UM CONDENADO À MORTE - Narrativa Clássica de Horror - Autor anônimo do séc. XX



UM CONDENADO À MORTE
Autor anônimo do séc. XX

Prisão de La Santé, em Paris.

A sétima divisão,  afeta  a grande vigilância, acha-se no terceiro andar e contém as quatro celas malditas — 3, 5, 7 e 9. Nelas são encerrados aqueles que a Justiça condenou à pena de Talião, enquanto esperam que lhes seja concedido ou negado o pedido de graça que dirigiram ao presidente da República.

Essas celas pouco diferem das outras que constituem a sétima divisão: sólidos ferrolhos e fechaduras, como só existem nas prisões, imobilizam as portas. Pela rótula, entreaberta, avista-se um leito e uma mesa de ferro presos ao muro, e uma cadeira acorrentada ao assoalho por um dos pés. São os únicos moveis dos mortos-vivos que não podem ter nenhum objeto ao alcance das mãos. Numa concavidade da parede, brilha uma torneira do cobre concebida de tal maneira que seria impossível utilizá-la como suporte para uma corda, no caso de um preso querer enforcar-se.

Conhecido o veredito do júri, que lhe aplica a pena capital, é o condenado transportado para a Conciergerie, cuja porta de ferro abre-se, simbólica, para recebê-lo. Irá ele notar, ao penetrar na carceragem, um famoso banco onde, às vezes, senta-se o guarda fatigado, e onde ele também virá sentar-se para que o carrasco — Monsieur Paris, como é conhecido — lhe faça a última toalete, deixando-lhe a nuca bem raspada para o gélido contacto com a guilhotina! Ao lado, o livro vermelho em que o guarda assina e entrega ao preso que vai executar. Havia, antigamente, nesse lugar, uma tábua cheia de pregos batidos e sobre a qual o que ia morrer pousava os pés. Cada prego — e eram mais de cem — representa uma execução, mas essa triste peça de museu foi retirada. Notará ainda a capela com suas cruzes de cobre e onde é rezada a oração dos mortos. Após um itinerário sinistro, passando por pontes levadiças e intermináveis caminhos de ronda, chega, enfim, à cela de segurança, fria e gelada, onde vários homens atiram-se sobre ele e, despindo-o. enfiam-lhe uma camisa de força com que passará a primeira noite.

Durante as poucas semanas de vida que lhe restam, terá dois argolões de ferro nos tornozelos — presos entre si por uma curta corrente e, durante as noites, dormirá com os pulsos algemados. Às sete horas da manhã — hora regulamentar —, entra um guarda que o desperta e lhe retira as algemas, entregando-lhe os objetos indispensáveis à toalete, guardados num armário que se encontra do lado de fora, no corredor. Tomaram a precaução de algemar os condenados à morte, durante a noite, desde que eles tentaram enforcar-se com os lençóis, para fugir à guilhotina. A justiça, que os condenou à morte, zela, desde então, ciosamente, por suas vidas! Entregam-lhe depois uma tigela de sopa e cigarros, que o próprio carcereiro acende, se deseja fumar.

Às nove e meia começa o passeio diário: com os braços acorrentados, é seguido por três homens para prevenir qualquer revolta. O pátio onde passeia lembra uma sinistra fossa de ursos dominada por um promontório do qual outros guardas vigiam a marcha entravada do maldito. Um dos carcereiros segura-o por uma corrente, como se fosse uma fera que se leva para tomar ar. É um espetáculo horrível: o homem, acorrentado, caminha quase que sem refletir, limitando-se a exigir um cigarro, se terminou o seu, e deseja fumar ainda. Por vezes, uma nuvem, que chega e desaparece, despeja-lhe um desejo de fugir.

—Pensa, chefe, que seria impossível evadir-me?

— Quer, então, escalar muros de dezessete metros de altura?

E, enquanto o passeio continua,  dois detentos — dois ladrões, sob as ordens de um guarda —, lá em cima, lavam e põem ordem em sua cela. Outros guardas vêm e examinam-na toda, revistando as roupas, o colchão, os papéis existentes sobre a mesa. Quando se reintegra à jaula, às l0 horas, encontra, servido, com copioso almoço. E depois, monótono, o dia continua.

Na cela n. 5 foi encerrado Gounod, que assassinara seu tio, um porteiro, para roubar-lhe as economias. Após haver fechado o cadáver em uma mala de vime, tentou despachá-la em uma das estações de trem parisienses. Descoberto, foi julgado e condenado à morte. Na prisão, sentia um satânico prazer em dar, aos guardas, detalhes sobre seu crime:

—Foi um custo para fazer a cabeça entrar na mala. Dava-lhe pontapés nas orelhas com toda a força — mas, nada! O busto distendia-se como uma mola. Pensei em cortar-lhe as pernas e eu o teria feito se não conseguisse fechar a tampa.

Assim conversava até sua última noite. Os guardas ignoravam que a execução fora marcada para o dia seguinte. Um brigadeiro de serviço, fazendo a ronda, comunicou-lhes, em voz baixa. Era meia-noite e Gounod permanecia acordado. Com a fisionomia tensa, atrás da rótula, procurava penetrar o sentido da conversa dos três homens. De repente, questionou:

—O quê? O quê? Escute, chefe, é a meu respeito que estão falando? Então "o truque" é para breve?

Um dos guardas apiedou-se.

— Ora, não seja tolo. Então pensa que não há outro assunto que nos interesse?

E, vindo até ao guichê, com o rosto apenas separado do de Gounod pela pequena grade, disse:

—Ao contrário, julgo que o presidente assinou a graça. Seu advogado dirá amanhã. Mas eu, em seu lugar, procuraria dormir.

Foi uma explosão de alegria. O assassino desejava saber quando a graça fora assinada, quando lhe seria comunicada e outros detalhes.

Dormia ainda quando, às 4 e meia da madrugada, um grupo composto do capelão da prisão, do carrasco e seus ajudantes, dos guardas e personagens oficiais, parou em frente à cela. Uma chave rangeu na fechadura e a porta abriu-se. O barulho despertou Gounod, que gritou, compreendendo:

— Ah, canalhas! Miseráveis!

Uma luta breve e Gounod, dominado, foi transportado para a carceragem onde lhe fizeram a última toalete, e Deibler, o carrasco, atou-lhe as mãos por detrás das costas e, com as mesmas cordas de cânhamo, paralisou-lhe o movimento das pernas.

Um grande silêncio caiu sobre a prisão, interrompido, apenas, pelo ruído de uma pena correndo sobre a página do livro vermelho em que o carrasco assina a recepção do condenado.

Quase às 5 horas, a carreta, que o levara, chegava ao bulevar Arago. Guardas e curiosos, em grupo compacto, rodeiam o cadafalso. A guilhotina destaca-se, no dia que surge, de um vermelho escuro, como que revestida de sangue coagulado da base ao capitel.

A carreta parou e o capelão desceu, com uma cruz nas mãos, seguido por Gounod, que dois guardas sustinham. Deixou-se abraçar pelo padre e, virando o rosto quando este apresentou-lhe o crucifixo para que o beijasse, gritou, raivoso:

— Vamos, acabemos com isso!

Os homens da guilhotina carregaram-no. O capelão quis segui-lo mas, não notando um degrau, tropeçou e caiu.

Quando o levantaram, já a grande lâmina saíra da bainha. Uma ligeira fumaça, escapando-se do sangue quente, esvoaçava sobre a cesta que recebe as cabeças dos executados.


Tradução de autor desconhecido.
Fonte: Gazeta de Notícias (RJ), edição de 7 de junho de 1942.

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