O ENTERRAMENTO PREMATURO - Conto Clássico de Horror - Edgar Allan Poe


O ENTERRAMENTO PREMATURO
Edgar Allan Pöe
(1809 – 1849)

Há assuntos de um interesse cativante mas que, por serem demasiadamente horríveis, correspondem mal às finalidades legítimas da literatura de ficção. O contista puro deve evitá-los, se não quiser provocar a repugnância ou a indignação. Só é conveniente ventilá-los quando a severidade e a imponência da verdade os santificam e amparam. Dessarte, sentimo-nos arrebatados pela mais intensa das "angústias fascinadoras" quando lemos uma descrição da travessia do Beresina[1], do terremoto de Lisboa[2], da peste de Londres, da matança de São Bartolomeu[3], da agonia dos cento e vinte e três prisioneiros sufocados no Buraco Negro de Calcutá[4]. Mas, em semelhantes descrições, é o fato — é a verdade — é a história que impressiona; imaginados, só causariam repulsa.

Acabo de mencionar algumas das calamidades mais conhecidas, as mais augustas que aconteceram; mas, em cada um desses casos, a amplitude atua tão fortemente sobre a imaginação quanto o caráter da desgraça. É inútil lembrar ao leitor que eu teria podido extrair do imenso e lúgubre catálogo das misérias humanas exemplos particulares mais carregados do profundo sofrimento do que qualquer um desses imensos acúmulos de infortúnios. Sim, a verdadeira desdita — a aflição última — é qualquer coisa de individual, que de modo algum se dispersa. E agradeçamos à misericórdia divina pelo fato de os mais atrozes estertores da dor acometerem o homem sozinho e não ao homem como unidade coletiva.

Ser enterrado vivo, certamente, constitui a mais pavorosa contingência a que se possa ver reduzido um habitante deste mundo. Nenhum daqueles que sabem refletir quererá negar que o caso se tem verificado frequentemente, muito frequentemente. As fronteiras entre a vida e a morte permanecem, para nós, obscura e imprecisas. Quem dirá onde acaba uma e começa a outra? Sabemos que existem doenças nas quais todas as funções sensíveis da vitalidade se interrompem totalmente, sem que em tal fato haja outra coisa além daquilo que se chama com propriedade suspensão; paradas temporárias da máquina incompreensível. Decorrido certo tempo, algum princípio misterioso, que não pode ser apreendido, restitui o movimento às engrenagens mágicas e às rodas encantadas. A corda de prata não estava desfeita para sempre, nem o navio de ouro irremediavelmente quebrado; mas, nesse interregno, que acontecerá à alma?

À parte, porém, a conclusão inevitável "a priori", de que a tais causas devem corresponder tais efeitos — de que a ocorrência bem conhecida de semelhantes casos de interrupção de vitalidade deve naturalmente conduzir certas vezes a enterramentos prematuros — à parte isso, digo, temos o testemunho direto de médicos e outras pessoas cujas experiências provam que se tem verificado uma grande quantidade de tais enterramentos. Poderia citar incontinenti, se preciso, cem exemplos autênticos e comprovados. Não faz muito tempo que aconteceu um, muito significativo, não longe daqui, em Baltimore, cujos pormenores talvez estejam presentes à memória de mais de um dos meus leitores. Ele provocou uma impressão dolorosa e intensa, que se espalhou até muito longe. A mulher de um dos cidadãos mais respeitados — jurista eminente e membro do congresso — foi assaltada por súbita e inexplicável doença que desafiou a capacidade de seus médicos. Depois de muito sofrimento, ela morreu, ou foi considerada morta. Ninguém suspeitou, nem tinha razão para suspeitar, que não estivesse de fato morta. O rosto mirrado e emagrecido tomara o aspecto habitual, os lábios, tinham uma palidez de mármore, os olhos estavam embaciados, o corpo frio e o pulso cessara de bater. Passaram três dias sem enterrá-la e manifestou-se uma rigidez de pedra. Numa palavra, as exéquias foram aceleradas por causa do rápido progresso daquilo que foi tomado pela decomposição.

A senhora foi colocada em seu mausoléu de família, que não foi aberto nos três anos seguintes. Ao cabo desse tempo, precisaram abri-lo para colocar um ataúde, mas, que desgraça, que choque tremendo aguardava ao marido, que foi quem  abriu, pessoalmente, a porta: quando os batentes viraram nos gonzos, caiu-lhe nos braços, com um ruído seco, um objeto envolto em branco: era o esqueleto de sua mulher, em sua mortalha que ainda se encontrava em bom estado.


Um exame pormenorizado revelou de maneira insofismável que ela voltara à vida menos de dois dias após seu enterramento; que, ao se debater no esquife, que estava colocado na borda de uma prateleira, fizera-o cair por terra onde ele se despedaçara, libertando-a. Uma lamparina, que havia sido deixada cheia de óleo no interior do sepulcro, foi encontrada vazia mas isso talvez pudesse ser atribuído à evaporação. No degrau mais elevado da escada que conduzia à câmara terrível, encontrava-se um grande pedaço do esquife, com o qual da devia ter-se esforçado por chamar a atenção, batendo com ele na porta de ferro. Enquanto batia, sem dúvida desfalecera ou então morrera realmente de simples pavor; na queda, sua mortalha deve ter ficado presa em alguma saliência da grade. E o corpo, assim sustentado, decompôs-se, sem cair.

Em 1810, verificou-se na França um caso de inumação de pessoa viva, acompanhado de circunstâncias que demonstram perfeitamente a veracidade da afirmativa corrente de que a verdade é mais estranha que qualquer ficção. A heroína da história foi a srta. Vitorina Lafourcade, jovem de família ilustre, rica e de grande beleza. Entre seus numerosos pretendentes encontrava-se Juliano Bossiet, um pobre escritor ou jornalista de Paris. Seus talentos e suas maneiras, sob todos os aspectos simpáticas, tinham chamado a atenção da herdeira que parece tê-lo efetivamente amado; todavia, o orgulho de sua raça levou-a, finalmente, a rejeitá-lo para desposar certo Sr. Renelle, banqueiro e diplomata bastante conhecido. Depois do casamento, ele descuidou-a e talvez a tenha tratado bem mal. Após ter vivido com o marido alguns anos infelizes, ela morreu, ou pelo menos pareceu tão bem morrer, que seu aspecto enganou a todos que a viram. Foi enterrada — não num mausoléu, mas numa sepultura comum, num cemitério de sua aldeia natal. Cheio de desespero e ainda inflamado pela recordação de seu imenso afeto, o apaixonado transporta-se de Paris para a província distante onde se encontra essa aldeia, na intenção romântica de exumar o cadáver e se apoderar de um dos cachos da cabeleira luxuriante. Chega à sepultura; à meia-noite, retira o caixão e abre-o; está entretido em cortar os cabelos que deseja quando abriram-se os olhos da bem-amada. De fato, a moça havia sido enterrada viva. A vitalidade ainda não se havia retirado completamente, e as carícias de seu apaixonado retiraram-na da letargia que lhe infundira a aparência de morta. Ele levou-a, então, com um cuidado frenético, até sua própria habitação na aldeia. Lançou mão de certos fortificantes poderosos que seu grande conhecimento de medicina lhe sugeriu. Para resumir, ela sobreviveu. Reconheceu seu salvador. Ficou com ele todo o tempo necessário para recuperar inteiramente, aos poucos, sua saúde anterior. Seu coração de mulher não era inflexível e essa derradeira prova de amor foi o bastante para comovê-la. Por isso o deu a Bossiet. Não voltou para o marido e, ocultando sua ressurreição, partiu com o amante para a América. Vinte anos mais tarde, os dois regressaram à França, convencidos de que o tempo transformara o aspecto da senhora em questão o suficiente para que seus amigos não a pudessem reconhecer. Mas enganavam-se, porque na primeira vez em que a encontrou, o Sr. Renelle reconheceu-a, e reivindicou-a como sua mulher. Ela não concordou e os tribunais homologaram sua resistência, decidindo que as circunstâncias particulares, bem como o tempo decorrido, tinham anulado a autoridade marital, não somente sob o ponto de vista da equidade, como sob o legal.


O “Jornal de Cirurgia” de Leipzig — um jornal de grande merecimento, que constitui autoridade e que devia ser traduzido e republicado por algum editor americano — relata em número recente um tristíssimo acontecimento da mesma espécie.

Um oficial de artilharia, homem de estatura gigantesca e de saúde muito robusta, foi atirado ao chão por um cavalo espantadiço e recebeu na cabeça uma contusão grave que o fez imediatamente perder os sentidos. Ele sofrera uma pequena fratura do crânio, mas não se pensou absolutamente que estivesse em perigo iminente. Fizeram-lhe uma trepanação que teve êxito. Sangraram-no e recorreram a muitos meios de alivio costumeiro. Mas, gradativamente, ele foi caindo num estado de estupor cada vez mais grave e por fim pareceu morrer.

O tempo estava quente e enterraram-no, com uma precipitação imprópria, num dos cemitérios públicos. As exéquias realizaram-se numa quinta-feira. No domingo seguinte houve, como é costume nesse dia, grande afluência ao cemitério. Cerca do meio-dia verificou-se uma perturbação considerável quando um camponês declarou que, estando sentado sobre a sepultura do referido oficial, percebera claramente que a terra se mexia, como se alguém estivesse debatendo-se debaixo dela. A princípio, suas palavras não mereceram grande atenção, mas seu evidente terror, sua insistência teimosa em garantir sua história, acabaram por impressionar a multidão. Foram buscar apressadamente pás, e a sepultura, escandalosamente pouco profunda, logo se encontrou bastante escavada para mostrar a cabeça de seu ocupante. Este parecia de fato morto, mas estava sentado quase por completo no caixão cuja tampa ele conseguira levantar parcialmente, graças a esforços tremendos.

Transportaram-no imediatamente para o hospital mais próximo, onde verificaram que estava vivo, embora em estado de asfixia. Algumas horas depois ele voltou a si, reconheceu as pessoas de suas relações e contou, em frases entrecortadas, as horas de tortura que passara no túmulo.

Sua narrativa revelou que ele permanecera consciente pelo menos uma hora durante a inumação, antes de ficar insensível. A cova fora enchida descuidadamente com uma terra muito porosa e que tinham esquecido de calcar: era inevitável que certa quantidade de ar a atravessasse. Ele ouviu sob sua cabeça o ruído de passos e esforçou-se em se fazer ouvir por sua vez. Foi pelo rumor da multidão, disse, que lhe pareceu despertar de um sono profundo; mal acordou, porém, pôde avaliar todo o horror de sua pavorosa situação.

O paciente, relata-se, estava em bom caminho e parecia disposto a restabelecer-se finalmente por completo; mas sucumbiu vítima do charlatanismo das experiências médicas. Aplicaram-lhe a bateria galvânica e ele expirou de súbito, num dos paroxismos extáticos que essa aplicação às vezes produz.

Lembro-me, contudo, a respeito da bateria galvânica, de um caso muito conhecido, e muito extraordinário, no qual esse aparelho serviu para fazer tornar à vida um jovem advogado de Londres que permanecera enterrado dois dias. O fato ocorreu em 1831 e produziu profunda impressão em todos os lugares onde foi conhecido.

O paciente, Sr. Edward Stapleton, morrera, aparentemente, em consequência de tifo acompanhado de sintomas anormais que tinham despertado a curiosidade das pessoas que o tratavam. Quando pareceu morto, pediram aos seus que consentissem numa autópsia, mas eles recusaram. Como muitas vezes acontece diante de semelhantes recusas, os médicos resolveram exumar o corpo para dissecá-lo, com vagar, em segredo. As medidas necessárias foram facilmente tomadas com o auxílio de um desses ladrões de cadáveres que não faltam em Londres; e na terceira noite consecutiva ao enterramento, o suposto cadáver foi retirado de sua sepultura, de oito pés de profundidade, e colocado na sala de autópsia de um hospital particular. Depois de ter sido praticada no abdômen uma incisão bastante grande, o aspecto do corpo — que estava fresco e não revelava nenhum sintoma de decomposição — sugeriu a aplicação da bateria. Sucederam-se as experiências e os efeitos habituais se verificaram sem que coisa alguma os caracterizasse, em particular, a não ser que, numa ou duas ocasiões, as convulsões provocadas lembraram, mais de que costume, as de uma pessoa viva.

A noite ia adiantada, o dia estava prestes a surgir, pelo que se julgou dever realizar a autópsia sem mais detença. Um dos estudantes, contudo, desejava particularmente experimentar uma teoria sua e fez absoluta questão de aplicar a bateria a um dos músculos peitorais. Fizeram uma incisão sumária e aplicaram vivamente o fio. Nisso, o paciente, com um movimento precipitado, mas de modo algum convulsivo, levantou-se da mesa, caminhou até o meio do aposento, lançou de um lado para o outro, durante alguns segundos, olhares perturbados, depois parou. O que ele disse foi incompreensível, mas pronunciou palavras, sílabas perfeitamente audíveis. Depois de ter falado, caiu pesadamente ao chão.

Todos ficaram um momento paralisados pelo terror; mas a gravidade do caso fê-los bem depressa recuperar a presença de espírito.  Compreenderam que o Sr. Stapleton estava vivo, embora desmaiado. Fizeram-no respirar éter. Logo ele voltou a si e, depressa, recuperou a saúde, sendo então restituído a seus amigos — que só foram avisados de sua ressurreição depois de afastado todo o receio de recaída. É fácil conceber seu espanto — seu enlevado assombro.

Mas a mais empolgante particularidade do caso reside no que o próprio Sr. Stapleton contou. Declarou que em nenhum momento se encontrara em estado de insensibilidade total — que percebera de maneira perturbada e confusa tudo o que lhe acontecia, desde o instante em que os médicos declararam-no "morto" até aquele em que caiu desfalecido no assoalho do hospital. "Estou vivo"— eis as palavras incompreensíveis que, ao reconhecer a câmara de autópsia, ele havia tentado pronunciar no meio de seu pavor.

Seria fácil multiplicar as histórias desse gênero — mas evito fazê-lo, porque na verdade não precisamos disso para demonstrar que se verificam enterramentos prematuros. Se nos lembrarmos quão raras são, pela própria natureza dos casos, as ocasiões de descobri-los, não poderemos deixar de admitir que "muitas vezes" isso pode ocorrer à nossa revelia. E, quando um cemitério sofre uma modificação de alguma importância, encontram-se esqueletos em posições que sugerem as suspeitas mais pavorosas.

Sim, a suspeita é pavorosa — mais pavorosa ainda, porém, é semelhante fim! Pode-se afirmar, sem hesitação, que "nenhum" acontecimento é mais próprio para provocar o supremo infortúnio do corpo e da alma do que ser enterrado em vida! A opressão intolerável dos pulmões, os vapores sufocantes da terra úmida, as mãos que se aferram à mortalha, o amplexo rígido das tábuas, a sombra da noite absoluta, o silêncio igual a um oceano que acabrunha, a presença invisível, mas palpável, do verme conquistador — tudo isto e o pensamento do ar e da relva que estão à superfície, a recordação dos amigos queridos que voariam em nosso socorro se soubessem de nosso destino — e a consciência de que "jamais", saberão desse destino em que nós estamos colocados, sem esperança, entre os verdadeiros mortos —, essas reflexões, digo, provocam no coração que ainda palpita um grau de pavor, de horror inconcebível, que faz recuar a imaginação mais audaciosa. Não sabemos de coisa mais atroz sobre a terra — nem podemos sonhar com coisa alguma que, nas mais recônditas profundezas do inferno, seja tão horripilante quanto essa. E, por tais motivos, qualquer narrativa referente a esse assunto oferece um interesse profundo; mas um interesse que, em consequência do horror sagrado do próprio assunto, depende muito de nossa convicção de que o caso relatado seja verdadeiro. O tenho a dizer é de meu conhecimento próprio — de minha experiência pessoal e positiva.

Há muitos anos eu era sujeito a ataques da estranha perturbação que os médicos concordam em chamar catalepsia, na ausência de uma denominação definitiva. Embora as causas imediatas e as predisponentes e mesmo os diagnósticos permaneçam obscuros, compreende-se de modo satisfatório seu caráter aparente e manifesto.  As variações são principalmente de grau. Às vezes a vítima fica apenas um dia, ou mesmo um lapso de tempo menor imersa numa espécie de letargia exagerada. Está privada de consciência e seu corpo fica imóvel. Mas ainda se podem perceber as débeis pancadas do coração: no centro das faces ainda há um tênue vestígio de- colorido, e, quando se aplica aos lábios um espelho, pode-se descobrir uma atividade entorpecida, irregular, indecisa, dos pulmões. Em outros casos de catalepsia, o exame mais meticuloso e as experimentações médicas mais rigorosas não conseguem estabelecer a menor distinção entre os estado do doente e aquilo que consideramos morte absoluta. Geralmente, a vítima só é salva do enterramento prematuro pelo fato de os amigos saberem que ela é sujeita a ataques de catalepsia, pelas dúvidas que isso logo provoca e principalmente pela ausência de decomposição. Por felicidade, a evolução da doença é lenta. As primeiras manifestações nada têm de equívocas. Os acessos tornam-se cada vez mais distintos e cada um deles é sempre mais prolongado que o anterior. É nisto que consiste a principal salvaguarda contra a inumação; o desgraçado, cujo “primeiro" ataque oferecesse esse caráter extremo de que há exemplo, estaria quase que inevitavelmente condenado à sepultura.  Meu próprio caso não diferia grandemente daqueles que os livros de medicina mencionam. Às vezes, sem causa aparente, caía pouco a pouco num estado de meia síncope, ficava meio desmaiado.

E então, sem sofrer, sem poder mexer-me, nem propriamente pensar, mas conservando uma sensação confusa e letárgica de minha existência, e daqueles que rodeavam meu leito, eu ficava assim até que a última fase da enfermidade me fizesse voltar de súbito a uma perfeita consciência de mim mesmo. Outras vezes, eu era acometido rápida e brutalmente. Um mal-estar, um torpor, um frio, uma vertigem me dominava e eu caía de chofre.  Depois, durante semanas inteiras era o vazio, a sombra, a noite: meu universo era o Nada. O aniquilamento total não seria mais absoluto. Eu voltava destes últimos ataques com uma vagarosidade correspondente à subitaneidade de sua chegada. Da mesma forma que o dia nasce para o mendigo sem amigos, sem teto, que vagueia pelas ruas durante noites de inverno lúgubres e intermináveis — também não menos demorada, penosa e alegremente reaparecia para mim a luz da alma.

A não ser minha tendência para essas crises, meu estado geral de saúde parecia bom. E eu não podia absolutamente acreditar que fosse vítima da moléstia predominante — a menos que ela devesse ser considerada como sintoma adicional e caráter particular de meu "sono" cotidiano. De fato, todas as vezes que eu despertava, não podia recuperar completamente a plena posse de meus sentidos e passava muitos minutos extremamente perplexo e perturbado com minhas faculdades mentais de um modo geral, mais particularmente a memória, em estado de absoluta suspensão.

Não havia nenhum sofrimento físico naquilo que eu suportava, mas sim um infinito infortúnio mental. Minha imaginação voltou-se para as coisas macabras. Eu falava de "vermes, de sepulturas, de epitáfios". Perdia-me em devaneios de morte e o pensamento da inumação prematura não se afastava de meu cérebro. O horroroso Perigo que me ameaçava perseguia-me noite e dia. De dia a tortura que meus pensamentos me infligiam era intensa;  de noite, ela alcançava o seu auge. Quando a Sombra medonha cobria a terra, sacudida pelo transcendente horror dessas meditações, eu tremia — como tremem os penachos dos cavalos de um carro funerário. Quando a Natureza não podia suportar por mais tempo a insônia, era só depois de muitos esforços para resistir que eu sucumbia ao sono, porque estremecia ao pensamento de que ao despertar bem poderia encontrar-me instalado numa cova mortuária. E quando por fim coçava a dormitar, era exclusivamente para imergir num mundo de visões sobre as quais pairava vitoriosa, esparzindo a sombra de suas imensas asas negras, a única Ideia de sepulcro.

Das incontáveis imagens de luto que assim vinham me atormentar em meus sonhos, escolho para recordar apenas uma visão solitária. Pareceu-me que eu estava mergulhado num estado cataléptico e mais prolongado que costume. De súbito, uma mão de gelo pousou em minha fronte e uma voz impaciente e inarticulada murmurou em meu ouvido a palavra "Ergue-te!"

Levantei-me. Reinava a mais profunda obscuridade. Eu não podia distinguir aquele que me havia acordado. Impossível lembrar-me do momento em que caíra em catalepsia e do lugar em que me encontrava. Como continuava imóvel, esforçando-me em reunir minhas ideias, a mão gelada agarrou-me com brutalidade o punho, sacudiu-o furiosamente e a voz inarticulada prosseguiu:

— Ergue-te! Não mandei que te erguesses?

 —E quem — perguntei — és tu?

— Não tenho nome nas regiões que habito — replicou a voz em tom lúgubre. — Fui mortal, mas sou demônio. Era implacável, mas sou clemente. Bem sentes que estou tremendo. Enquanto falo, meus dentes batem. Não é, porém, por causa do frio da noite — o frio da noite sem fim. Mas tamanha hediondez é insuportável. Como podes tu dormir tranquilo? O grito dessas grandes desgraças impede-me de repousar. Esses espetáculos excedem o que eu posso suportar. Vem, levanta-te!  Vem comigo para a Noite exterior e deixa-me abrir para ti as sepulturas. Não é esse um espetáculo confrangedor? Olha!

Olhei, e a forma invisível que continuava a me apertar o punho  fizera abrirem-se as sepulturas de toda a raça humana; de cada uma delas saía a débil claridade fosforescente da decomposição, pelo que meu olhar podia penetrar  até os últimos refúgios, neles contemplar os corpos que, envoltos  em suas mortalhas, partilhavam com o verme o  seu último sono. Mas, aí! O número de verdadeiros dormentes era em muitos milhões inferior ao número daqueles que não dormiam E eu distinguia débeis esforços. Por toda parte reinava lamentável inquietação e das profundezas das incontáveis sepulturas subia o melancólico sussurro das mortalhas. E entre aqueles que pareciam repousar tranquilos, vi que havia um grande número que modificara, em gradações mais ou menos apreciáveis, a posição rígida e pouco cômoda em que ficaram quando foram enterrados. E como eu olhava, a voz falou novamente:

— Oh, não é um espetáculo digno de piedade?

Mas antes que eu encontrasse resposta, a forma soltara meu pulso, as luzes fosforescentes se desvaneceram e, com um choque repentino, as sepulturas se fecharam, ao mesmo tempo que delas saía um tumulto de gritos desesperados, que repetiam:


— "Não é — oh, meu Deus!  —um espetáculo digno de piedade?"

Visões que assim que aconteciam de noite prolongavam muito tempo ainda sua influência após meu despertar. Meus nervos ficavam inteiramente à flor da pele e determinavam-me terrores incessantes. Eu hesitava em montar a cavalo, caminhar ou fazer qualquer exercício capaz de me afastar de minha casa. Na realidade, não ousava distanciar-me da presença imediata daqueles que conheciam minhas predisposições para a catalepsia, temeroso de que, vítima de um de meus costumeiros ataques, eu fosse enterrado antes de se terem certificado perfeitamente meu verdadeiro estado.

De modo algum confiava na solicitude, na fidelidade de meus amigos mais queridos. Receava que, durante uma catalepsia excepcionalmente prolongada, eles se deixassem a me considerar perdido. Chegava mesmo a temer que, como eu dava infinitas preocupações, adviesse o dia em que eles aproveitariam jubilosamente o pretexto de um ataque muito demorado como desculpa suficiente para se livrarem definitivamente de mim. Debalde, eles se esforçavam em me tranquilizar com as mais solenes promessas. Eu exigia os juramentos mais sagrados de que eles não me enterrariam, em circunstância alguma, até o momento em que a decomposição de meu corpo estivesse adiantada o bastante para impossibilitar que me conservassem por mais tempo. E, mesmo assim, meus terrores mortais recusavam-se a se deixar convencer e não aceitavam consolação de espécie alguma. Dediquei-me a organizar toda uma série de laboriosas precauções. Entre outras coisas, mandei reformar o mausoléu da família, de forma que se pudesse facilmente abri-lo pelo lado de dentro. À mais leve pressão exercida numa comprida alavanca, que penetrava bastante na sepultura, faria a porta de ferro se abrir. Havia também dispositivos para facilitar a entrada de ar e luz, receptáculos cômodos destinados à alimentação e à água, e colocados bem ao alcance do esquife que me estava destinado. O esquife era quente e maciamente acolchoado, provido de uma tampa construída de acordo com o mesmo princípio da porta do sepulcro, contendo, além disso, molas colocadas de maneira que o menor movimento do corpo bastasse para libertá-la. Para concluir, do teto do túmulo pendia um grande sino preso a uma corda, cuja outra extremidade devia passar por um buraco feito no ataúde e ser presa a uma das mãos do cadáver. Mas — aí! —, que pode a vigilância contra o Destino de um homem? Mesmo essas precauções tão bem arranjadas não foram suficientes para me salvar das angústias do enterrado vivo — a mim, o miserável predestinado a esse suplício.

Houve uma ocasião — como muitas vezes já havia acontecido — em que eu senti passar de uma inconsciência total à primeira sensação, bem fraca e indefinida, de viver. Lentamente — como que a passos de tartaruga — aproximou-se a aurora cinzenta, imperceptível da claridade interior. Torpor e mal-estar. Uma dor surda suportada com apatia. Nenhuma preocupação — nenhuma esperança — nenhum esforço. Depois, em seguida a um demorado intervalo, um zumbido nos ouvidos; após outro intervalo ainda maior, umas picadas nas extremidades; depois, um período aparentemente eterno, de agradável repouso, durante o qual os sentimentos, que estão despertando, procuram tornar-se pensamentos; em seguida, uma rápida recaída no nada; depois, uma volta súbita. Finalmente, o débil tremer de uma pálpebra e imediatamente depois o choque elétrico de um terror mortal e indefinido que expulsa o sangue em torrentes das têmporas para o coração. E, depois, o primeiro esforço positivo para pensar. E, depois, a primeira tentativa de recordar. E, depois, um êxito parcial, fugidio. E, depois, a memória reclama suficientemente posse de seu domínio para que obtenha, em certa medida, consciência de meu estado. Sinto que não estou de modo algum emergindo de um sono normal. Lembro-me de que fui sujeito a crises de catalepsia. E depois, por fim, como que sob o impulso de um acesso, meu espírito que estremece é prostrado pelo único Perigo terrível, pela única, espectral, sempre dominadora Ideia.

Depois de ocorrida essa ideia, ainda permaneci alguns minutos imóvel. E por quê? Eu não podia ordenar à coragem que me mexesse. Não ousava fazer o esforço que devia convencer-me de meu destino — e, contudo, qualquer coisa em meu coração me dizia que "ele era certo". Só o desespero — um desespero como nenhuma outra espécie de desgraça provoca igual — levou-me, após longa hesitação, a abrir minhas pálpebras pesadas. Abri-as. Era noite — noite negra. Eu sabia que o acesso havia passado. Sabia que se desvanecera o efeito de minha enfermidade. Sabia que recuperara o uso de minhas faculdades visuais — e, contudo, era noite — noite negra — a sombra intensa, absoluta, sem piedade, da Noite que não tem fim.

Tentei: urrar; meus lábios, minha língua seca, moviam-se convulsamente para fazê-lo, mas nenhum brado saía de meus pulmões cavernosos que, parecendo subjugados pelo peso de alguma montanha desmoronada, arquejavam e palpitavam, juntamente com o coração, a cada respiração difícil e laboriosa.

Tendo, nessa tentativa de gritar, movido os maxilares, verifiquei que estavam presos, como se faz com os mortos. Senti, também, que estava deitado sobre uma coisa dura e que uma substância análoga me aprisionava em ambos os lados. Ainda não ousara mover nenhum de meus membros — mas, agora, ergui violentamente meus braços, até então estendidos, com as mãos cruzadas. Bateram elas numa superfície de madeira horizontalmente colocada acima de mim, a uma distância de seis polegadas de meu rosto. Não pude abrigar mais a menor dúvida de que repousava finalmente dentro de um caixão.

Então, no seio de minha infinita miséria, apresentou-se em toda a sua doçura o anjo Esperança, porque eu me lembrava de minhas precauções. Contorci-me, fiz esforços espasmódicos para levantar a tampa, mas nada se moveu.  Inutilmente, apalpei meus pulsos em busca da corda. E então, o Consolador fugiu para sempre e um Desespero mais inflexível reinou triunfalmente.  Porque fui forçado a verificar a ausência do acolchoamento tão cuidadosamente preparado por mim — e de súbito me chegou às narinas o cheiro característico da terra úmida.  A conclusão era inevitável: eu não estava no mausoléu. Havia caído em catalepsia fora de minha casa — em casa de estranhos — não podia recordar onde e quando —, e tinham sido eles que me haviam enterrado como um cão — pregado num caixão comum e mergulhado profundamente, profundamente, para sempre, em alguma cova comum, sem nome.

E como essa convicção atroz penetrava até o mais recôndito de minha alma, fiz um novo esforço para gritar a plenos pulmões. E essa segunda tentativa deu resultado. Um grito prolongado, selvagem, ininterrupto, um uivo de agonia soou através do reino da "Noite Subterrânea”.

— Ei! Ei, olhe aqui! — respondeu uma voz rude.

— Que há, que diabo! — disse outra.

— Pare com isso! — disse uma terceira voz.

— Que está acontecendo com você para gritar assim como um lince? — disse uma quarta.

E nisso fui agarrado e sacudido, sem cerimônias, durante muitos minutos, por um bando de indivíduos de aspecto muito grosseiro. Não me acordaram — porque eu estava perfeitamente desperto, quando gritei —, mas me restituíram completamente a memória.

Essa aventura ocorreu em Richmond. Acompanhado por um amigo, eu descera, durante uma caçada, algumas léguas ao longo do rio James. Quando a noite se aproximava, fomos colhidos por uma tempestade. O único abrigo que se nos deparou foi o compartimento de uma pequena balandra que estava ancorada, carregada de húmus. Instalamo-nos e passamos a noite toda a bordo. Dormi num dos dois beliches que era tudo o que a embarcação possuía — e é fácil imaginar o que possam ser os beliches de uma balandra de sessenta ou setenta toneladas.  Aquele que eu ocupava não possuía colchão ou roupa de cama de espécie alguma. Sua largura máxima era de dezoito polegadas e não era maior à distância entre o fundo e o convés sobre o qual ele ficava.  Foi com dificuldade que consegui meter-me nele. Contudo, dormi muito bem e toda a minha visão — porque não foi absolutamente um sonho, um pesadelo — proveio, de maneira muito natural, das circunstâncias de minha posição, dos pendores habituais de meu pensamento — e aquela dificuldade, já mencionada, de reunir minhas ideias — e principalmente de recuperar a memória — durante um período bastante longo, consecutivo ao despertar.  Os homens que me haviam sacudido eram a tripulação, bem como alguns operários contratados para a descarga. O cheiro de terra provinha da própria carga. E a atadura de meu queixo era um lenço de seda que eu prendera em volta da cabeça, na falta de meu costumeiro gorro de dormir.

Apesar de tudo, as torturas que sofri foram indiscutivelmente comparáveis, enquanto duraram, às de um sepultamento verdadeiro. Foram pavorosamente — foram inconcebivelmente horrorosas, mas o Bem se origina do Mal, porque esse próprio excesso provocou em meu espírito uma reação inevitável. Dele, a minha alma saiu tonificada, regenerada. Viajei. Fiz muito exercício. Respirei o ar livre do céu. Pensei em assuntos diferentes da Morte. Pus de lado os meus livros de Medicina. Queimei “Bouchan”. Deixei de ler “Pensamentos Noturnos”[5] — e as parolagens pomposas de cemitérios — bem como histórias tenebrosas como esta. Numa palavra, tornei-me outro homem e vivi a vida de um homem. A partir daquela noite memorável, afugentei para bem longe os meus temores macabros e com eles desapareceram as desordens catalépticas, de que talvez fossem menos a consequência que a própria causa.

Há momentos nos quais, aos olhares da fria Razão, o mundo de nossa pobre Humanidade pode revestir a aparência de um Inferno — mas a imaginação do homem não é, de modo algum, Carathis[6] para explorá-la impunimente até as mais recônditas cavernas.  Ai! A medonha legião dos pavores sepulcrais não pode ser considerada como inteiramente imaginária — mas, da mesma forma que os Demônios em cuja companha Afrasiab[7] efetuou sua viagem de descida do Óxus, eles devem dormir, porque senão nos devorarão — é preciso deixá-los repousar, ou perecer.


Tradução de autor desconhecido.
Fonte: “Fon-Fon”, edição de 4 de junho de 1949.


[1] O autor refere-se à grande perda sofrida pelo exército de Napoleão Bonaparte ao cruzar, durante a sua retirada da Rússia, em 1812, o rio Berezina, situado na Bielorrússia.
[2] Refere-se Pöe ao catastrófico terremoto ocorrido em Lisboa na manhã de 1º de novembro de 1755.
[3] Onda de violência que, em 1572, vitimou, na França, entre 5.000 e 30.000 huguenotes (protestantes franceses), em sequência a uma onda de violência propagada, a partir de Paris, pelos católicos, na noite de São Bartolomeu (24 de agosto).
[4] Claustrofóbica masmorra onde as tropas indianas detinham prisioneiros de guerra britânicos em 1756. Nela confinadas, mais de cem pessoas morreram de asfixia e calor.
[5] Poema que versa sobre a vida, a morte e a imortalidade escrita pelo poeta inglês Edward Young em 1742.
[6] Personagem de “The History of the Caliph Vathek” ("A História do Califa Vathek"), um romance gótico, escrito em francês (sob o título “Vathek”), em 1782, pelo escritor inglês William Thomas Beckford, talvez em colaboração com o autor francês Louis-Sébastien Mercier.
[7] Personagem do poema épico persa “Shahnama” (Epopeia dos Reis), escrito por volta do ano 1.000 d.C.

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