A MALDIÇÃO DOS BAILARINS - Conto Clássico de Terror - Padre Manuel Bernardes
A
MALDIÇÃO DOS BAILARINS
Padre Manuel
Bernardes
(1644 – 1710)
Manuel Bernardes
é uma das glórias da literatura em língua portuguesa. Narrador brilhante,
deixou uma extensa obra, na qual se destaca “A Nova Floresta”, em cinco volumes
constituídos de apólogos morais de espiritualidade cristã. É desse livro que
vem “A Lenda dos Bailarins”, conto fantástico dotado de bons momentos de horror
que, hoje, chamaríamos gore.
No ano da salvação humana 1012, imperando Henrique II[1],
sucedeu em Saxônia que um sacerdote por nome Ruperto, presbítero da Igreja de
S. Magno Mártir, havendo começado a celebrar a primeira missa da noite de
Natal, não podia prosseguir, por se achar distraído com os estrondos de um
baile, que ali perto se fazia. E era que um homem plebeu, por nome Otério, com
outros 15 companheiros, e três mulheres, dançando e cantando todos juntos no
cemitério, faziam notável ruído. Mandou-lhes, pois, o sacerdote dizer pelo
sacristão que se quisessem aquietar; porque não era aquele o modo agradável a
Deus de festejar noite tão santa. E zombando eles do recado com risadas, e
dichotes, como gente de pouco entendimento, e menos temor de Deus, o sacerdote,
acendendo-se em zelo da honra divina, e do decoro que a seu ministro sacerdotal
se devia, disse:
— Praza a Deus que um ano inteiro
bailem, sem parar.
Caso estupendo, ainda somente ouvido,
quanto mais visto! A boca do sacerdote o disse, e a mão do Onipotente assim o
executou. Amanheceu e anoiteceu o seguinte dia, e eles a bailar. Entrou a roda
de novo ano, e eles sem saírem da mesma roda da sua dança: In circuitu impii ambulant[2].
Passou um mês, e outro mês. Acudia a
gente atônita com tão raro espetáculo: dançando os achava, e dançando os
deixava. Perguntavam-lhes uns uma coisa, e outros outra. A nada respondiam, nem
atendiam. O seu destino, a sua tarefa, que continuavam com incessante
diligência, era só andar à roda, uns atrás dos outros, seguindo aos que os
guiavam, e todos instigados do aguilhão daquela praga do sacerdote: Deus meus pone illos ut rotam[3].
Não comiam, não bebiam, não mostravam cansaço, não se lhes gastou o calçado, nem
se lhes rompeu o vestido, nem caiu sobre eles chuva. Da contínua pista, ou
calcadura, sumiram-se pela terra até mais acima dos joelhos: a si mesmos parece
que intentavam sepultar-se vivos, ou abrir caminho, por onde descessem a dançar
ao inferno.
Quis certo mancebo tirar da roda a uma
das três mulheres, que era sua irmã. E pegando-lhe do braço com violência, este
lhe veio na mão desmembrado do corpo, como se de uma pedra de linho separasse
fora alguma estriga; ou, metendo a mão na massa lêvada, trouxesse algum pouco
no punho. E ela, como se o braço fosse alheio, nada disse, nem gemeu, e foi
prosseguindo a dança do seu fado, sem da ferida manar sangue.
Finalmente ao cumprir-se o ano, pelo Natal de
1013, veio àquele lugar S. Heriberto, arcebispo de Colônia, e os absolveu da
maldição, e introduzidos na Igreja, os reconciliou com Deus. As três mulheres,
como sexo mais fraco, expiraram logo. Pouco também duraram alguns dos homens,
dos quais se diz que, depois de mortos, obrou Deus por eles alguns milagres, como
significando o perdão de seus pecados, que por meio de tão custosa penitência
tinham alcançado. Os mais que sobreviveram, sempre com o tremor de membros e
espanto dos olhos, mostravam bem o terrível caso, que por eles havia passado. E
cada um deles era uma estátua do escarmento, erigida para protestação da
reverência que se deve aos Mistérios, aos Ministros e aos lugares sagrados.
[1] Henrique II (973
– 1024), imperador Romano-Germânico entre 1014 e 1024. Foi canonizado em 1147
pelo para Clemente II.
[2] Trecho do Salmo
11, conforme a vulgata: In circuitu impii
ambulant: secundum altitudinem tuam multiplicasti filios hominum, ou seja:
“Os ímpios andam por toda parte, quando a vileza se exalta entre os filhos dos
homens”, conforme tradução de João Ferreira de Almeida.
[3] Trecho do Salmo
81, conforme a vulgata: Deus meus, pone
illos ut rotam, et sicut stipulam ante faciem venti, ou seja: “Deus meu,
faze-os como folhas impelidas por um remoinho, como a palha ao léu do vento”,
conforme tradução de João Ferreira de Almeida.
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