AS EXECUÇÕES DE CALAS E LA BARRE - Narrativa Clássica de Horror - Victor Hugo



AS EXECUÇÕES DE CALAS E LA BARRE
Victor Hugo
(1802 – 1885)

Em Tolosa, no dia 13 de outubro do 1761, encontra-se na sala baixa de uma casa um jovem enforcado. A multidão amotina-se, o clero fulmina, a magistratura investiga.

É um suicídio, mas o transformam em assassínio. No interesse de quem? No interesse da religião. E quem se acusa? O pai. É um huguenote, e quis impedir seu filho de se fazer católico. Há, aqui, uma monstruosidade moral e uma impossibilidade material, mas não importa! Esse pai matou seu filho, esse velho enforcou o rapaz. A justiça trabalha, e eis o desenlace. No dia 2 de março de 1762, um homem de cabelos brancos, Jean Calas, é arrastado à praça pública. Despem-no, estendem-no em cima de uma roda, com os membros amarrados e a cabeça pendurada. Três homens estão ali na plataforma do patíbulo: um inspetor (chamado David, encarregado de dirigir o suplício), um padre com um crucifixo e um carrasco com uma barra de ferro.

O padecente, estupefato e terrível, não olha para o padre. Mira o verdugo. O algoz levanta a barra de ferro e parte-lhe um braço. O padecente uiva e desmaia. O inspetor logo se acerca e faz com que o condenado respire sais. O desgraçado retorna à vida. Então, uma nova pancada com a barra ressoa, seguida de um novo uivo. Calas perde os sentidos. Reanimam-no e o algoz recomeça. E, como cada membro tinha de ser partido em dois lugares, recebe duas pancadas. São ao todo oito suplícios.

Depois do oitavo desmaio, o padre apresenta-lhe o crucifixo para ele beijar. Calas desvia a cabeça e o carrasco vibra-lhe a pancada mortal: esmaga-lhe o peito com a extremidade mais grossa do ferro.

Assim expirou Jean Calas. A tortura durou duas horas. Depois de sua morte, apareceu a prova do suicídio. Mas um assassínio fora cometido. Por quem? Pelos juízes.

Outro fato. Depois do velho, o moço. Daí a três anos, em 1765, em Abbeville, num dia em que se seguiu a uma noite de tempestade e de grande ventania, apanha-se no lajedo de uma ponte um velho crucifixo de madeira carunchosa, que há três séculos estava chumbado ao parapeito. Quem atirou ao chão este crucifixo? Quem cometeu este sacrilégio? Não se sabe. Talvez, um transeunte. Talvez, o vento. Quem é o culpado? O bispo de Amiens publica uma monitória. Uma monitória é o seguinte: é uma ordem a todos os fiéis para dizerem, sob pena do inferno, o que sabem ou o que julgam saber a respeito deste ou daquele fato. Uma intimação mortífera do fanatismo à ignorância. A monitória do bispo de Amiens opera a amplificação de mexericos, toma proporções de denúncia.



A justiça descobre, ou julga descobrir, que, na noite em que o crucifixo foi deitado ao chão, dois homens, dois oficiais, La Barre e D'Etallonde, passaram pela ponte de Abbeville; que estavam bêbados e que cantaram uma cantiga de casa da guarda. O tribunal e a senescalia de Abbeville são da mesma força que os inspetores de Tolosa. Não são menos justos. Lançam-se duas ordens de prisão. D'Etallonde escapa. La Barre é preso. Entregam no à investigação judiciária. Ele nega ter passado pela ponte. Confessa ter cantado a cantiga. A senescalia de Abbeville o condena. Ele apela para o parlamento de Paris.

Levam-no a Paris. A sentença é considerada boa e confirmada. Tornam a levá-lo para Abbeville, coberto de ferros. Abrevio. Chega a hora monstruosa. Principia por se submeter o cavalheiro de La Barre à tortura ordinária e extraordinária para lhe fazer confessar os seus cúmplices. Cúmplices de quê? De ter passado por uma ponte e ter cantado uma cantiga. Partem-no um joelho. O seu confessor, ouvindo estalar os ossos, desmaia. No dia seguinte, 5 de julho de 1766, arrastam La Barre para a praça principal de Abbeville, onde flameja uma fogueira ardente. Leem a La Barre a sentença. Depois, cortam-lhe um punho. Em seguida, arrancam-lhe a língua com uma tenaz de ferro. Afinal, por misericórdia, cortam-lhe a cabeça e atiram-na para a fogueira. Assim morreu o cavalheiro de La Barre. Tinha 19 anos.

Tradução de autor desconhecido do séc. XIX.
Fonte: O Liberal do Pará, edição de 17 de julho de 1878.



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