O HOMEM DA PERNA MECÂNICA - Conto Clássico Fantástico - Carl Groder
O HOMEM DA PERNA MECÂNICA
Carl
Groder
(Séc.
XIX)
Tradução
de Th. I.
Quem
já esteve em Roterdã há de infalivelmente lembrar-se de uma casa de dois
andares, sita no subúrbio, e contígua à baía do canal que corre entre esta
cidade e as de Haia, Leida e outras. Digo que há de infalivelmente lembrar-se,
porque de necessidade devem ter-lhe mostrado, em razão de haver sido habitada
em outro tempo pelo mais engenhoso artista que a Holanda tem produzido, sem
falar da sua filha, a mais linda rapariga de quantas tem nascido no recinto de
um solar holandês.
Desgraçadamente,
não é com a formosa Branca que temos agora de ocupar-nos, senão com o velho
cavalheiro seu pai. Sua profissão era de fazer instrumentos cirúrgicos; mas a
fama que havia adquirido nasceu principalmente de sua pasmosa habilidade em
fabricar pernas de pau e de cortiça.
Sua
reputação era tamanha neste ramo de ciência humana, que aqueles que a natureza
tinha ludibriado ou o acaso mesmo, negando-lhes ou arruinando-lhes uma tão
necessária parte do corpo, vinham manquejando ter com ele aos cardumes; e, por
mais desesperado que fosse o caso, eram logo, segundo a opinião do vulgo, “postos
de novo sobre suas pernas”. Muitos
coxos, que já tinham por impossível a cura da sua deformidade, e cuja única
consolação consistia em uma sorrateira
censura feita de quando em quando à Providência, por ter confiado seu saber a um
jornaleiro, achavam-se depois tão
maravilhosamente consertados, tão elegantemente especados por Mijnheer Tourningvort,
que entram a duvidar se um sustentáculo de madeira ou de cortiça não era, em última
análise, preferível ao de carne e osso, já cediço, e tão sujeito a riscos. E,
em verdade, se vós, meus caros leitores, tivésseis observado quão delicadas e
excelentes eram as produções trabalhadas por este habilidoso artista, ter-vos-íeis
visto embaraçados em decidir a questão por vós mesmos; muito principalmente
seja fostes alguma vez atormentados pela gota ou pelos calos nos vossos dedos
dos pés.
Numa
manhã, em ocasião que Mijneer Tourningvort se ocupava em dar a uma barriga de
perna e um artelho a alisadura e polimento finais, entrou um mensageiro no seu
estúdio (é preciso falar classicamente), e lhe pediu que já e já o acompanhasse
à morada de Mijnheer Van Wodenblock; era a morada do mais rico negociante de
Rotterdam. Também o artista só gastou tempo em pôr a sua melhor cabeleira; e
saltou para a rua, levando em uma mão seu chapéu de três bicos, e na outra sua
bengala de castão de prata.
O caso era este: Mijnheer
Van Wodenblock , dias antes, tinha-se dado ao louvável trabalho de expelir da
sua casa a um parente pobre; e como tentasse com um ligeiro impulso apressar a
incômoda descida dos degraus a este miserável (porque Mijnheer mui raras vezes
usava de cerimônias com seus parentes), perdeu desgraçadamente o equilíbrio, e
caindo de cabeça para baixo, rolou pelos degraus desde o topo até à base. Quando
recobrou os sentidos, verificou que tinha quebrado a perna direita, e que
estava com três dentes de menos. Seus primeiros pensamentos foram de processar
o mísero parente por crime de homicídio; mas, sendo de um natural
misericordioso, contentou-se com mandá-lo para uma prisão, por falta de certo
pagamento, deixando-o saborear ali a confortadora reflexão de que sua mulher e
filhos estavam em casa morrendo à míngua.
Um
dentista logo supriu o inválido com três dentes, que havia arrancado da boca de
um poeta indigente, a preço de dez vinténs cada um, e pelos quais leve a
prudência de pedir vinte guinéus ao rico negociante.
O médico, lembrando-se,
ao examinar a perna, que estava na maior necessidade de um tal objeto, cortou-a
com muito cuidado, e levou-a em seu carro, para dar lições a seus discípulos. Tão
acautelado era Mijnheer Van Wodenblock que se tinha acostumado a andar passo a
passo, sem nunca ter dado um salto; e vendo-se, agora, algum tanto prejudicado
no belo cômodo de seu primeiro modo de ação, mandou chamar o nosso amigo à baía
do canal, afim de lhe dar instruções concernentes ao suplemento, de que
desejava prover-se no lugar da perna perdida. O artífice subiu à câmara do
opulento burguês, e deu com ele reclinado sobre uma camilha em companhia de sua
perna esquerda, que se mostrava tão respeitável como sempre; ao passo que o
desventurado coto direito jazia envolvido em ataduras, como se fosse cousa de
pouca importância.
—Tourningvort,
já deveis estar informado da minha desgraça; ela pôs-me de cama, e a toda Roterdã
em confusão. Mas não falemos nisso. Eu preciso que me façais uma perna; mas
quero, senhor, a mais excelente perna que se possa fazer, e a melhor que
tenhais feito em dias de vossa vida.
Tourningvort
inclinou-se.
—
Eu não olho para o preço...
Tourningvort fez uma rasgada cortesia.
— ...contanto que ela deixe de ré quanto tenhais feito de semelhante espécie. Não
quero por maneira alguma esses canudos de madeira que costumais fazer. Haveis
de fabricar-me uma perna de cortiça, leve e elástica, e haveis de pôr-lhe
tantas molas quantas tem um relógio. Eu nada entendo do negócio, e por isso não
posso ser mais explicito em minhas instruções. Em um ponto, porém, estou bem
determinado: é que a perna deve ser tão boa como a que perdi. Estou certo que
isso não é coisa impossível de obter-se; e se eu a conseguir de vós, vossa
recompensa chegará a mil guinéus.
O
Prometeu batavo declarou que, para contentar a Mijnheer Van Wodenblock, ia
fazer mais do que havia feito o engenho humano, e assegurou que, dentro dos
seis dias, havia de apresentar-lhe uma perna que escarneceria de todas essas
pernas ordinárias que trazem os homens da plebe.
Esta
segurança não era certamente uma tola jactância. Os conhecimentos de
Tourningvort eram não só teóricos como também práticos. E na manhã deste mesmo
dia, tinha ele conseguido, segundo imaginava, pôr o selo a uma descoberta
favorita, em cuja execução trabalhava havia já muito tempo. Como todos os outros
fabricantes de pernas terrestres, ele tinha sempre observado que a principal
dificuldade, que embaraçava o seu progresso para a perfeição, cifrava-se em ser
aparentemente impossível o introduzir-lhes alguma peça no lugar das juntas,
capaz de ser regulada à vontade, e de executar as importantes funções, pelo seu
sistema inventadas, por meio de uma construção mecânica do joelho e do artelho.
Nosso filósofo empregou muitos anos em procurar obviar este grande
inconveniente; e posto que se tivesse avantajado a todos os outros, foi só
agora que chegou a persuadir-se estar senhor do grande segredo. Sua primeira
tentativa para levá-lo a efeito devia ser exibida na perna que tinha de fazer
para Mijnheer Van Wodenblock.
Ao
escurecer do sexto dia, contado daquele a que já aludi, com sua perna mágica
cuidadosamente enfardada, apareceu o agudo artista pela segunda vez diante do
esperançoso e impaciente Wodenblock. Notava-se nos cinzentos olhos de
Tourningvort a satisfação, que parecia dar a entender, que ele valia com
justiça os mil guinéus (já destinados para o dote do casamento de Branca),
afora a celebridade, a gloria, a imortalidade, de que afinal se julgava seguro.
Ele desatou sua preciosa trouxa, e gastou algumas horas em mostrar e explanar
ao regalado burguês os acrescentamentos que havia feito no maquinismo interno e
o efeito para que cada um devia servir. A primeira noite foi consumida em
discussões a respeito das multiplicadas rodas e das molas que atuavam outras. Às
horas de recolher estavam ambos satisfeitos da perfeição da obra. E a
instâncias de seu importuno comitente, consentiu o artista em ficar ali o resto
da noite, a fim de, na manhã seguinte bem cedo, compor-lhe o postiço membro, e
ver quão bem tinha cumprido sua promessa. Com efeito, ao outro dia, muito cedo,
estavam ultimados todos os arranjos necessários. E Mijnheer Van Wodenblock
passeava as ruas em êxtase, abençoando a faculdade inventiva de um homem tão
hábil que pôde levar ao cabo um trabalho tão primoroso como a sua perna. Em
verdade, ela parecia ter surtido maravilhoso efeito. No modo de andar do
negociante não havia esforço ou constrangimento algum: todas as juntas executavam suas funções sem o
socorro de ossos ou músculos. Ninguém, nem mesmo um conhecedor de aleijões,
teria podido suspeitar que existisse coisa tão extraordinária, como uma coleção
de molas e de pesos exatamente ajuntados, debaixo das largas e bem talhadas
calças do corpulento holandês; e se não fora um trêmulo e fraco movimento ocasionado
pelo rápido volver de cerca de vinte pequenas rodas no interior, e um constante
tinido, semelhante ao do relógio, posto que alguma coisa mais forte, ainda ele
não se teria advertido que não estava a todos os respeitos como era antes de
levantar o pé direito para dar uma bênção de despedida a seu mísero parente.
Radiando
de contente marchava ele sempre avante, até que deu consigo em frente da casa
da câmara; e ali, junto ao paiol dos degraus que vão ter à porta principal,
avistou seu antigo amigo Mijnheer Van Outern, que o esperava para saudá-lo. Ele
apressou os passos, e ambos estenderam mutuamente as mãos em sinal de
congratulação, antes que estivessem bastante perto para se estreitarem em um
amigável abraço. Finalmente, o negociante tocou o lugar onde estava Van Outern;
mas qual não foi o pasmo deste digno homem ao vê-lo passar aceleradamente,
posto que ainda com a mão estendida para ele, sem ao menos deter-se um instante
para lhe dizer: “Como passa vossa mercê?”. Todavia, não era isso uma falta do nosso
herói. Sua própria admiração foi mil vezes maior, quando chegou a convencer-se
de que não linha um poder qualquer para determinar quando, onde, ou como sua
perna deveria mover-se! Enquanto aconteceu estarem seus desejos com a maneira
por que o maquinismo parecia destinado a operar, tudo tinha ido às mil
maravilhas, ignorando ele até que ponto estava sujeito a essas forças
independentes, e que per si mesmas pareciam mover-se, por persuadir-se ter
sobre elas um poder, que agora conhecia nunca ter possuído. Sumo desejo teve
ele de parar para falar com Mijnheer Van Outern; mas sua perna continuava a
andar, e era forçado a segui-la. Muitos esforços fez para moderar seus passos,
mas todos foram baldados. Agarrava-se aos portais, às grades e às paredes; mas
a perna puxava por ele com tal violência, que de medo de deslocar os braços era
obrigado a ir sempre marchando.
Ele
começou a ter serias apreensões pelas consequências do não esperado aspecto que
o negócio tinha tomado; e sua única esperança era que as estranhas e espantosas
forças que pareciam arruinar a complicada construção de sua perna depressa se
esgotariam; disto, porém, não descobria o menor sinal. Aconteceu seguirem
direção do canal de Leyde; e quando esteve à vista da casa de Mijnheer
Tourningvort, chamou em altas vozes o artífice para vir em seu socorro. Este,
chegando à janela, mostrou um semblante de admiração.
—
Maroto, gritou-lhe Wodenblock —, desce cá neste mesmo instante! Foi por ódio
que tu me fizeste esta perna? Até agora não me tem sido possível parar um
momento! Desde que deixei minha casa, estou sempre a andar, e só em direitura
para diante; e menos que tu não me faças parar, sabe o céu quanto tenho ainda
que andar! Não estejas aí a bocejar, vem, socorre-me depressa, ou, aliás,
estarei a perder-te de vista, e tu não serás capaz do apanhar-me.
O
mecânico empalideceu. Certo de que não estava ele preparado para esta nova
dificuldade. Entretanto, sem perda de um
momento, seguiu o negociante para fazer quanto pudesse, a fim de desembaraçá-lo
de um estado tão desagradável. O negociante, ou antes a sua perna, caminhava
com velocidade, e Tourningvort, que era homem já entrado em anos, não achava
muito fácil esse trabalho de agarrá-lo. Não obstante, ele o conseguiu
finalmente, e, tomando Wodenhlock em seus braços, o levantou ao alto. Mas o
estratagema (se a isso assim se pôde chamar) o não sortiu efeito; antes, a
força impulso da perna precipitou-o para diante com a sua carga, da mesma forma
que dantes. Ele pôs o negociante outra vez em terra, e, abaixando-se, apertou
com força uma das molas que puxava para trás. No mesmo instante o infeliz Mijnheer
Van Wodenhlock partiu como uma seta, clamando com os mais lastimosos acentos:
—Estou
perdido! Estou perdido! Estou possesso! Tenho um demônio no corpo na forma de
uma perna de cortiça! Façam-me parar! Pelo amor de Deus, façam-me parar! Já
estou esfalfado, desfalecendo! Não haverá uma alma caridosa que me faça esta
perna em pedaços? Tourningvort! Tourningvort, tu me assassinaste!
O artista, perplexo e atônito, ficou em uma
situação que por certo não era de invejar-se. Conhecendo apenas o que tinha
feito, deixou-se cair sobre os joelhos, torceu as mãos, e, com as pupilas
contraídas e pasmadas, viu o mais rico negociante de Roterdã a correr ao longo
do canal com a rapidez de um búfalo raivoso em direção a Leida, gritando por socorro
tão alto como sua fraqueza lhe permitia.
A
cidade de Leida está a mais do vinte milhas de Roterdã; e, todavia, ainda o Sol
não se tinha posto, quando a Sra. Backsneider, que estava sentada à janela de
sua sala, defronte do Leão de Ouro, a tomar chá e a cortejar os conhecidos que
passavam, observou que vinha alguém pela rua adiante com furiosa pressa. Suas
faces eram pálidas como a cinza, e mal podia abrir a boca para tomar fôlego;
mas, ainda assim, sem desviar-se para a direita nem para a esquerda,
precipitava se com o mesmo grau de rapidez, a ponto de já estar quase fora de
vista antes que se tivesse tempo de exclamar:
֫—
Deus de Misericórdia! Não era aquele Mijnheer Van Wodenblock, o mais rico
negociante de Roterdã?
O
dia seguinte era domingo. Os habitantes do Harlemo iam à igreja, com seus
melhores atavios, para fazer suas orações e ouvir seu excelente órgão, quando
alguma coisa a modo de um corpo animado arremessou-se através da praça do
mercado: Ia branco, azul, frio e mudo, com os olhos parados, os beiços lívidos,
os dentes à mostra, e as mãos carcomidas, em horroroso silencio. Foi cada um
arredando-se para lhe dar passagem. E não houve uma só pessoa em Harlermo que
não ficasse acreditando que aquilo era um corpo morto, dotado de movimento. Ele
atravessou a aldeia e a cidade e prosseguiu seu caminho para os bosques e
prados da Alemanha. Tem-se passado semanas, meses e anos; mas de tempos a
tempos tem sido vista a terrível figura, e continua a sê-lo em várias partes do
norte da Europa. A roupa, entretanto, que costumava trazer aquele que em outro
tempo tinha sido Mijnheer Van Wodenblock, desfazia-se todo em pó; as mesmas
carnes tinham-lhe caído dos ossos: e ele já não era mais que um esqueleto! Um
esqueleto em tudo, menos na perna de pau, a qual, ainda em sua primitiva
rotundidade e tamanho, continua presa a uma forma de um espectro, um perpetuum mobile, arrastando os
fatigados ossos para todo sempre sobre a terra!
Dignem-se
os santos de nossa devoção livrar-nos de pernas quebradas. E que nunca mais
torne a aparecer um operário como Tourningvort para munir-nos com seus
suplementos de um poder tão misterioso e tremendo.
Fonte: “Novo Correio
das Modas” (RJ), edição nº 1, 1853.
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