A HISTÓRIA DE MINHA LOUCURA - Conto de Horror - Augusto Galery
A
HISTÓRIA DE MINHA LOUCURA
Augusto Galery
(São Paulo/BR)
(Conto finalista do I Concurso Literário “Contos
Grotescos” – Prêmio Edgar Allan Pöe)
Trancafiado,
enfim. Desta cela cinzenta e acolchoada, vejo apenas noites sem lua. Ou sou eu
que estou cego? O abuso de remédios quase me impede de ficar em pé, o que é
bom, pois me mantém longe da eletricidade que atravessa os limites de minha
prisão.
É claro que não
estou dopado por acaso. O intuito também não é minha recuperação. É bem mais
perverso: querem que eu esqueça minha história, passando assim a não ser.
Não-ser. Só o ser ameaça, eles bem sabem. É por isso que é tão importante
manter minha memória.
Não que eu
consiga recuperá-la por completo. Minha infância é um borrão, no qual mais
adivinho coisas, nas imagens espelhadas, do que realmente me lembro.
Adolescência, faculdade, trabalhos, tudo é noite escura e floresta negra.
Mas eu me lembro
bem dela. É por isso que ela continua mandando os remédios para dentro de minha
cela. Pois é a ela que devo esquecer.
Manter viva
minha história, mesmo que seja a história de uma loucura.
Eu a vi por
muito tempo, da janela de meu apartamento. Provavelmente tinha a minha idade –
algo em torno dos cinquenta. Seus cabelos seriam tão grisalhos quanto os meus,
se nela ainda não fosse viva a chama do desejo da juventude. Ela os pintava de
vermelho. Sua pele, diferente da minha, mantinha um frescor de hidratante. Suas
mãos eram finas e seus dedos – tão semelhantes aos meus – eram longos e
inquietos.
No começo, eram
apenas olhares esparsos trocados há um vão de distância: a rua entre nossos
prédios. Eu a via quando ela passava por sua janela. Ela não notava, a
princípio, mas nunca sem deixar de notar em algum nível. Pois ela sabia
exatamente – mais do que eu – o dia em que primeiro a vi.
A verdade é que,
em algum lugar dentro de mim, eu esperava vê-la. Sabia que ela passaria naquele
ponto aberto entre cortinas, naquele exato instante em nada especial. Eu a vi.
Ela me viu.
Mas é fato:
tê-la visto marcou mais a ela do que a mim. Para mim, era apenas uma vizinha
desconhecida que, por coincidência, passava na janela quando eu mirava a
cidade.
E ela passou a
me acusar de persegui-la! Paranoica! Sei que os médicos concordariam comigo! O
que, de fato, não muda em nada minha prisão.
Acabo de ver um
raio cortar as grades de minha cela. Passou rápido, mas ainda ouço seu estalo.
Aos poucos, notei
que ela se escondia atrás da cortina. Começou a perder a coragem de se colocar
sob minhas vistas. Como se estivesse nua. Como seu eu pudesse penetrá-la com
meu olhar.
Foi isso que me
incomodou.
O medo dela.
Atiçou minha raiva. Foi por isso que a persegui, aquela vez, na rua. Ela entrou
em pânico. Gritou ,
chamou um guarda, mas eu corri e me escondi no aberto da multidão, que se
fechou sobre mim como um oceano.
Sei o que você
está pensando, agora: que eu realmente persegui a velha e que o louco sou eu. Não
é verdade. Depois que ela acionou a polícia, resolvi manter distância. Mas não
podia mais passar em frente à minha janela. Ela estava sempre lá, me
observando. Comprou até binóculos! Seu medo era tanto que eu comecei a temer.
Demorei a
entender porque eu a temia. Havia algo no medo dela que ultrapassava o medo.
Que, aos poucos, se tornava desejo.
No princípio,
achei que ela me desejava. Sexualmente, entende? Mas não era isso... Ela
desejava... como dizer isso sem parecer louco?... Ela desejava a mim. Ser quem
eu era. Tornar-se eu... Tornar-se... Tornar-se?... São as drogas. Já não lembro
meu nome. Não importa, o que importa é ser. E ser é ter história. Então, por
favor, me ouça.
Passavam os dias
e o olhar dela era tão incidente que eu sentia náuseas ao passar em frente à
janela. Resolvi que era necessário pôr um fim naquilo. Ela não atendia minhas
ligações. Podia vê-la, pela janela, olhando para o telefone que tocava (eu
gesticulava para ela: pegue o telefone, pegue a porcaria do telefone!). Ao
mesmo tempo, o medo me impedia de ir até seu apartamento.
Não sei como ela
fez. O desejo pode mesmo ser potente. Ou ela sabia bruxaria. Não tinha cara de
bruxa. Talvez a faxineira gorda, ou a vizinha prostituta. Podiam saber macumba,
sei lá. Estou parecendo louco, mais uma vez? Você tem que acreditar: no meu
caso, é apenas stress pós-traumático. Se fosse ao contrário, você
estaria, agora, tentando me convencer de que não é louco. Coloque-se em meu
lugar.
Passei a sentir
uma espécie de formigamento embaixo da pele. Como se minha alma estivesse
lutando para se agarrar às células. Foram dias de uma sensação que me causava
enjoos e febre. Não conseguia sair para comprar remédios. Eu a ouvia rastejando
por minha carne, se agarrando em meus ossos para subir por minha espinha.
Lutava ensandecido! Joguei-me contra a parede, tentei ficar submerso na
banheira, induzi o vômito para ver se a expelia de mim.
Então a coceira
passou e tudo voltou ao normal. Foi a primeira noite de sono em paz que tive
desde que a tinha visto pela primeira vez.
E a última.
Quando acordei,
algo estava diferente. Eu via através de meus olhos, mas não era eu.
Ela havia
conseguido.
Quis correr para
o espelho, mas tive que esperá-la se arrastar, se apalpar (ela tocou meu... meu
órgão... nós dois incrédulos com o fato...). Quando, enfim, chegamos em frente
ao espelho, foi o corpo dela que vimos.
Eu não sei o que
deu errado. Estávamos no apartamento dela. Ao invés dela invadir meu corpo, fui
eu que parei no corpo dela. Continuava me sentindo homem (quando ela acariciou
seu rosto, eu senti a aspereza do rosto por barbear). Mas o espelho refletia
seu corpo.
Ela olhou para
baixo e gritou. Eu vi os seios siliconados mas já sem viço. Nossos corpos
haviam se fundido? Ou simplesmente nossas almas ocupavam os dois corpos ao
mesmo tempo?
Para nossa
sorte, ela desmaiou. Eu a vi cair, sem consciência. Estava, novamente, em
frente à minha janela.
Depois disso,
sentia uma insegurança tão grande que passei a andar armado. Claro que isso não
fazia sentido: eu atiraria em mim mesmo se ela fizesse aquilo de novo? E, de
qualquer forma, eu não tinha o menor controle sobre os meus movimentos...
Raiva e medo
juntos podem ser destrutivos. Não tão poderosos quanto o desejo, mas entenda:
eu parecia estar no limite de minha sanidade.
Passei a dormir
no telhado de meu prédio. Sempre apontando uma arma para a janela dela,
esperando que ela aparecesse. Se eu a mataria? Eu deveria dizer que não, para
que você acreditasse em minha inocência. Mas a verdade é que, tomado de ódio e
terror, eu a teria matado se tivesse a chance. A mira de minha arma andava como
um vagalume sem asas pelas paredes e chão da casa dela.
Mas ela sabia
disso. De alguma forma, nossas almas tinham se ligado fortemente. Ela evitava
passar pela janela ou mesmo sair de casa. Mas isso só fortaleceu meu desejo de
estourar-lhe as entranhas. Em minhas visões – que, tenho certeza, ela
compartilhava – eu via a bala entrando por suas costas e saindo pela barriga,
com seus intestinos acompanhando o vácuo do tiro e se espalhando pelo carpete
velho e careca. Em meus melhores devaneios, pedaços de fígado derrubavam o vaso
horroroso com flores pintadas que ficava ao lado do telefone.
De novo, me
defendo: você não faria o mesmo? As pessoas matam os ladrões que invadem suas
casas. Eu deveria ter o mesmo direito quando alguém tenta invadir meu corpo!
Mas eu não a
matei. Cheguei muito perto disso. Tão perto que ela ligou para as filhas. Horas
depois, eu percebi que podia senti-la mesmo através das paredes. Enchi-me de
coragem e da crença de que uma arma daquelas podia atravessar a parede e
matá-la do outro lado.
Ela se
desesperou. Saiu correndo do apartamento, desceu as escadas e saiu à rua.
Era a chance
perfeita!
Mas, naquele
exato momento, uma ambulância parou na calçada em frente. Depois
entendi que não foi uma coincidência: uma das filhas acionou o serviço de
emergência. Três enfermeiros desceram e, com muito custo, dominaram a velha.
Eu não podia
atirar. Tinha medo de atingir um dos rapazes. Não queria matar um inocente.
Ela foi levada
embora.
Senti um vazio
imenso, confesso.
Não pude mais
dormir. O sono era agitado. Sonhava com ela em alguma clínica, conversando com
os médicos. Enfim, no final do terceiro dia, sonhei que tomava remédios.
E acordei aqui,
nessa célula de grades cinzentas. Preso numa parte do cérebro da velha, que
tenta me esquecer.
Como seu eu
fosse apenas uma alucinação.
Como se eu não
tivesse uma história...
Comentários
Postar um comentário