O BÊBADO - Conto Clássico de Horror - Guy de Maupassant
O BÊBADO
Guy
de Maupassant
(1850
– 1893)
I
Rugia
a tempestade com um vento norte que fazia rolarem pelo céu enormes nuvens de
inverno, negras e pesadas, de que caíam, em sua passagem, furiosas bátegas.
O
mar — bravio — zunia, sacudindo a costa, lançado à praia enormes, lentas e
espumosas vagas, que se desfaziam com estampidos semelhantes aos de artilharia.
As vagas vinham muito suavemente, umas após outras, da altura de montanhas,
espalhando no ar, ao contato das rajadas, a espuma branca de suas cristas, como
se fossem monstros a suar.
O
furacão abismava-se ao pequeno vale de Yport, sibilava e gemia, arrancando as
telhas, quebrando os alpendres, derrubando as chaminés, laçando nas ruas tais
rajadas de vento que só se podia marchar segurando-se às paredes. Com tal
ímpeto do vento, as crianças seriam levadas como folhas e atiradas por cima das
casas.
Tinham
atado os barcos de pesca até dentro da terra, com medo do mar que invadiria a
praia com a enchente. Alguns marinheiros, amparando-se por trás do ventre
bojudo das embarcações deitadas de flanco, olhavam para aquela cólera do céu e
do mar.
Depois,
afastavam-se a pouco e pouco, pois a noite caía em tempestade, envolvendo com
uma sombra espessa o oceano enraivecido e produzindo o estrepitar dos elementos
em fúria.
Só
dois homens ficavam, de mãos nas algibeiras, os costados roliços sob a
borrasca, a cabeça enterrada no barrete de lã até aos olhos. Eram dois
corpulentos pescadores normandos, de barba hirsuta e pele crestada pelas
rajadas salgadas do mar largo, os olhos azuis picados por um grão preto ao
centro, os olhos penetrantes de marinheiros que veem até ao fim do horizonte
como uma ave de praia.
Um
deles dizia ao seu companheiro:
—
Vamos embora, Jérémie. Vamos passar um
pouco de tempo no dominó. Sou eu quem paga.
O
outro hesitava, tentado pelo jogo e pela aguardente, pois sabia muito que iria
embriagar-se se entrasse na casa de Paumelle. Hesitava ao pensar em que tinha a
mulher sozinha em seu casebre. Perguntou:
—
Parece que fizeste a aposta de embriagar-me todas as noites. Se és tu quem paga
sempre, não me dirás que lucras com isso?
E
ria com todo o gosto à ideia de toda aquela aguardente bebida à custa do outro.
Ria com um riso contente de normando que se sente bem.
Mathurin, o seu camarada, continuava a puxá-lo
pelo braço.
—
Vamos, apressa-te, Jérémie. Não se pode entrar em casa, em uma noite destas,
sem levar a barriga quente. Parece que tens medo de que tua mulher te dê
pancada...
Jérémie
resmungou:
—
É que outro dia não dei com a porta. Quase que foi necessário pescarem-me na
valeta, em frente à minha casa.
E
sorria ainda aquela lembrança de ébrio, enquanto se dirigia lentamente para o
café de Paumelle, cujos vidros iluminados brilhavam. Marchava puxado por
Mathurin e impelido pelo vento, incapaz de resistir às duas forças.
A
sala, baixa, achava-se àquela hora cheia de marujos, de fumaça e de gritos.
Todos aqueles homens, vestidos de lã, com os cotovelos apoiados sobre as mesas,
vociferavam para se fazerem ouvir. Quanto mais bebedores entravam, mais era
preciso berrar, para dominar o ruído das vozes e do bater dos dominós nas mesas
de mármore, o que aumentava ainda mais o inferneiro. Jérémie e Mathurin foram
sentar-se num conto e começaram a jogar uma partida. Os cálices desapareciam
uns após outros pelas suas goelas. Depois jogaram mais partidas e beberam mais
cálices. Mathurin continuava e despejar, piscando o olho para o taberneiro, um
homem gordo, vermelho como uma brasa e que ria com ar de velhaco, como se
estivesse representando uma longa farsa. Jérémie ia ingerindo o álcool, balançava
a cabeça, soltava gargalhadas que mais pareciam rugidos, a olhar para o seu
compadre com o ar mais estúpido e contente. Todos os fregueses saíam. E, a cada
vez que cada um deles abria a porta da rua para sair, uma rajada de vento
entrava no café, fazendo redemoinhar o pesado fumo dos cachimbos, balançando os
candeeiros nas extremidades de seus ganchos e fazendo vacilar as suas chamas.
Ouvia-se, de repente, o choque profundo de uma vaga que se desfazia e o bramir
da borrasca. Jérémie, com a camisa entreaberta no peito, tomava posições de bêbado, de perna
estendida, um braço pendente segurando com a outra mão as pedras do dominó. Por
fim ficaram a sós com o taverneiro, que se aproximara, cheio de interesse.
—
E então, Jérémie, como vai esse interior? Já te refrescaste à força de te
regares?
Jérémie
tartamudeou:
—
Uma vez que ela ainda corre, é que ainda está seco aí por dentro.
O
dono do café olhava para Mathurin com ar malicioso:
—
E teu irmão, Mathurin, onde estará ele a esta hora?
O
marinheiro teve um riso mudo:
—
Está no quente, não te preocupes...
E
ambos olharam para Jérémie, que pousava triunfalmente o duplo seis anunciando:
—
Eis o trunfo.
Ao
acabar a partida, o taberneiro declarou:
—
Sabem que mais, meus rapazes? Vou até o calor dos meus lençóis. Deixo-lhes uma
candeia e mais uma garrafa. Fica-lhes bastante com que se entreterem. Tu,
Mathurin, fecharás depois a porta por fora e meterás a chave por debaixo da
porta, como fizeste na noite passada.
Mathurin
apressou-se a responder:
—
Está entendido, podes ir descansado.
Paumelle
apertou a mão aos seus dois fregueses retardatários e subiu lentamente a escada
de pau. Durante alguns minutos, os seus pesados passos ressoaram na pequena
casa. Depois, um estalido revelou que ele acabava de meter-se no leito. Os dois
homens continuarem o jogar. De tempos a tempos um ímpeto mais raivoso do
furacão sacudia a porta, fazia tremer as paredes. Os dois bebedores levantavam
a cabeça, como a ver se alguém ia entrar. Depois Mathurin, tomando do litro,
enchia o copo de Jérémie. De repente, o relógio, pendurado por cima do balcão,
deu meia-noite. O seu timbre rouquenho lembrava um choque de caçarolas. As
pancadas vibravam por muito tempo, com uma ressonância de ferragem. Mathurin
ergueu-se repentinamente, como um marinheiro que tivesse terminado o seu
período de vigília.
—
Vamo-nos embora, Jérémie; é preciso desandar.
O
outro pôs-se em movimento com mais custo. Aprumou-se, apoiando-se à mesa.
Depois, ganhou a porta, que abriu, enquanto o seu companheiro apagava o
candeeiro. Quando se acharam à rua, Mathurin, depois de fechar a porta, disse:
—
Agora, boa noite, até amanhã.
E
desapareceu na escuridão.
II
Jérémie
deu três passos, depois oscilou, estendeu os braços, encontrou uma parede que o
susteve de pé e tornou a pôr-se em marcha, cambaleando. Por momentos, uma
rajada, acompanhada de chuva, penetrando pela estreita rua, atirava-o para
frente, obrigando-o a correr alguns passos. Depois, quando a violência do vento
passava, o bêbado estacava de pronto, perdido o impulso, e continuava a vacilar
nas suas pernas caprichosas de borracha. Ia por instinto para a sua casa, como
os pássaros vão para o ninho. Reconheceu, enfim, a sua porta e pôs-se a tatear
para descobrir a fechadura e introduzir a chave. Mas não atinava com o buraco e
praguejava a meia voz. Pôs-se, então, o bater com violência, chamando ao mesmo
tempo a mulher, para que viesse abrir:
—
Mélina! Ó, Mélina!
De
súbito, porém, como apoiava o seu corpo contra o batente para não cair, este
cedeu, a porta abriu-se e Jérémie, perdendo o equilíbrio, caiu pesadamente para
dentro de casa. Nesse momento, sentiu que qualquer coisa pesada lhe passava por
cima e desaparecia na escuridão. Jérémie não se mexeu, cheio de medo, como
louco, com o pavor de homem que tivesse visto o diabo, e cuja cabeça viessem
todas as coisas misteriosas das trevas. Esteve muito sem fazer o menor
movimento. Mas, como viu que nada se movia, veio-lhe um pouco de lucidez, de
lucidez perturbada dos ébrios. Assentou-se vagarosamente. Esperou ainda
bastante tempo. Desentorpecendo afinal, bradou para dentro:
—
Mélina!
A
mulher não respondeu. Uma dúvida então, de repente, lhe atravessou o cérebro
obscurecido. Uma dúvida indecisa, uma vaga suspeita. Continuava inerte, sentado
no chão, na escuridão, procurando reunir ideias, agarrando-se de reflexões
incompletas e vacilantes como os seus pés... Bradou de novo:
—
Olha cá, ó Mélina: que era aquilo? Dize-me, dize-me o que era aquilo. Não te
faço mal...
Esperou.
Nenhuma voz se ergueu no silêncio. Agora raciocinava alto:
—
Não faz mal, estou bêbado! Estou bêbado! Foi ele quem me pôs neste estado. Foi
ele, para que eu não desse com a casa. Estou bêbado...
E
continuava:
—
Que era aquilo, ó Melina? Ou me dizes, ou me desgraço!
Depois
de ter tornado a escutar, recomeçava, com uma lógica lenta e obstinada de
ébrio!
—
Sim, foi ele quem me reteve em casa daquele malandro do Paumelle! E nas outras
noites foi a mesma coisa, para que eu não entrasse em casa... Ele é cúmplice...
Canalha!
Lentamente,
equilibrou-se nos joelhos. Ganhava-o uma cólera surda, que se misturava à
fermentação das bebidos. E repetia:
—
Dizes-me ou não que foi aquilo, ó Melina? Se não me dizes, escangalho-te. Olha
que eu te estou avisando!
Achava-se
agora já de pé, tremendo numa cólera fulminante, como se o álcool que tinha no
corpo se lhe tivesse inflamado nas veias. Deu um passo, tropeçou numa cadeira,
agarrou-a, caminhou para a frente, encontrou o leito, apalpou-o e sentiu nele o
corpo quente da mulher. Então, sufocado de raiva, bramiu:
—
Ah! estavas aqui, infame? Estavas aqui e não me respondias?
E,
levantando a cadeira, que sustinha no seu punho robusto de marinheiro, atirou-a
com desesperada fúria para a frente. Um grito saiu da cama, um grito louco,
angustioso. Então, ele pôs-se a bater como um malhador numa granja. Dentro em
pouco, nada se mexia ali... A cadeira voara em pedaços, mas restava-lhe ainda
um de seus pés, e ele continuava a bater, a bater, já arquejante. De repente,
parou para perguntar:
—
Não me dirás quem era que a uma hora destas...
Mélina
não respondeu. Então, abatido de fadiga, embrutecido com a violência, tornou a
assentar-se no chão, estendeu-se e dormiu...
Ao
romper da manhã, um seu vizinho, vendo a porta aberta, entrou. Viu Jérémie
roncando no chão, onde jazia dispersos os pedaços de cadeira, e, no seu leito,
uma pasta enorme, uma pasta informe de carne e de sangue...
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: Almanak do
Correio da Manhã, 1947.
Ilustração:
Honoré Daumier (1808 – 1879).
Postagem fantástica, parabéns ao tradutor!
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