O DEMÔNIO DA PERVESIDADE - CONTO CLÁSSICO DE HORROR - Edgar Allan Poe
O DEMÔNIO DA PERVESIDADE
Edgar
Allan Pöe
(1809
– 1849)
No
exame das faculdades e das tendências dos móveis primordiais da alma humana os
frenólogos[1]
esqueceram-se de mencionar uma tendência que, apesar de existir evidentemente
como sentimento primitivo, radical e irredutível, foi igualmente omitida pelos
moralistas que os precederam. E todos nós a omitimos; todos deixamos que a sua
existência nos passasse em claro.
A
ideia dessa tendência nunca nos ocorreu simplesmente por não termos precisão
dela. Nunca sentimos necessidade de a verificar: nunca concebemos tal
necessidade. E, dado o caso que a noção desse rimum mobile se introduzisse à força em nosso espírito, não
teríamos nunca podido entender qual o papel que representa na economia das
coisas humanas, temporais ou eternas.
Não
se pode negar que a frenologia e uma boa parte das ciências metafisicas foram
feitas a priori. O homem da
metafísica, ainda mais que o homem da inteligência e da observação, pretende
adivinhar os desígnios de Deus, conceber-lhe os planos. E depois de ter
penetrado, a seu bel-prazer, as intenções de Jeová, edifica-se segundo essas
mesmas intenções os seus inumeráveis e caprichosos sistemas.
Em
matéria de frenologia, por exemplo, estabelecemos em primeiro lugar, muito
naturalmente, aliás, que entrava nos desígnios da Divindade que o homem
comesse; determinamos-lhe logo um órgão de alimentividade (e esse órgão é o
chicote de que Deus se serve para obrigar o homem a comer, quer queira ou não).
Em
segundo lugar, tendo decidido que era a vontade de Deus que o homem propagasse
a sua espécie, descobrimos-lhes imediatamente um órgão de amatividade. E assim
os da combatividade, da idealidade, da casualidade, da construtividade; em
suma, um órgão para cada tendência, para cada sentimento moral, para cada
faculdade da pura inteligência. Nesta distribuição dos princípios da ação
humana, os Spurgheimistas, com razão ou sem ela, em parte ou na totalidade, não
fizeram mais do que seguir as pegadas dos seus predecessores, deduzindo e
estabelecendo todas as coisas, segundo o que eles imaginam ser o destino do
homem, tomando por base as intenções do Criador.
Teria
sido mais cordato e mais seguro basear a nossa classificação (uma vez que
queremos por força classificar) sobre os atos que o homem executa habitualmente
e sobre aqueles que ele executa ocasionalmente; mas ocasionalmente, e não na
hipótese de que a Divindade que o obriga a executá-los.
Se
não podemos compreender Deus nas suas obras visíveis, como poderíamos
compreendê-lo nos seus pensamentos inconcebíveis?
Se
não podemos concebê-lo nas suas criaturas objetivas, como poderíamos concebê-lo
nos seus métodos incondicionais e nas suas fases de criação?
A
indução a posteriori teria conduzido
a frenologia a admitir como princípio primitivo e inato da ação humana, um não
sei que de paradoxal, a que chamaremos de "perversidade", à falta de
termo mais característico. No sentido que liga a esta palavra, podemos
defini-la como um móvel sem motivo, um motivo não motivado. Sob a sua
influência procedemos sem fim inteligível; ou antes, sob a sua influência
procedemos de modo que não deveríamos proceder. Em teoria não pode haver
"por quê" mais absurdo; mas de fato não existe outro mais forte. Para
certos espíritos, em certas condições, chega a ser irresistível.
Quanto
a mim, não há nada mais verdadeiro do que a seguinte proposição: a certeza do
pecado ou do erro, incluída num ato qualquer, é muitas vezes a única força
invisível que nos impele a praticá-lo. E esta tendência deplorável para o mal,
pelo amor do mal, não admite análise nem resolução em elementos ulteriores. É
um movimento radial, primitivo, elementar.
Dir-me-ão
que se perseveramos em certos atos por conhecer que não devemos praticá-lo, a
nossa conduta é apenas uma modificação daquela que deriva ordinariamente da
combatividade frenológica. Mas uma simples observação bastará para demonstrar a
falsidade de semelhante ideia. A combatividade frenológica, por causa da
existência, tem a necessidade de defesa pessoal; é a nossa salvaguarda contra a
injustiça. O seu princípio diz respeito ao nosso bem-estar; por conseguinte,
qualquer princípio, que não fosse apenas modificação da combatividade, deveria
igualmente excitar em nós o desejo do bem-estar. Mas no caso deste "não
sei que", que eu classifiquei de perversidade, não somente o desejo do
bem-estar não é excitado, como também se manifesta um sentimento singularmente
contraditório.
Por
fim, todo o homem que sondar seu coração, achará a melhor resposta ao sofisma
de que se trata. Quem consultar conscienciosamente a própria alma e a
interrogar com lealdade, não ousará negar a radicalidade da tendência em
questão. Esta tendência não é menos caracterizada que incompreensível.
Não
há homem algum, por exemplo, que, em momento dado, não se tenha visto possuído
pelo desejo ardente de torturar o seu ouvinte com perífrases. Sabe que
desagrada; no entanto, tem a melhor intenção de agradar. Está habituado a ser
breve, conciso e claro; agita-se, debate-se-lhe no espírito uma linguagem
lacônica, luminosa, que só a custo pode reprimir. Teme e conjura o mau humor
daquele a quem se dirige, contudo vem-lhe o pensamento de que certos incisos e
parênteses podem irritá-lo. Não é preciso mais nada. Aquele pensamento
converte-se em veleidade, a veleidade em desejo, o desejo em necessidade
irresistível; e a necessidade satisfaz-se, não obstante todas as consequências.
Temos
diante de nós um trabalho que precisamos de executar rapidamente. Sabemos que
retardá-lo é a nossa ruina. A crise mais importante de nossa vida reclama com
voz imperiosa a ação e a energia imediata. Estamos impacientes, em brasa por
nos pôr à obra. O antegozo de um resultado brilhante põe-nos já em alvoroço. É
forçoso, é forçoso que este trabalho seja começado hoje mesmo; contudo,
adiamo-lo para o dia seguinte. Por quê? Não há senão uma explicação: porque
sentimos que este sentimento é perverso (servimo-nos da palavra sem compreender
o princípio). Chega o dia seguinte, e com ele uma ansiedade ainda mais
impaciente de fazermos o nosso dever, mas com este aumento de ansiedade chega
também um desejo ardente, anônimo, de ainda postergar; desejo positivamente
terrível, porque a sua natureza é impenetrável. E quanto mais foge o tempo,
mais força vai ganhando esse desejo. Resta-nos apenas uma hora para a ação.
Trememos pela violência do conflito que se trava em nós; é a batalha entre o
positivo e o indefinido, entre a substância e a sombra. Mas quando a luta chega
a este ponto, debatemo-nos em vão! É a sombra que vence. Finalmente, a hora
ecoa; é o sinal da nossa redenção; a sombra desaparece; voltamos à antiga
energia; trabalharemos, agora. Ai! Já muito tarde!
Estamos
à borda de um precipício: olhando para o abismo acometem-nos duas sensações: o
medo e a vertigem. O primeiro movimento é recuar para longe do perigo;
inexplicavelmente ficamos. Pouco a pouco o medo, a vertigem e o horror
confundem-se num sentimento nebuloso, indefinível; gradualmente,
insensivelmente, essa nuvem toma forma, como o vapor do frasco de onde erguia o
espírito das "Mil e Uma Noites". Mas da nossa nuvem, à borda do
precipício, ergue-se cada vez mais palpável uma forma mil vezes mais terrível
que qualquer gênio ou demônio fabuloso. Contudo, não é senão um pensamento; mas
um pensamento medonho, um pensamento que nos gela até à medula, penetrando-nos
com a voluptuosidade feroz do seu horror. E apenas esta ideia: que sensações
produziria em nós a queda desta altura? E desejamos essa ideia, esse
aniquilamento fulminante, porque envolve em si as mais horrendas e odiosas
imagens da dor que podem um dia apresentar-se à nossa imaginação. E como o bom
senso nos impede a fugir do abismo, por isso mesmo abordamo-lo com
impetuosidade.
Não
há na natureza paixão tão diabolicamente violenta como a do homem que, tremendo
sobre as arestas dum precipício, sente passar-lhe pelo espírito a ideia de se
lançar nele. Deter o pensamento nessa ideia, um instante que seja, é estar
inevitavelmente perdido; porque, então, o raciocínio ordena-lhe que fuja, e é
exatamente por isso que não pode deixar de ficar. Se não está ali um braço
amigo para o segurar, ou se não é capaz de um esforço repentino para se arrojar
longe do abismo, atira-se... Está perdido.
Examinando
estas e outras ações análogas, que a perpetramos simplesmente porque não as
deveríamos perpetrar, não podemos deixar de reconhecer que resultam do espírito
da "perversidade". Mais por aqui, mais por ali, todos os princípios
são ininteligíveis; e se não estivesse provado que o da perversidade também serve
muitas vezes para o cumprimento do bem, poderíamos considerá-lo como uma
instigação direta do Arquidemônio.
Se
me demorei tanto sobre esse assunto, foi para responder de algum modo à
pergunta do leitor; para explicar a razão por que estou aqui; para poder
apresentar um simulacro de causa que motive estes ferros que arrasto e esta
prisão onde estou encerrado. Se não houvesse explicado tão claramente, ou o
leitor não poderia entender-me ou, como a maior parte da gente, julgar-me-ia
louco. Assim, compreenderá imediatamente que sou uma das inumeráveis vítimas do
Demônio da Perversidade.
Nunca
houve no mundo ação mais profundamente refletida. Meditei sobre os meios de
cometer aquele assassínio durante semanas, meses, rejeitando mil planos, porque
em todos descobria uma possibilidade de revelação. Afinal, certa vez,
percorrendo umas memórias francesas, achei a história da doença quase mortal
que atacou Madame Pilan, em consequência de uma lamparina envenenada
acidentalmente. Aquela ideia iluminou-me subitamente a imaginação. Sabia que a
minha vítima costumava ler na cama. Sabia também que ficava num quarto pequeno
e mal ventilado. Não preciso fatigar o leitor com minudências inúteis. Não
contarei as manhas que empreguei para encaixar no castiçal do seu quarto uma
vela de minha composição. Um dia pela manhã o homem apareceu morto. O veredictum do coroner foi este: "Morto pela visitação de Deus".
Herdei-lhe
a fortuna; e durante muitos anos tudo correu no melhor possível. Nunca me
passou pelo cérebro a ideia de uma revelação. Eu mesmo havia destruído os
restos da vela fatal, sem deixar nem a sombra de um fio que pudesse vir a
organizar uma suspeita de crime. Seria impossível conceber o magnífico
sentimento de satisfação que me inundava a alma à certeza da absoluta segurança.
Contraí, por assim dizer, o hábito de me deleitar com aquele sentimento, o qual
me dava mais prazer real que todos os benefícios puramente materiais que me
tinham resultado do crime. Mas, finalmente, chegou uma época em que esse
sentimento de prazer se transformou, por gradações quase imperceptíveis, num
pensamento tenaz e inoportuno. Não havia meio de me livrar dele um instante. E
uma coisa perfeitamente ordinária termos os ouvidos, ou, antes, a memória
dominada pelo estribilho de uma canção vulgar, ou por alguns bocados
insignificantes de ópera, e não podermos afastá-los do espírito, por mais que
queiramos. Assim foi para mim aquele pensamento; de meditar incessantemente na
minha segurança, passei a não pensar em outra coisa, chegando até, muitas vezes,
a murmurar em voz baixa: "Estou salvo!"
Um
dia, surpreendi-me a pronunciar, quase em voz alta no meio da rua, essas
sílabas habituais. Num acesso de petulância, exprimia-as sob uma, forma nova:
"Estou salvo estou salvo! Sim, contanto que não faça a tolice de confessar".
Apenas
tinha acabado aquelas palavras, percorreu-me o corpo um frio glacial. Conhecia
por experiência própria esses acessos de perversidade (cuja natureza singular
expliquei aos leitores) e sabia que não era capaz de lhe resistir. Por isso a
sugestão fortuita de que eu podia fazer a tolice de confessar o crime
intimidou-me e aterrou-me como a própria sombra do assassinado.
Primeiro,
fiz um esforço para sacudir da alma aquele pesadelo. Comecei a andar
apressadamente, e ainda mais depressa; por fim, deitei a correr. Senti um
desejo fortíssimo de gritar as frases fatais com toda a força dos pulmões. Cada
pensamento sucessivo me acabrunhava de novo terror, porque demasiado o sabia
eu: na minha situação pensar era perder-me.
Acelerei
a carreira quanto pude, saltando como louco através das ruas cheias de gente.
Dentro em pouco, a população alvoroçada desatou a correr atrás de mim. Senti
então a consumação do meu destino; se tivesse podido arrancar a língua naquela
ocasião, tê-lo-ia feito. De repente, retumbou aos meus ouvidos uma voz rude, e
mão ainda mais rude agarrou-me pelo braço. Voltei-me e abri a boca para
respirar. Durante um momento sofri todas as agonias da sufocação; tornei-me
cego, surdo, tonto. Então, creio que houve algum demônio invisível que me bateu
nas costas, porque o segredo tanto tempo comprimido saiu-me pela boca.
Dizem
que não me exprimi com muita clareza; mas, em compensação, falei com energia
prodigiosa e precipitação ardente, como se temesse ser interrompido antes de
acabar as frases breves, porém grandes em importância, que me entregavam ao
carrasco e ao inferno.
Depois
de ter relatado tudo quanto era preciso para a plena convicção da justiça, caí
desmaiado.
Que
me resta a dizer? Hoje estou aqui carregado de ferros! Amanhã estarei livre,
mas onde?
Tradução
de autor desconhecido.
Fonte: “A Noite
Ilustrada”, edição de 21 de novembro de 1950.
[1] A frenologia é
uma doutrina pseudocientífica que preconiza a capacidade de determinar
características da personalidade humana e o teor de propensão ao crime pela
análise da forma da cabeça.
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