O HOMEM MORTO - Conto Clássico de Horror - Horacio Quiroga
O HOMEM MORTO
Horacio
Quiroga
(1878
– 1937)
Tradução
de Paulo Soriano
O
homem e seu facão acabam de limpar a quinta rua do bananal. Ainda lhes faltavam
duas ruas. Mas, como nestas abundavam as ervas daninhas e as malvas-silvestres,
a tarefa que tinham pela frente era coisa muito pouca. Por conseguinte, o homem
lançou um olhar satisfeito aos arbustos roçados e cruzou a cerca de arame para
estirar-se um pouco sobre o relvado. Mas, ao baixar a cerca de arame farpado e
passar o corpo, seu pé esquerdo resvalou sobre um pedaço de casca de madeira
desprendida do poste, enquanto o facão escapulia de sua mão. Quando caía, o
homem teve a sumamente longínqua impressão de não ver o facão caído no chão.
Estava
já estendido sobre o relvado, deitado sobre flanco direito, como ele queria. A
boca, que pouco antes abrira-se em toda
a sua extensão, acabava, também, de fechar-se. Estava como desejava estar: os
joelhos dobrados e a mão esquerda sobre o peito. Só que, atrás do antebraço, e
imediatamente por debaixo do cinto, surgiam de sua camisa a empunhadura e a
metade da folha do facão, mas o restante dele não se via.
O
homem tentou, em vão, mover a cabeça. Olhou de esguelha para a empunhadura do
facão, ainda úmida do suor de sua mão. Considerou, mentalmente, a extensão e a
trajetória do facão dentro de seu ventre e teve a certeza — fria, matemática e
inexorável — de que acabava de chegar a termo a sua existência. A morte. No
transcurso da vida, pensamos muitas vezes que um dia — após anos, meses,
semanas e dias preparatórios — chegaremos por nosso turno ao umbral da morte. É
a lei fatal, aceita e prevista. E tanto é assim que costumamos deixar levar-nos
prazenteiramente pela imaginação a esse momento — supremo entre todos — em que
exalamos o último suspiro. Mas, entre o instante atual e esta expiração futura,
quantos não são os sonhos, transtornos, esperanças e dramas que presumimos em
nossa vida! O que ainda nos reserva esta existência repleta de vigor, antes de
sua eliminação do cenário humano! Este é o consolo, o prazer e a razão de
nossas divagações mortuárias: a morte está tão distante, e é tão imprevisível o que devemos ainda viver!
Ainda?
Não
se passaram dois segundos: o sol está exatamente na mesma altura. As sombras
não avançaram um milímetro. Bruscamente, acabam de resolver-se para o homem
estendido as divagações a longo prazo: ele está morrendo. Morto. Pode
considerar-se morto em sua cômoda postura. Mas o homem abre os olhos e fita.
Quanto tempo passou? Que cataclismo sobreveio no mundo? Que transtorno da
natureza transpira o horrível acontecimento?
Vai
morrer. Fria, fatal e ineludivelmente, ele vai morrer.
O
homem resiste — é tão imprevisto este horror! — e pensa: É um pesadelo. É isto.
O que mudou? Nada. E olha. Não é, por acaso, o mesmo bananal? Não vem, todas as
manhãs, para limpá-lo? Quem o conhece como ele? Vê perfeitamente o bananal,
muito raleado, as largas folhas desnudas ao sol. Ali estão elas, bem próximas,
desfiadas pelo vento. Agora, porém, não se movem... É a calma do meio dia. Mas devem ser doze horas. Por entre as
bananeiras, lá adiante, o homem vê, do duro chão, o teto vermelho de sua casa.
À esquerda, entrevê a mata e a capoeira de canelas. Não consegue ver mais, mas
sabe, muito bem, que às suas costas está o caminho do porto novo; e que, na
direção de sua cabeça, lá embaixo, jaz, no fundo do vale, o Paraná, adormecido
como um lago. Tudo, tudo exatamente como sempre: o sol de fogo, o ar vibrante e
solitário, as bananeiras imóveis, a cerca de estacas muito grossas e altas, que
logo terá que trocar...
Morto!
Será possível? Não é este um dos tantos dias em que, ao amanhecer, saiu de sua
casa empunhando o facão? Não está mesmo ali, a quatro metros dele, o seu
cavalo, de cara branca, farejando parcimoniosamente o arame farpado? Mas, ouça!
Alguém assovia. Não pode ver quem é, porque está de costas para a estrada. Mas
sente o ressoar dos passos do cavalo na pontezinha... É o menino que segue
todas as manhãs para o porto novo, às onze e meia. E sempre assoviando. Do
poste descascado, que quase toca com as botas, até a cerca viva de mato, que
separa o bananal da estrada, são exatos quinze metros. Sabe perfeitamente disto
porque ele mesmo, ao levantar a cerca, mediu a distância.
O
que está, então, acontecendo? Este é, ou não, um meio-dia comum, como tantos outros em
Misiones, em sua mata, em seu pasto, em
seu bananal raleado? Sem dúvida! Relvado curto, cones de formigas, silêncio,
sol a pino... Nada, nada mudou. Somente ele está diferente. Há dois minutos,
sua pessoa, sua personalidade vivente, já nada tem a ver nem com o pasto que
ele mesmo deu forma com a enxada durante cinco meses consecutivos, nem com o
bananal, obras exclusivas de suas mãos. Nem com sua família. Ele foi arrancado
bruscamente, naturalmente, por obra de uma casca lustrosa e um facão no ventre.
Faz dois minutos: está morrendo.
O
homem, muito fatigado e estendido no relvado sobre o flanco direito, reluta
sempre a admitir um fenômeno dessa transcendência, ante o aspecto normal e
monótono de tudo o quanto vê. Sabe bem a hora: onze e meia... O menino de todos
os dias acaba de transpor a ponte.
Mas
não é possível que tenha resvalado!... O cabo de seu facão (logo deverá
trocá-lo por outro; já tem pouco fio) estava perfeitamente comprimido entre a
sua mão esquerda e o arame farpado. Após dez anos de floresta, ele sabe muito
bem como se maneja um facão de roça. Está apenas muito fatigado do trabalho
desta manhã e descansa um tempinho, como de costume. A prova?... Mas esse
relvado, que entra agora pela comissura de sua boca, ele mesmo o plantou em
trechos de terra distantes um metro uns
dos outros! Já este é o seu
bananal. E este é o seu cavalo de cara branca, resfolegando cautelosamente ante
as farpas do arame! Pode vê-lo perfeitamente. Sabe que ele não se atreve a
dobrar a esquina do alambrado, porque o homem está estendido quase ao pé do
poste. Distingue-o muito bem. E vê os fios escuros de suor que exsudam do
quadril e da garupa. E o sol cai a prumo e a calma é muito grande, pois nem uma
franja das bananeiras se move. Todos os dias — como este — ele tem visto as
mesmas coisas.
...Muito
fatigado, mas ele apenas descansa. Devem ter passado já vários minutos. E às
quinze para as doze, de lá de cima, do chalé de teto vermelho, descerão a sua mulher e seus dois filhos ao
bananal, a buscá-lo para almoçar. Ouve
sempre, antes das outras, a voz de seu menino mais novo, que quer soltar-se da
mão de sua mãe: “Papai! Papai!”
Não
é isso?... Claro, está ouvindo! É a
hora. Ouve efetivamente a voz de seu filho... Que pesadelo!... Mas este é um
dia como qualquer outro, trivial como todos, está claro! Luz excessiva, sombras
amareladas, calor silencioso de forno sobre a carne, que faz o cavalo suar,
imóvel, diante do bananal proibido.
...Muito,
muito cansado, mas nada além disto. Quantas vezes, ao meio-dia como agora,
cruzou, voltando para casa, esse pasto, que era capoeira quando ele
chegou, e antes havia sido mata virgem?
Voltava, então, também muito fatigado,
com o seu facão pendente da mão esquerda, a lentos passos. Pode ainda
afastar-se mentalmente, se o desejar. Pode, se quiser, abandonar por um
instante seu corpo e ver o dique por ele construído, a trivial paisagem de
sempre: o pedregulho vulcânico com gramas rígidas; o bananal e sua areia
vermelha, o alambrado apequenado no declive,
que se acotovela com a estrada. E, mais adiante, pode ver ainda o pasto,
obra exclusiva de suas mãos. E, ao pé de um poste descascado, deitado sobre o
flanco direito e as pernas recolhidas, exatamente como todos os dias, pode ver
a si mesmo como um pequeno vulto assoleado sobre o gramado — descansando,
porque está muito exausto.
Mas
o cavalo, rajado de suor, e
cautelosamente imóvel diante da esquina
do cercado, vê também o homem no chão, e não se atreve a contornar o bananal,
como desejaria. Ante as vozes que já estão próximas — Papai! —, volta
para o vulto — por um longo,
longo momento — as orelhas imóveis. E, por fim tranquilizado, decide passar
entre o poste e o homem estendido, que já descansara.
Este conto de Quiroga soa, a meu ver, como uma poesia sobre a vida e a morte, uma das obras mais instigantes disque autor incrível.
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