A ESTRANHA MORTE DE FREI PEDRO - Conto Clássico Fantástico e de Ficção Científica - Rubén Darío



A ESTRANHA MORTE DE FREI PEDRO
Rubén Darío
(1867 – 1916)
Tradução de Paulo Soriano

Visitando o convento de uma cidade espanhola, não faz muito tempo, o amável religioso que nos servia de cicerone, ao passar pelo cemitério, indicou-me uma lápide em que li, unicamente: Hic iacet frater Petrus[1].

– Este – disse-me – foi um dos vencidos pelo Diabo.

– Pelo velho Diabo que já caduca – disse-lhe.

– Não – respondeu-me.  – Pelo demônio moderno que se escuda na ciência.

E me narrou o acontecido.

Frei Pedro de la Pasión era um espírito perturbado pelo maligno espírito que infunde a ânsia do saber. Magro, anguloso, nervoso, pálido, dividia suas horas conventuais entre a oração, as disciplinas e o laboratório, que lhe era permitido pelos beneficios que atraía à comunidade. Estudara, desde muito jovem, as ciências ocultas. Citava, com certa ênfase, nas horas de conversação, Paracelso[2] e Alberto Magno[3]. Admirava profundamente esse outro frade Schwartz[4], que nos fez o diabólico favor de misturar salitre com enxofre.

Pela ciência chegara até a penetrar em certas iniciações astrológicas e quiromânticas. A ciência o desviava da contemplação e do espírito da Escritura. Em sua alma se aninhara o mal da curiosidade, que pôs a perder os nossos primeiros padres. A própria oração era olvidada com frequência quando algum experimento o mantinha cauteloso e febril.

Como toda leitura lhe era concedida, e tinha ele à sua disposição a rica biblioteca do convento, seus autores não foram sempre os menos equívocos. Assim, chegou a pretender experimentar as suas faculdades de clarividente e pôr à prova os efeitos da magia branca. Não havia dúvida de que a sua alma estava em grande perigo em razão de sua grande sede de saber e por olvidar que a ciência constitui, no princípio, a arma da Serpente que há de ser a essencial potência do Anticristo, e que, para o verdadeiro homem de fé, initium sapientiae est timor Domini[5].

Oh, ignorância feliz! Oh, santa ignorância! Frei Pedro de la Pasión não compreendia tua celeste virtude, que tem feito certos Celestinos! Huysmans[6] discorreu extensamente sobre tudo isto. Virtude que põe uma especial auréola sobre alguns pequeninos queridos de Deus, entre os esplendores místicos e milagrosos das hagiografias[7].

Com excelência, os doutores explicam e comentam como, ante os olhos do Espírito Santo, as almas de amor são bem mais glorificadas que as almas de entendimento. Ernest Hello[8] pintou, nos sublimes vitraux[9] de suas Fisionomias de Santos, esses beneméritos da caridade, esses favorecidos da humildade, esses seres columbinos, simples e brancos como os lírios, limpos de coração, pobres de espírito, bem-aventurados irmãos dos passarinhos do Senhor, contemplados com olhos carinhosos e sororais pelas puras estrelas do firmamento. Joris-Karl – o meritório beato, quiçá tarde demais consagrado, apesar da literatura –, no maravilhoso livro em que Durtal se converte, veste de resplendores paradisíacos o leigo porqueiro que faz baixar à pocilga a admiração dos coros arcangélicos, e o aplauso das potestades dos céus. E frei Pedro de la Paisón não compreendia isto.

Ele, sem dúvida, cria, cria com a fé de um indiscutível crente. Mas a ânsia de saber lhe açulava o espírito, lançava-o à investigação de segredos da natureza e da vida a tal ponto que não se dava conta de como essa sede de saber – esse desejo indomável de penetrar no oculto e no arcano do universo – era obra do pecado, e armadilha do Baixíssimo, para impedir-lhe, dessa maneira, sua absoluta consagração à adoração do Padre Eterno. E a última tentação seria fatal.

O caso aconteceu há não muitos anos. Chegou às mãos de frei Pedro um periódico em que se falava detalhadamente de todos os progressos realizados em radiografia, graças à descoberta do alemão Röntgen[10], que conseguira encontrar o modo de fotografar através dos corpos opacos. Soube do conteúdo do tubo de Crookes[11], da luz catódica, do raio X. Viu o fac-símile de uma mão cuja anatomia transparecia claramente, e a manifesta figura de objetos retratados entre caixas e volumes bem fechados.

A partir deste instante, não pôde estar tranquilo, pois algo que era uma ânsia de seu querer de crente, ainda que não enxergasse o sacrílego que nele se continha, pungia seus ardentes desejos... Como poderia ele encontrar um aparelho como os daqueles sábios, e que lhe permitisse levar a cabo um oculto pensamento, em que se mesclavam a sua teologia e suas ciências físicas?... Como poderia realizar em seu convento as mil coisas que se amontoavam em sua ardente imaginação?

Nas horas litúrgicas, das orações e dos cânticos, todos os outros membros da comunidade o viam ora meditabundo, ora agitado por súbitos sobressaltos, ora com a face acesa por uma repentina chama de sangue, ora com o olhar extático, fixado nas alturas ou cravado na terra. E era a obra da culpa que se fincava no fundo daquele peito inquieto, o pecado bíblico da curiosidade, o pecado onitranscendente de Adão junto à árvore do conhecimento do bem e do mal. E era muito mais que uma tempestade sob o crânio... Múltiplas e excêntricas ideias se aglutinavam na mente do religioso, que não encontrava maneira de adquirir os preciosos aparelhos. Quanto de sua vida não daria para ver os raríssimos instrumentos dos novos sábios em seu pobre laboratório de frade aficionado e tirar as ansiadas provas, fazer os mágicos ensaios que abriam uma nova era na sabedoria e na convicção humanas!... Ele oferecia mais do que o fizera Santo Tomás...  Se já se fotografava o interior de nosso corpo, bem poderia o homem chegar prontamente a descobrir visivelmente a natureza e a origem da alma; e, aplicando a ciência às coisas divinas – como o Espírito Santo deveria permitir-lhe –, por que não aprisionar nas visões dos êxtases, nas manifestações dos espíritos celestiais, suas formas exatas e verdadeiras?

Se em Lourdes houvesse uma Kodak durante o tempo das visões de Bernadete! Se, nos momentos em que Jesus – ou sua Santa Mãe – favorece, com sua presença corporal, determinados fiéis, fosse aplicada convenientemente a câmara escura!... Oh, como se convenceriam os ímpios, como triunfaria a religião!

Assim meditava profundamente, assim se espremia o cérebro do pobre frade, tentado por um dos mais encarniçados príncipes das trevas.

E sucedeu que, num desses momentos, num dos instantes em que seu desejo era mais vívido, na hora em que devia estar entregue à disciplina e à oração, apresentou-se diante de seus olhos, em sua cela, um dos irmãos da comunidade, levando-lhe um embrulho sob o hábito.

– Irmão – disse-lhe –, eu vos ouvi dizer que desejais uma dessas máquinas, como as que os sábios estão maravilhando o mundo.  Pude-vos consegui-la. Aqui a tendes.

E, depositando o embrulho nas mãos do assombrado frei Pedro, desapareceu, sem que este tivesse tempo de perceber que sob o hábito entremostrara-se, no momento em que o irmão desaparecia, duas patas de bode.

Frei Pedro, desde o dia em que recebera o misterioso presente, consagrou-se a seus experimentos. Faltava às matinas, não assistia à missa, a pretexto de estar enfermo. O padre provincial admoestava-o frequentemente. E todos o viam passar, estranho, misterioso, e temiam pela saúde de seu corpo e de sua alma.

Ele perseguia a sua dominante ideia.  Experimentou a máquina em si mesmo, em frutos, chaves dentro de livros e outras coisas triviais. Até que num dia...

Ou melhor, numa noite, o desventurado frade se atreveu, finalmente, a realizar o seu pensamento. Dirigiu-se ao templo, receoso, com passos silenciosos.  Penetrou na nave principal e se dirigiu ao altar em que, no tabernáculo, se achava exposto o Santíssimo Sacramento.  Tirou o cálice. Pegou uma hóstia consagrada. Voltou veloz para a sua cela.

No dia seguinte, na cela do frei Pedro, achava-se o senhor arcebispo diante do padre provincial.

– Excelentíssimo senhor – dizia este –, encontramos o frei Pedro morto. Ele não andava muito bem da cabeça. Creio que esses seus estudos o prejudicaram.

– Vossa senhoria reverendíssima viu isto? – disse sua excelência reverendíssima, mostrando-lhe uma chapa fotográfica revelada, que apanhou do chão, e na qual se estampava, com os braços descravados e com um doce olhar nos divinos olhos, a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Fonte: Relatos pioneros de la ciencia ficción latinoamericana, Fundación Editorial el Perro y la Rana, Caracas, 2015.



[1] Em latim, no original: Aqui jaz o irmão Pedro.
[2] Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, dito Paracelso (1493 – 1541), médico, cientista, alquimista e ocultista suíço.
[3] Santo Alberto Magno (c. 1193 – 1280), doutor da igreja, filósofo e teólogo alemão, que se teria dedicado à alquimia e à astrologia.
[4] Berthold Schwarz (? - 1384), alquimista e frade franciscano alemão, a quem, tradicionalmente, é atribuída a invenção da pólvora, embora esta já fosse conhecida há séculos pelos chineses e, possivelmente, pelo sábio, também franciscano, Roger Bacon (1214 - 1294).
[5] Em latim, no original: O temor a Deus é o princípio da sabedoria.
[6] Joris-Karl Huysmans (1848 - 1907), escritor francês. O seu romance Là-bas, protagonizado pela personagem Durtal, aborda o satanismo e a magia negra.
[7] Descrições das vidas dos santos.
[8] Ernest Hello (1828 – 1885), escritor católico e crítico literário francês.
[9] Em francês, no original: vitrais.
[10] Wilhelm Conrad Röntgen (1845 – 1923), físico alemão que, em 1895, descobriu os raios X.
[11] William Crookes (1832 – 1919), físico e químico inglês. Por meio do tubo que leva o seu nome, descobriram-se os raios catódicos. Tal feito conduziu à descoberta dos raios X, por Röntgen, e dos os elétrons, em 1897, por Joseph John Thomson (1856 - 1940).

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