UM CERTO ANIMAL- Conto Insólito - Elias Antunes



UM CERTO ANIMAL

Elias Antunes
(Taguatinga/BR)
(Conto finalista do I Concurso Literário “Contos Grotescos” – Prêmio Edgar Allan Pöe)


— Passo o dia a refletir sobre o que eu possa ser. À noite, quando se descuidam, saio de meu esconderijo para observar a Lua pelas pequenas aberturas da máscara de pano. Moro na lama, na lama e no exílio de meus dias. Conheço quase que exclusivamente a noite. Minha casa não passa de um laboratório. Chamam-me o homem-elefante-das-terras-quentes, ou o homem-dragão. Meu desfigurado corpo é alvo das lentes obstinadas da ciência e transformou-se em ponto turístico desta cidade beira-rio (beira-lama seria mais correto). Uma certa parte da semana fazem fila para observarem meu corpo. Talvez saibam que escapulo de vez em quando e não se importam, pois sabem que não irei longe. Estudam meu corpo e meus hábitos com um cuidado antigo. Não há espelhos em minha casa, para que não me ofenda com minha imagem, ou para que não me perca dentro de mim mesmo. A comida chega em vasilhames de alumínio. Às vezes choro. Tento organizar uma civilização, onde os seres humanos são animais estranhos e as casas, laboratórios. Talvez as diferenças e discriminações não existam nesse país. Escondo os projetos dos cientistas. Pedi a eles para me darem uma certa privacidade. Fizemos um pacto. Pensam que sou híbrido ou algo parecido. Vocês podem ter uma vaga noção. Tenho a pele negra e grossa como casco de tatu, os ossos estufados e desiguais. Toda minha feiúra causa espanto. Não compreendiam que debaixo das carnes malfadadas estava um homem. Traziam capim para eu comer. Tinha medo de que ao invés de palavras saíssem bramidos de minha boca. A realidade sobrepuja-me. Conhecer um monstro pelo lado de dentro... Fazem experiências comigo. Vivo nos livros. Vocês devem estar perguntando: como aprendeu a ler? Mas se esquecem de que um grupo de cientistas agora dão-me tudo de que preciso e ensinaram-me a ler. Mesmo desobedecendo a ordens, saio de casa, mas somente na madrugada, quando ninguém poderá me reconhecer, coberto pela máscara de pano. Os poucos transeuntes tomar-me-ão por bêbedo ou mendigo. Caminho sobre as tábuas do porto, provocando um barulho elefantino com meus pés grossos e redondos. Pensam que sou um fantasma de algum bicho morto. Os estivadores recolhidos nos casebres deploráveis saem para o trabalho. Volto ao laboratório. As pessoas dizem as piores coisas a meu respeito: que sou uma metamorfose não terminada; algum deus castigado; um mimetismo; um dragão fora de moda. Penso na morte e não posso entrever diferenças entre morrer na humilhação, dando o corpo aos crucificadores ou aos magarefes ou à podridão. A morte seria uma libertação. Sei que muitos apontam o dedo de longe, dizendo: aquela é a casa do homem-dragão, ganhando dinheiro fácil com minha desgraça. Vou ao porto olhar a lua e esquecer minha condição miserável. Fujo de mim mesmo. Compreendo que devem haver outros. Levanto-me na hora exata, lavo o rosto, a tromba, como, escrevo poemas, penteio os poucos cabelos sem espelho e deixo-me examinar por um punhado de cientistas. A pequena tromba que se insinua no lugar do nariz, os ossos estufados e desiguais como as paredes de um edifício em escombros, as pernas grossas e mancas, as patas de elefante não podem representar o que realmente sou. Não sou um monstro, um canibal, mas não sei mais de que isso. Sei somente que a pequena tromba que se insinua no lugar do nariz, os ossos estufados e desiguais, as pernas grossas e mancas, as patas de elefante não podem demonstrar o que sou. Quando vou ao porto vejo alguma sombra de gaivota que me traz calma. Perco-me em pensamentos. Tudo volta à velha rotina e isso me alegra. Somente quando os cientistas vêm-me ver sinto-me melhor e chego a abanar o rabo como um cão. Desculpem-me: esqueci-me de dizer sobre o rabo: na verdade é apenas mais um capricho e não deve exceder os 20 centímetros.

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