O LOBISOMEM - Conto Clássico Fantástico - Maria de França
O LOBISOMEM
Maria
de França
(c.
1160 – 1210)
Existia
em Bretanha um barão do qual sempre ouvi dizer bem. Era um formoso cavalheiro,
nobre em todas as suas ações, prezado pelo rei, e respeitado por todos os seus
vizinhos. Tinha ele casado com uma jovem de família ilustre, e que parecia
dotada de excelentes qualidades; amavam-se reciprocamente; mas o que inquietava
grandemente a dama era ausentar-se o marido três dias inteiros por semana sem
que ela pudesse descobrir qual fosse o motivo de tal ausência.
Um
dia, entrando o barão em casa mais alegre do que costumava, resolveu ela
aproveitar-se desta boa disposição e lhe disse:
—Senhor,
há uma cousa que vos desejo perguntar, mas temo que vos ofendais da minha
curiosidade.
—Falai,
senhora — respondeu o barão.
--
Vós me animais — tornou ela — e por essa razão devo comunicar-vos que é tal a
minha aflição nos dias em que costumais estar ausente, tal o susto que tenho de
perder-vos, que, senão me tranquilizais, depressa morrerei. Dizei-me, por favor,
o lugar onde vos ocultais, e que objeto pode assim fazer-vos abandonar a casa.
—Valha-me
Deus, senhora! — tornou o barão. —Se eu o declarar, talvez seja isso contra
mim; pois é um segredo tal de que há de resultar infalivelmente a diminuição,
se não for a perda total do amor que me tendes.
A
baronesa, longe de considerar esta resposta como gracejo, não deixou de teimar,
e com perseverança tal que o barão não teve outro remédio senão contar-lhe a
sua aventura sem ocultar-lhe circunstância alguma.
—
Senhora, eu me transformo em lobisomem; entro no próximo bosque, e na parte
onde ele é mais espesso, ali me alimento de raízes e de rapina.
A
baronesa, não satisfeita ainda com esta explicação, quis saber se tirava o
vestuário e onde o guardava.
—Eu
o tiro, mas não vos direi onde o guardo, porque se o perder, ficarei toda a
vida lobisomem.
—Senhor
— respondeu a baronesa —, amando-vos eu de todo o meu coração, de que me parece
estais capacitado, não deveis desconfiar de mim, na certeza de que não só saberei
guardar o segredo, mas igualmente o considerarei como prova de vossa afeição e
confiança. Creio que não tenho dado passo algum que possa ofender-vos, e nessa
convicção me julgo com direito a merecer de vós a fineza que vos peço.
Enfim,
tanto suplicou, que o pobre barão lhe declarou o lugar onde escondia a sua roupa,
durante o tempo de sua indispensável metamorfose. A baronesa, quando acabou de
ouvir a confissão de seu marido, ficou sumamente assustada, e desde então
tratou de separar-se dele. Na primeira ocasião em que o barão se ausentou,
mandou chamar um homem de seu conhecimento e confiou-lhe o segredo, ordenando
lhe que fosse imediatamente tirar a roupa escondida, e a trouxesse, o que efetuou
sem contratempo.
O
barão não apareceu mais, nem isso causou admiração, visto costumar ele estar
ausente três dias por semana; porém, como a sua ausência se prolongasse
demasiadamente, mandou a baronesa procurá-lo por toda a parte, sabendo
perfeitamente a impossibilidade de o encontrar.
Passados
alguns meses, casou a baronesa com o sujeito que já linha escolhido, o que fora
furtar a roupa do barão, e assim foi vivendo até que, afinal, recebeu o castigo
que merecia.
Um
ano depois do casamento, indo o rei à caça, entrou no bosque onde estava o lobisomem.
Os cães, logo que se lhes soltou a trela, o acharam e o perseguiram todo o dia,
de maneira que pouco lhe faltou para ser despedaçado.
Vendo-se
inteiramente perdido, correu para o lugar onde estava o rei, a implorar a sua proteção,
e não lhe largou o estribo. O rei, quando viu o lobo, ficou assustadíssimo. Chamou
todo o seu séquito, e lhes disse:
— Senhores, vede esta maravilha; vede como
esta fera se humilha! Parece ser dotada de inteligência humana, e pedir
compaixão. Não lhe façais mal, e mandai meter a trela aos cães; e que venham
longe, pois hoje não caço mais.
O
rei afastou-se da comitiva, acompanhado de perto pelo lobo, que o seguiu até o
palácio, onde o rei, muito contente por estar de posse do animal o mais raro
que tinha visto, não cessava de o recomendar a todos os seus criados, e até
permitia que ele dormisse na sua câmara.
Querendo
o rei, um dia, dar um grande baile, mandou convidar todos os fidalgos da corte,
e quando eles entraram, estando o lobo deitado a um canto da primeira sala,
logo que apareceu o cortesão que tinha casado com a baronesa, lançou-se a ele
de um salto, e mordeu-o com ferocidade. Este acontecimento causou espanto aos
circunstantes; correu a notícia de casa em casa e todos foram de opinião quo o
lobo tivera motivo para acometer aquele homem, atenta a sua mansidão para com
todos.
Pouco
tempo depois deste acontecimento, saiu o rei à caça ao bosque onde havia
encontrado o lobo (que nesta ocasião também o acompanhou), e por ser tarde,
passou a noite em uma quinta que havia nas imediações.
A
baronesa teve disso noticia, vestiu-se ricamente, e foi fazer-lhe urna visita,
levando-lhe alguns presentes. Porém, assim que o lobo a avistou, lançou-se a ela
com furor, e cortou-lhe o nariz com os dentes! Que vingança mais cruel poderia
ele tomar? Quiseram matá-lo; mas um cortesão sábio opôs-se, dizendo ao rei que,
sendo aquele animal tão manso, e acontecendo mostrar-se feroz para com aquele homem e aquela mulher, que eram
casados, algum ressentimento tinha, e seria conseguintemente justo mandar
prender aquela mulher, e tratar de exigir delia algumas informações a tal
respeito.
O rei seguiu o conselho e mandou prender a mulher e o marido em prisão separada.
Logo depois, por meio de rigor, foram obrigados a confessar. Então, entregando
o vestuário furtado ao barão, e sendo este posto em uma sala onde o lobo estava
dormindo, e fechando-se-lhe as portas, passada meia hora entrou o rei, e em
lugar do lobo achou o barão, a quem era muito afeiçoado. Ouviu a narração deste
acontecimento, de que resultou ser a pérfida esposa e seu cúmplice lançados
fora do país. Tivera filhos quase todos defeituosos, e as filhas principalmente
nasceram sem nariz, sendo conhecidas pelo apelido de desnarigadas.
Versão em português de
autor desconhecido do séc. XIX.
Fonte: “Novo Correio
das Modas” (RJ), 1853.
Comentários
Postar um comentário