O HOMEM-PEIXE - Conto Clássico Fantástico do Séc. XVIII - Pedro Nisa Robes de Melo


O HOMEM PEIXE
Ou
O EXTRAORDINÁRIO CASO DE FRANCISCO DA VEIGA
(Cordel português do século XVIII)
Pedro Nisa Robes de Melo
(Séc. XVIII)


Os folhetos de cordel – chamados de papéis volantes – inundavam as ruas e praças de Lisboa no século XVIII. Assim como os nossos, eram escritos para o povo numa linguagem popular. Era – diz-nos Clara Pinto Correia – num português plebeu que se imprimiam os folhetos anônimos de dez páginas, vendidos na esquina da rua por dois centavos. Escrevia-se num português das massas, que era o único que todas as massas que sabiam ler o faziam com avidez.

Nesses papéis volantes pululavam fatos e feitos extraordinários, fantásticos, formidáveis. Tais folhetos, relembra-nos a historiadora Mary Del Priori, prendiam a atenção e respiração de seus leitores, mergulhando-os num mundo fantasmagórico e de fantasmagorias. Monstros, aberrações e eventos prodigiosos enchiam de terror os homens do povo numa época em que o absurdo era plausível e a superstição milenar não se deixava permear pelas luzes do racionalismo incipiente.


 A presente narrativa de cordel de Pedro Nisa Robes de Melo, publicada em Lisboa em 1740, baseia-se, em grande parte, na obra do monge beneditino Bento Jerônimo Feijó e Montenegro (1676 — 1764), erudito iluminista galego, ensaísta de grande prestígio em sua época. Nela, narra-se a extraordinária história de um jovem aprendiz de carpinteiro que, tido por afogado nas águas da desembocadura do rio Nança, nordeste da Espanha, é capturado por pescadores, cinco anos depois de seu desaparecimento, nas águas da baía de Cádis, no sul da Península Ibérica. Mas aparece ele com o corpo guarnecido de escamas, o que leva a gente do povo, nobres e eruditos a crer que o jovem, habitando o oceano todos estes tempos, metamorfoseara-se numa criatura anfíbia, agora destituída da mínima inteligência.



RELAÇÃO

DE UM EXTRAORDINÁRIO E PRODIGIOSO CASO


QUE NOS FINS DO SÉCULO PASSADO
ACONTECEU


no Reino de Castela a Francisco da Veiga do lugar de Liérganes, Província de Biscaia, assistindo na cidade de Bilbao da mesma província, tirada de algumas memórias que deste sucesso traz R. P. M. Fr. Bento Feijó[1], adicionada com outras mais notícias particulares, dada à luz por

PEDRO NISA ROBES DE MELO, E


oferecida à admiração de todos, por se não tem encontrado outra semelhante nas histórias.




No Reino de Castela, em uma província que chamam Biscaia Alva, que está situada entre a Vermelha e a Guipúscoa, junto dumas montanhas, que compreende o arcebispado de Burgos, distante duas léguas da Vila de Santander para a parte do Sudoeste, está uma aldeia chamada Liérganes, não muito povoada de gente, nem fértil de frutos, por se achar situada quase no cume de uma áspera de desabrida serra. Em pouca distância deste lugar, aplicados à cultura de umas terras, vivia Francisco da Veiga e sua mulher Maria do Casal, os quais se tinham recebido na igreja de São Pedro da mesma freguesia no ano de 1655. E deste matrimônio tiveram cinco filhos chamados, o primeiro, Tomás (que ao depois foi sacerdote), o segundo Antônio, que morreu de dous anos, o terceiro Francisco (a quem sucedeu o caso que vamos relatando), o quarto José e o quinto João, que todos foram batizados na dita Igreja de S. Pedro.

Viveram no consórcio deste matrimônio por espaço de 18 anos até que, no ano de 1673, morreu de uma dilatada doença o dito Francisco da Veiga. Vendo-se assim viúva e desamparada a dita Maria do Casal, cuidou logo em dar a seus filhos empregos, com que tivessem modo de sustentar a vida, ao menos segundo o caráter de sua qualidade, mandando a Tomás, que era o mais velho, para a Vila de Santander, para que nela se aplicasse aos estudos da Gramática e se ordenasse clérigo; a Francisco para Bilbao, cidade capital daquelas províncias, e distante para o Norte 19 léguas da sua habitação, junto do mar oceano e situada nas margens do rio Nança, que ali vai desaguar, formando-se na foz uma enseada não só mui aprazível, mas igualmente útil, por ser um dos melhores e mais frequentados porto de mar que por aquela costa se acha em todo Reino de Castela, para que ali aprendesse o ofício de carpinteiro com mais perfeição do que o poderia fazer no inculto daquelas aldeias. E ultimamente destinou os dois mais novos para lhe assistirem em sua casa, e lhe ajudarem a continuar o granjeio das suas terras, de que com seu marido se tinham sustentado e alimentado seus filhos. Disposto isto assim, cada um tratou logo de obedecer ao preceito materno, abraçando-o de boa vontade, e seguindo-o prontamente. Mas como só pertence a nossa história à fatalidade que aconteceu ao que seguiu a viagem de Bilbao, só deste iremos tratando, e vendo o que passou.

Em 15 anos de idade, e no ano de 1672, partiu o segundo filho de Maria do Casal, e novo Francisco da Veiga, para a Cidade de Bilbao, aonde chegou em breves dias, por ser, como fica dito, curta aquela jornada, e logo cuidou de se ajustar ao uso e prática daquela terra com um mestre daquele ofício, a que ia destinado. E depois de o ter concluído, continuou por alguns meses, com toda curiosidade na aplicação daquela arte, em que, com bastante habilidade, ia mostrando muitas vantagens. Porém, passado o tempo que lhe foi necessário para tomar conhecimento com alguns moços da sua idade, que vinham de pescar na foz do rio, começou a desgostar-se daquele exercício, e a acompanhálos no de lançar redes, nadar, mergulhar e outros pertencentes àquele ministério, a que mostrava uma inclinação nunca vista, dando-se por muito satisfeito de achar na grandeza daquele rio bastante campo para saciar o inato apetite que tinha de lidar com águas, o qual já mostrava no tempo em que tinha estado na companhia de seus pais, fugindo-lhes continuamente para uma ribeira circunvizinha do lugar de Liérganes, sua pátria.

Passados assim dous anos de assistência na cidade de Bilbao, e no ano de 1674, se foi nosso Francisco da Veiga com aqueles amigos a quem pelo exercício era tão inclinado, em uma noite de S. João, banhar ao mesmo rio Nança, junto aonde desemborca no oceano, aonde chamam a Barra de Portugalete, e depois de se mostrar mais perito que os outros na arte de nadar, dilatando-se muito tempo nos mergulhos, e estendendo o progresso do nado mais que todos, com grande admiração deles se foi fazendo ao largo pelo mar dentro, de sorte que, esperando-se até quase pela manhã, não voltou, e recionavelmente o reputaram submergido, afogado na imensidade e vastidão daquelas ondas; e já desenganados de que naturalmente não podia aparecer vivo o companheiro, se retiraram, trazendo-lhe consigo o vestido, que tinha deixado ao pés dos mais, e foram entregar ao seu mestre, dando-lhe conta do que tinha sucedido. Assentou este que, com efeito, tinha perdido o discípulo; e ele, infelizmente, a vida, e tratou logo de dar disto conta sua mãe e irmãos, com cuja notícia eles o tiveram por morto, e choraram, como era justo, a sua desgraça.

Tinha corrido o espaço de 5 anos quando, no ano de 1679, no golfo de Cádis, distante de Bilbao mais de 150 léguas por terra, e perto de 300 pela costa do oceano, uns homens, que ali frequentavam o exercício de pescar, viram, ao longe, nadando na superfície das águas, um indivíduo totalmente estranho à vista, em habitação que só serve para outros de muito diferente figura. Foram, ainda que receosos, apropinquando para ele a embarcação, para melhor se informarem de seu aspecto; porém, ele, que igualmente tinha perdido a comunicação, e o conhecimento dos homens, tirando-se deles com a maior pressa que pôde, se pois de mais largo, e submergindo-se ultimamente nas ondas, desapareceu, de sorte que em todo aquele dia lhes não foi possível torná-lo a avistar. Voltaram para a cidade e, no dia seguinte, continuando o seu exercício de pescaria quase no mesmo sítio, o viram segunda vez, já de mais perto, porém sempre cuidando de lhes fugir, umas vezes cortando as águas com mais ligeireza, e outras escondendo-se nelas pelo tempo que lhe era necessário. Com a repetição desta vista, não só lhes cresceu a curiosidade de examinar o que era, mas se capacitaram de que mais facilmente o conseguiriam. Vendo que ele se dilatava naquele sítio, sem embargo de o terem insultado no dia antecedente, e sem o fazerem naquele, volveram com toda a diligência à cidade, e deram conta a algumas pessoas de curiosidade e indústria do que tinham visto naqueles dous dias.

Discorreram sobre o modo de o haverem às mãos, e ultimamente dispuseram levar algumas redes da maior marca que se acharem para lhe lançar muito ao largo, de sorte que ele não pudesse penetrar o engano, arrojando-lhe juntamente algumas cousas comestíveis por terem já visto que ele se aproveitava de algumas que ia achando por cima da água. Preparados nesta forma, endireitaram logo para o sítio, e achando-o nele pontualmente, lhe começaram a lançar alguns pedaços de pão que levavam, os quais ele com presteza apanhava, cuidando sempre na retirada pelo mesmo modo que acostumava fazer. Entretanto, o foram, de outra embarcação, cercando por muita distância com as redes que levavam. E, depois de terem com elas bem seguro o êxito da presa, as foram puxando, até que ultimamente, não se podendo ele livrar desta máquina que lhe tinham fulminado, o trouxeram às mãos, conheceram ter forma de criatura racional, e o conduziram para a cidade com grande contentamento de terem descoberto uma raridade nunca vista.

Concorreu logo a maior parte da gente da cidade a ver aquele espetáculo, e examinado por algumas pessoas o material do seu indivíduo, se achou que em todas as suas partes correspondia a qualquer homem perfeito, e somente pelos lombos e peitos se viam algumas escamas, como as de qualquer peixe, achando-se-lhe, também, pelas partes em que não as tinha, a pele mais áspera e quase como a de uma lixa, o que tudo ao depois perdeu, como abaixo veremos. Feito assim este exame, e assentado em que sem dúvida era criatura racional, trataram de perguntar algumas cousas, porque já tinham feito reparo no silêncio que tinham observado em todo aquele tempo; porém, deixando tudo sem resposta na língua vulgar daquela terra, lhe falaram na maior parte das da Europa, e ainda de algumas da África, mas foi diligência baldada, porque em todas mostrou não entender palavra, não sabendo em alguma dar resposta, parecendo não só mudo por falta de articulação, mas mais que mudo por não dar alento ao estrépito algum de voz; o que causou tão grande admiração, que se capacitaram que só de alguma obsessão do demônio podia proceder acontecimento tão raro. E tentando nisto, o levaram para um convento de S. Francisco, naquela cidade, para nele o exorcismarem alguns religiosos da virtude que nele havia. Fez-se logo assim; porém, continuando-se por algum tempo esta diligência, viram que nenhum sinal dava de possessão diabólica, e da mesma sorte continuava o silêncio. Passados, porém, alguns tempos, se lhe ouviu proferir distintamente a palavra Liérganes, nome de sua pátria, como fica dito. Foi desconhecido este nome dos que não tinham notícia da terra; porém, ali achando-se um moço trabalhando em umas obras no mesmo convento, disse que Liérganes era nome de uma terra situada aonde tínhamos dito, e que era pátria sua, donde ele tinha vindo para aquela cidade havia bastante anos, sem que lá tivesse notícia de caso algum que dissesse relação àquele. Informado de tudo isto, um cavalheiro de Cádis, sabendo que o secretário da Suprema Inquisição de Castela, chamado Dom Domingos de Cantolla[2], com quem tinha boa amizade, era da mesma terra de Liérganes, lhe escreveu, e deu conta deste caso, para que mandasse por seus parentes averiguar se tinha sucedido algum que se pudesse combinar com ele: executou-o ele prontamente assim e lhe respondeu: que o que tinha sucedido era perder-se no porto de Bilbao um moço daquela terra chamado Francisco da Veiga, filho de outro, e de sua mulher Maria do Casal, porém, que isto tinha passado havia bastantes anos, e que de todos era já reputado por morto e afogado naquele rio.

Remetida por Dom Domingos de Cantolla ao seu amigo e correspondente de Cádis aquela resposta, que lhe tinha vindo de Liérganes, se começou a divulgar a notícia pela cidade, e ele pessoalmente foi dar ao convento de São Francisco, em que se achava aquele enigmático indivíduo. Tinha chegado de poucos dias Fr. João Rosende, que voltava de Jerusalém com a incumbência de tirar esmolas por toda a Espanha para aqueles santos lugares, e tendo disposto o seu giro de sorte, que vinha a rematar no Arcebispado de Burgos, e informado de que nele se compreendia o lugar de Liérganes, determinou levar consigo o nosso Francisco da Veiga para o restituir à sua casa e, entretanto, se ajudar dele para o que lhe fosse necessário na sua peregrinação que, suposto pela inabilidade de voz, fosse pouco apto para aquele ministério de pedir, em tudo mais era apto para obedecer. Tratou logo o dito religioso de se familiarizar com ele, insinuando-lhe seu desígnio, ao qual ele deu alguns sinais de consentimento e gosto. E, com efeito, se partiram com mais outro religioso leigo no mesmo ano de 1679 para o seu petitório. Correram vários lugares daquele Reino, nos quais se foi fazendo notório este caso, acompanhando o dito Francisco da Veiga aquele religioso, e servindo-o em tudo o que lhe mandava, porém em todo o decurso daquela jornada se não lhe ouviu palavra alguma mais que mui poucas vezes aquela de Liéganes, que já tinha pronunciado em Cádis. Foram-se avizinhando à província de Biscaia, até que no ano de 1680, chegando a uma serra, que chamam Ladehesa, distante somente do lugar de Liéganes um quarto de légua, disse o religioso ao dito Francisco da Veiga que fosse adiante, e guisasse o caminho, o que ele pontualmente fez, partindo direito para a casa de sua mãe Maria do Casal.

Chegando que foi Francisco da Veiga à casa de sua mãe, o conheceu esta logo, fazendo grandes demonstrações de alegria, abraçando-o repetidas vezes e dizendo: Este é o meu filho, que me desapareceu em Bilbao, e já reputava morto.

Dous irmãos, que ainda eram vivos, o clérigo e o outro secular, da mesma forma o receberam com alvoroço e gosto. Porém ele a tudo isto mostrou menos alteração e alegria do que fosse bruto, porque mais que bruto parecia inanimado. Recebido, sem embargo disto, por sua mãe com aquele amor que todas têm e facilmente não perdem dos filhos, se conservou ali por espaço de 9 anos com pouca diferença, sempre naquele estado de insensato, e totalmente alienado do entendimento, não se lhe conhecendo em algum instante sinal de paixão ou afeto humano, e só passados alguns anos se lhe ouviram pronunciar algumas vezes as palavras pão, vinho, tabaco, porém sempre disparatadas, e com tão pouca conexão ao propósito que, perguntando-lhe se queria alguma cousa daquelas, nada respondia, nem mostrava entender o que se lhe perguntavam; porém, se com efeito lho davam, o comia, bebia, e tomava com excesso e loucura, e outras vezes o rejeitava, de sorte que voluntariamente andava muitos dias sem usar de cousa alguma daquelas, nem ainda de outro qualquer alimento que de dessem. Andava continuamente descalço, e muitas vezes de todo despido, sem que isto lhe desse algum cuidado; e, se o mandavam a vestir, o fazia, não se lhe conhecendo para isto, ou para o contrário, deliberação alguma de vontade. Ia aonde o mandavam, especialmente àqueles que conhecia antes de ir a Bilbao; e em uma ocasião, mandando-o à vila de Santander um clérigo daquele lugar a levar uma carta de um seu amigo, foi prontamente, como costumava, e, tendo de passar um rio, que tem perto de uma légua de largura, e não achando barco pronto, o passou a nado, e entregando a carta molhada, lhe perguntou o sujeito, para quem ia, a causa de a levar daquela forma, ao que não soube responder, e só aceitar a resposta, e volver com ela a Liéganes. Nunca pedia de comer por modo algum, e só aceitava quando lho davam e estava com vontade dele. Para obedecer, mostrava que tinha aptidão de homem; porém, para discorrer, nem ainda parece que tinha instinto de bruto. No fim de dous anos depois que ali chegou, lhe caíram as escamas, que a natureza lhe adotara, como reparo necessário à habitação que o seu destino lhe tinha oferecido nas águas; pôs-lhe a pele naturalmente macia, como a de qualquer homem, logrando assim o corpo quase a inteira restituição dos seus acidentes, e ficando a alma flutuando para sempre naquela estranha confusão das suas potências, até que no fim de 9 anos desapareceu, no ano de 1689, sem que houvesse mais alguma notícia dele, e só bastantes fundamentos para se conjecturar que se passou segunda vez à província de Guipúscoa, a repetir a habitação do mar, a que sempre se mostrava inclinado, tanto por ficar ali mais perto, como por ser caminho que já sabia. Alguns disseram que daí a alguns tempos fora visto no mar das Astúrias, porém não há bastante fundamento para assim o afirmarmos.

 Era de estatura ordinária, e bem proporcionada, cor branca, cabelo vermelho e pequeno. Trazia as unhas gastadas e quase que não lhe apareciam, nem lhe chegavam a pôr maturais em todo aquele tempo. Alguns quiseram que esta fatalidade fosse feita de uma maldição que justamente lhe tinha lançado sua mãe; porém, ao depois, se averiguou ser mentira. E só acaso sucedido ainda, que parece incrível ser naturalmente sustentada, por se não encontrar até aqui outra semelhante, assim nas histórias antigas como nas modernas.
  
ADVERTÊNCIA E REFLEXÃO

 Não se deve tomar esta história por apócrifa, por ter sido atestada ao R. P. M. Fr. Bento Jerônimo Feijó, monge beneditino no Reino de Castela, e hoje, por sua raríssima erudição, bem conhecido em toda a Europa, por várias cartas, que teve do Marquês de Valbuena e D. Gaspar de Melchior[3], e outras pessoas de igual crédito, que com toda a exação a averiguaram, informando-se dos mesmos irmãos de Francisco da Veiga e outros, conhecendo-o, e vendo-o no estado em que temos dito; e o mesmo P. afirma, e transcreve por certa no 6º tom. de seu Teatr. Critic. circunstância que, na verdade, lhe pôde tirar todo o escrúpulo de dúvida. E nós agora informados com mais miudeza de algumas circunstâncias que ali se não individuam, a escrevemos no idioma pátrio, para que a ninguém se oculte prodígio tão raro, e a todos (ainda àqueles que não entendem bem a língua castelhana, ou não tiverem a Obra do Teatro Crítico) se manifeste um caso, que pode servir de incentivo a uma profunda meditação da inescrutabilidade da Providência Divina; pois vemos que ainda em um Elemento tão estranho, e contrário à sustentação da vida humana, quis Deus dar a este homem um acomodado e gostoso abrigo, talvez que segurando-lhe por aquele caminho o mais direito da sua salvação. Pois é certo que por aquela total demência ficou reduzido a uma inocência pura, incapaz de cometer culpa digna de pena, sendo mui fatível (e também provável, pela boa inclinação que nos seus poucos anos se lhe tinha observado), que aquela alienação o achasse livre de pecado grave. E o que daqui se segue é que não só passou a vida suave pelos impulsos da sua inclinação, mas ditosamente passaria a gozar da Glória por altos favores do Céu, que a todos ajuda e socorre, e o faria daquela criatura nesta forma para nos mostrar que, se a grandeza e a incompreensibilidade de seu poder a conservará naquele inimigo Elemento da água, muito melhor o pode fazer a todos no da terra, que nos deu por Mãe e de que nos criou. Pode isto servir de consolação aos que se consideram desfavorecidos da fortuna, conhecendo, que ainda que na que parece mais adversa, Deus não falta em socorrer a todos, e em toda parte. Omito muitos discursos físicos e morais, que sobre este caso se fizeram, por ser este mais católico e verdadeiro.


LISBOA OCIDENTAL



Na oficina de PEDRO FERREIRA, Impressor da Augustíssima Rainha N.S. Ano M DCC LX. Com todas as licenças necessárias.







[1] O monge beneditino Bento Jerônimo Feijó e Montenegro (1676 — 1764), erudito iluminista galego, ensaísta de grande prestígio em sua época, estudou com profundidade o caso, coletando testemunhos de pessoas idôneas e confiáveis, e, no Tomo Oitavo, §§ I, do “Teatro Crítico Universal”, de 1726, reproduziu, ipsis litteris, a descrição detalhada que fez dos acontecimentos o Marquês de Valbuena. A narrativa de cordel de Pedro Nisa Robes de Melo, publicada em Lisboa em 1740, baseia-se, em grande parte, na obra do respeitado filósofo e intelectual galego. Francisco da Veiga (em espanhol, Francisco de la Vega), o homem-peixe de Líérganes, não é, assim, um ente lendário, ou um produto duma fértil imaginação, mas, possivelmente, uma vítima de cretinismo, conforme especulou Gregorio Marañón no livro “Las ideas biológicas del Padre Feijoo”.
[2] Domingo de la Cantolla Miera (Liérganes, 1610 - sec.  XVII), clérigo espanhol, secretário-geral da Inquisição na Espanha.
[3] Gaspar Melchor de la Riba Agüero, gentil homem, Cavaleiro da Ordem de Santiago do séc. XVIII.

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