A HISTÓRIA FANTASMAGÓRICA DA TUMBA DA FLAUTA - Conto Clássico de Terror - Richard Gordon Smith
A HISTÓRIA
FANTASMAGÓRICA DA TUMBA DA FLAUTA[1]
Richard Gordon Smith
(1858 – 1918)
Tradução de Luiz Poleto
Tempos
atrás, em um pequeno e distante vilarejo chamado Kumedamura, localizado na
província de Idsumo e a cerca de doze quilômetros a sudeste da cidade de Sakai,
foi construída uma tumba — Fuezuka, ou a Tumba da Flauta — e até os dias de
hoje muitas pessoas se dirigem ao local para rezar e adorar, trazendo consigo
flores e incenso que são oferecidos ao espírito do homem que ali se encontra
enterrado. As pessoas se agrupam no local durante todo o ano e não parece
existir uma época em particular em que as pessoas rezem mais ou menos.
A
tumba fica situada em um grande lago chamado Kumeda, de uns oito quilômetros de
circunferência, e todos os lugares ao redor deste lago emprestam seu nome do
Lago de Kumeda, assim como o vilarejo de Kumeda.
De
quem seria a tumba que invoca tanta compaixão? A tumba em si é apenas um pilar
de perda, sem nenhum traço artístico que a destaque. A paisagem ao redor é
igualmente desinteressante: plana e feia até alcançar as montanhas de Kiushu.
Vou tentar contar, da melhor forma possível, a história do homem que habita
esta tumba.
Por
volta de setenta a oitenta anos atrás viveu no vilarejo de Kumedamura um anma[2]
cego chamado Yoichi. Yoichi era extremamente popular na vizinhança, sendo muito
honesto e gentil, além de ser um mestre na arte da massagem — tratamento
necessário a praticamente todos os japoneses. Eram raros os vilarejos que não
tivessem um anma.
Yoichi
era cego e, como era comum entre as pessoas de mesma míngua, carregava um
cajado de ferro ou madeira, além de uma flauta, também conhecida como
"fuezuka" — o cajado era usado para guiá-lo, e a flauta para que as
pessoas soubessem que estava disponível para o trabalho. Tão competente era
Yoichi que ele quase nunca se via sem trabalho e, consequentemente, era bem remunerado,
possuindo uma pequena casa e um servente, que lhe fazia comida.
Próximo
à casa de Yoichi havia uma pequena casa de chá, localizada às margens do lago.
Certa noite (cinco de abril; época das flores de cerejeira), ao entardecer,
Yoichi retornava para casa após um dia de trabalho. A estrada seguia ao redor
do lago. Ali, ele ouviu o choro triste de uma menina. Ele parou e escutou por
um instante, concluindo, baseado no que pode perceber, que a menina estava
prestes a se afogar. Quando ela estava quase entrando no lago, Yoichi a agarrou
pelo vestido e a arrastou para a fora da água.
"Quem
é você, e por que deseja morrer?" ele perguntou
"Me
chamo Asayo, e trabalho na casa de chá," ela respondeu. "Você me
conhece muito bem. E deve saber também que é praticamente impossível me
sustentar com a miséria que meu mestre me paga. Não comi nada nos últimos dois
dias, e cansei da minha vida."
"Venha!"
disse o cego. "Enxugue essas lágrimas. Vou levar você para minha casa e
fazer o possível para ajudá-la. Você tem apenas vinte e cinco anos, e ouvi que
ainda é uma menina muito bonita. Talvez você se case! De qualquer forma, vou
cuidar de você, e não quero que pense mais pensar em suicídio. Vamos, vou lhe
dar roupas secas e cuidar para que se alimente."
E
então Yoichi levou Asayo para casa.
Alguns
meses depois, eles se encontravam casados. Eram felizes? Bom, deveriam, já que
Yoichi tratava sua esposa com extrema bondade; mas ela era diferente de seu
marido. Era egoísta, mal-humorada e infiel. Aos olhos dos japoneses, infidelidade
é o pior dos pecados. Quão pior é, então, aos olhos do espírito do país, quando
se tira vantagem de um marido que é cego?
Com
cerca de três meses de casados, durante o calor de agosto, uma companhia de
teatro veio para o vilarejo. Entre eles estava Sawamura Tamataro, um ator
relativamente famoso em Asakusa.
Asayo,
que muito apreciava teatro, passou a gastar muito tempo e dinheiro indo às
apresentações. Em menos de dois dias ela havia se apaixonado perdidamente por
Tamataro. Passou a lhe enviar o dinheiro arduamente ganho por seu marido.
Escrevia-lhe cartas de amor, implorando que a permitisse visitá-lo, e, muitas
vezes, desonrava o seu casamento.
A
situação foi de mal a pior. Os encontros secretos de Asayo e o ator
escandalizaram o vilarejo. E, como acontece muitas vezes, o marido desconhecia
o ocorrido. Por diversas vezes, ao retornar para casa, o ator estava lá, mas
mantinha-se em silêncio, até que Asayo, discretamente, o levava para fora,
algumas vezes juntando-se a ele.
Todos
sentiam pena de Yoichi; mas ninguém tinha coragem de contar sobre a
infidelidade de sua esposa.
Um
dia, Yoichi estava atendendo a um cliente, que contou sobre o comportamento de
Asayo. Yoichi ficou incrédulo.
"Mas
sim, é verdade," disse o filho do cliente. "Neste exato momento
Tamataro está com sua esposa. Assim que você entrar em casa, ele vai fugir. Ele
faz isso todos os dias, e todos nós vemos. Temos pena de você e sua cegueira e
ficaríamos felizes em ajudá-lo a castigá-la."
Yoichi
ficou profundamente entristecido, pois sabia que seus amigos estavam sendo
sinceros; porém, embora cego, não aceitaria ajuda para punir sua esposa. Ele
caminhou para casa o mais rápido que sua cegueira permitia, fazendo o mínimo de
barulho possível com seu cajado.
Quando
chegou em casa, Yoichi encontrou a porta da frente trancada por dentro. Deu a
volta e encontrou a porta dos fundos também trancada. Não havia forma de entrar
a não ser quebrando a porta e fazendo barulho. Yoichi estava muito inquieto,
pois sabia que sua esposa infiel e seu amante estavam lá dentro, e ele queria
matar os dois. Tomado por uma força interior, ele se esticou centímetro por
centímetro até conseguir alcançar o topo do telhado. Sua intenção era entrar na
casa através do tem-mado[3].
Infelizmente, a corda de palha usada estava podre e rompeu, jogando-o para
baixo e fazendo-o cair no kinuta[4].
Yoichi fraturou o crânio, morrendo instantaneamente.
Asayo
e o ator, ouvindo o barulho, saíram para investigar o que havia ocorrido, e
ficaram satisfeitos ao encontrarem o pobre do Yoichi morto. O acidente não foi
reportado até o dia seguinte, quando disseram que Yoichi tropeçou e caiu da
escada, falecendo por conta do acidente.
O
enterro foi feito às pressas, de forma indigna e sem o devido respeito.
Como
Yoichi não tinha filhos, sua propriedade, seguindo as leis japonesas, foi
transferida para sua esposa infiel, que se casou com o ator apenas alguns meses
após o acidente. Eles aparentemente eram felizes, embora ninguém no vilarejo de
Kumeda lhes tivesse qualquer simpatia; no fundo, todos estavam indignados com
seu comportamento com relação à morte do pobre anma.
Meses
se passaram sem nenhum acontecimento interessante no vilarejo. Ninguém
incomodava Asayo e seu marido; o casal não incomodava ninguém, preocupando-se
apenas consigo mesmo. Os que mais comentavam a tragédia se cansaram e, como
tudo o que é instantâneo, a história do anma cego, Asayo e Tamataro caíram no
esquecimento.
Porém,
não há descanso enquanto os espíritos das vítimas não são vingados.
Em
uma das províncias a oeste, em uma pequena vila chamada Minato, vivia um dos
amigos de Yoichi, de quem era muito próximo. Seu nome era Okuda Ichibei. Ele e
Yoichi estudaram juntos. Juntos prometeram que, quando Ichibei visitasse o
Nordeste, sempre se lembrariam um do outro, e se ajudariam em épocas de
necessidade. Quando Yoichi ficou cego, Ichibei foi a Kumeda e ajudou Yoichi a
iniciar o seu trabalho como anma, dando a ele uma casa para viver — casa esta
que foi legada a Ichibei. Mais uma vez, quis o destino que Ichibei ajudasse a
seu amigo. Naquela época as notícias viajavam muito lentamente, e por isso
Ichibei não soube de imediato da morte ou mesmo do casamento de seu amigo.
Imagine, então, a sua surpresa, quando, ao acordar certa noite, encontrou, de pé,
próximo ao seu travesseiro, a silhueta de um homem que ele rapidamente
reconheceu como Yoichi!
"Yoichi!
Que bom vê-lo," ele disse; "mas você chegou muito tarde! Por que não
me avisou que vinha? Eu estaria acordado para recebê-lo e teria feito algo para
comer. Mas não importa. Vou chamar o servente e providenciaremos tudo isso.
Enquanto isso, sente-se, e conte-me as novidades, e como conseguiu viajar toda
esta distância. Atravessar as montanhas e o terreno selvagem de Kumeda já é
difícil o suficiente; mas, para alguém privado da visão, é algo
fenomenal!"
"Eu
não estou mais entre os vivos," respondeu o fantasma de Yoichi. "Na
verdade, eu sou o espírito do seu amigo Yoichi, e estou destinado a vagar neste
plano até que eu seja vingado pela grande injustiça cometida contra mim. Vim
para implorar a sua ajuda, para que meu espírito possa descansar. Se estiver
disposto a ouvir, vou lhe contar a minha história, para que decida o melhor a
se fazer."
Ichibei
estava espantado (e, também, um pouco nervoso) por saber que estava na presença
de um fantasma; mas ele era corajoso e Yoichi era seu amigo. Ele lamentou
profundamente a morte de Yoichi, e percebeu que a inquietação de seu espírito
mostrava que havia sido injustiçado. Ichibei decidiu não somente ouvir a história
como também vingar a morte the Yoichi.
O
fantasma, então, contou tudo o que havia ocorrido desde que se instalou na casa
em Kumedamura. Contou de seu sucesso como massagista; de como salvou a vida de
Asayo, de como a levou para a casa e posteriormente se casaram; da chegada da
companhia de teatro que abrigava o homem que arruinou sua vida; de sua morte e
de seu enterro desonrado; e do casamento de Asayo e o ator. "Minha morte
deve ser vingada. Você vai me ajudar a descansar em paz?" disse,
concluindo a história.
Ichibei
fez a promessa. O espírito de Yoichi desapareceu, e Ichibei dormiu novamente.
Na
manhã seguinte, Ichibei achou que havia sonhado; mas, então, se lembrou da
visão e da narrativa de forma tão clara que teve a certeza que tudo fora real.
Virando-se abruptamente para se levantar, percebeu o brilho emitido por uma
flauta de metal que estava próxima de seu travesseiro. Era a flauta de um anma
cego. Nela estava gravado o nome de Yoichi.
Ichibei
decidiu dirigir-se a Kumedamura e investigar tudo o que pudesse sobre a morte
de Yoichi.
Naquela
época, quando não existiam ferrovias e os riquixás eram escassos, as viagens
levavam tempo. Ichibei levou dez dias para chegar a Kumedamura. Assim que
chegou, dirigiu-se imediatamente à casa de seu amigo Yoichi, onde ouviu a
história toda de novo, mas desta vez de forma diferente. Asayo disse:
"Sim,
ele salvou minha vida. Nos casamos e ajudei meu marido cego em tudo. Um dia,
porém, ele confundiu a escadaria com uma porta, tropeçou e acabou morrendo.
Agora estou casada com seu grande amigo, um ator chamado Tamataro, que aqui
está."
Ichibei
sabia que o fantasma de Yoichi não contaria mentiras, ou pediria por uma
vingança injustificada. Por isso, continuou conversando com Asayo e seu marido,
ouvindo suas mentiras e pensando qual seria o próximo passo a tomar.
O
relógio marcou dez horas, e então onze. Quando deu meia noite, após Asayo
afirmar a Ichibei pela sexta ou sétima vez que fizeram todo o possível por seu
marido, um vendaval se formou abruptamente, e, em meio aos ventos, se ouviu o
som de uma flauta de anma, exatamente como Yoichi a tocava; era tão
inconfundível que Asayo gritou em terror.
A
princípio, o som estava distante, mas se aproximou de tal forma que, no final,
parecia estar dentro da sala com eles. Naquele momento uma rajada fria de vento
adentrou pelo tem-mado, e o fantasma de Yoichi pôde ser avistado de pé, embaixo
da abertura, frio, branco, reluzente; um espírito de semblante triste.
Tamataro
e sua esposa tentaram se levantar e correr para fora de casa; mas tamanho era o
terror que os consumia que suas pernas não respondiam.
Tamataro
pegou um lampião e o arremessou na direção do fantasma; mas o fantasma não se
moveu. O objeto o atravessou e se espatifou, ateando fogo à casa, que queimou
quase que instantaneamente, com os ventos espalhando as chamas.
Ichibei
conseguiu fugir; mas nem Asayo nem seu marido podiam se mover, e os dois foram
consumidos pelas chamas na presença do fantasma de Yoichi. Seus gritos eram
altos e estridentes.
Ichibei
varreu todas as cinzas e as colocou em uma tumba. A flauta do anma cego foi
colocada em uma sepultura separada, e no chão onde antes se assentava a casa
foi erguido um monumento sagrado em memória de Yoichi.
O
monumento é conhecido como FUEZUKA NO KWAIDAN.
[1] Conforme
relatado por Fukuga (N. do A.)
[2]Refere-se tanto à prática quanto aos praticantes desta tradicional massagem japonesa.
[3] Abertura
no telhado de uma casa japonesa no lugar de uma chaminé.
[4] Pedaço
sólido de madeira usado para esticar tecidos de algodão
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