fisionomia,
induzia-me a rir, e gracejei:
— Lúgubre e velho corvo, viajor afastado das
praias da Noite, ainda que a tua cabeça esteja sem crista e sem cimeira, não és
certamente nenhum poltrão. Dize-me o teu nome senhorial nas caliginosas praias
das regiões infernais.
O
corvo respondeu:
—
Nunca, mais!
Fiquei
maravilhado.
Este
hediondo volátil facilmente entendera a minha pergunta, se bem que a sua
resposta não tivesse um sentido perfeito e me não desse grande explicação; mas
devemos convir que a homem algum jamais foi dado ver uma ave ou animal
qualquer, pousado num busto esculpido em cima da porta de seu quarto, chamar-se
“Nunca mais”.
E
o corvo empoleirado, salientemente negro e solitário, no busto branco e imóvel,
proferiu essas únicas palavras, como se nelas espalhasse sua alma toda.
Nada
mais pronunciou, nem agitou uma pena sequer, até que eu murmurasse comigo
mesmo: “Há muito tempo que me abandonaram outros amigos; ele deixar-me-á também
ao alvorecer do dia, como as minhas esperanças de outrora...”
A
ave repetiu ainda:
—
Nunca mais!
Estremeci
ao ouvir esta resposta, dada com tanta justeza, e exclamei:
—
Sem dúvida, o que esta ave pronuncia é toda a bagagem de seu saber, que
recebera em casa de qualquer desamparado da fortuna, que a implacável Desgraça,
persistentemente, sem tréguas, perseguira, até que as suas canções não tivessem
mais que um só estribilho, até que o De
profundis da sua esperança tomasse este melancólico estribilho: “Nunca mais”.
Mas,
sempre interessado e curioso, rolei imediatamente a minha poltrona para perto da
ave, do busto e da porta; e, enterrando
a cabeça no espaldar aveludado, esforcei-me por encadear as ideias, indagando a
razão por que esta hedionda, triste, magra e sinistra ave, digna dos primeiros
dias da criação, fazia-me ouvir, crocitando, estas palavras: “Nunca mais”.
Assim
me conservei, sonhando, conjecturando, mas não dizia uma sílaba sequer a essa
ave, cujo olhar, ardendo como um clarão do inferno, queimava-me profundamente
os refolhos do coração.
Procurei
por muito tempo atinar com a razão disto e de mais algum mistério, repoisando a
cabeça, negligentemente, no veludo do espaldar, que a luz da lâmpada
acariciava, este veludo roxo sobre o qual, ao morno clarão dessa mesma lâmpada,
tantas vezes ela repoisara a cabeça de anjo, e agora... nunca mais!
Pareceu-me
então que se toldava o ar, embalsamado por um turíbulo invisível que os
serafins agitavam e cujas asas apenas esfrolavam o tapete do quarto.
—
Desgraçado! — bradei contra mim mesmo. —
O Deus de tua crença, por intermédio de seus anjos, envia-te repouso e
esquecimento às saudades e angústias que te ralam o seio... Embriaga-te, pois,
neste ar saturado dos perfumes do céu, e esquece para o todo sempre a tua morta
Lenora.
O
corvo grasnou:
—
Nunca mais!
—
Profeta! — exclamei. — Núncio de desgraças!
Ave ou demônio, mas sempre profeta! Ainda que sejas um mensageiro do Arcanjo
tenebroso, ou que a tempestade te açoutasse e te fizesse naufragar, corajoso
sempre, sobre esta terra deserta, povoada de fantasmas, sobre esta habitação
continuamente abalroada pelo Horror,
dize-me, sinceramente, eu to suplico: existe, existe ainda, no mundo,
algum bálsamo da Judeia para as minhas dores? Responde-me; eu to suplico.
O
corvo respondeu:
—
Nunca mais!
—
Profeta! — bradei ainda. — Núncio da
desgraça! Ave ou demônio, mas sempre profeta! Por este céu arqueado sobre
nossas cabeças, por este Deus que ambos nós adoramos, responde à minha alma,
sobrecarregada de dor, se, no paraíso longínquo, ela poderá algum dia abraçar
uma virgem santa que os anjos no céu chamam Lenora, uma bela e honesta virgem
que me abandonou no mundo para cantar no céu entre as choreias místicas dos
anjos...
O
corvo respondeu:
—
Nunca mais!
—
Ave ou demônio, esta resposta é o sinal da nossa eterna separação. Engolfa-te,
pois, na tempestade, volta às caliginosas praias das regiões infernais; não
deixes cair aqui uma pena sequer como lembrança da mentira que proferiste;
abandona esta inviolada solidão, deixa este busto, arranca o teu bico e as tuas
garras de meu coração e precipitas-te para longe desta morada.
O
corvo respondeu:
—
Nunca mais!
E
o corvo, imóvel, instalou-se, para todo o sempre, sobre o lívido busto de
Palas, que encimava a porta do meu quarto; e os seus olhos, cortados de quando
em quando por um sinistro clarão do inferno, semelham-se aos olhos de um
demônio que sonha; a luz da lâmpada, esbatendo sobre ele, projeta-lhe a sombra
no soalho e, para fora do círculo desta sombra, que jaz flutuante sobre o
soalho, nunca mais poderá erguer-se minha alma, nunca mais!
Fontes: O Mequetrefe
(RJ) edição de 20 de abril de 1885; Autores e Livros (RJ), edição
de 26 de junho de 1948.
Comentários
Postar um comentário