HISTÓRIA DO SENHOR JEFRIES E NASSIN, O EGÍPCIO - Conto Clássico de Terror - Roberto Arlt
HISTÓRIA
DO SENHOR JEFRIES E NASSIN, O EGÍPCIO
Roberto
Arlt
(1900–1942)
Não
exagero se afirmo que irei narrar uma das aventuras mais extraordinárias que
podem ter acontecido a um ser humano, e esse ser humano sou eu, Juan Jefries. E
também vou contar por que motivo desenterrei um cadáver do cemitério de Tânger
e por que matei Nessin, o Egípcio, conhecido de muita gente por suas
inclinações pela magia.
Esta
história já estaria esquecida se um filme de Boris Karloff, intitulado “A
Múmia”[1],
que vi e comentei com vários amigos, não reativasse a sua lembrança.
Travamos
uma discussão em torno de Boris Karloff e da inverossimilhança do assunto do
filme, e a esse propósito eu me recordei de uma história que me ligou, em
Tânger, a um drama sombrio, e asseverei a meus amigos que o argumento de “A
Múmia” podia ser plausível. E, atribuindo-a a outrem, contei-lhes a minha
aventura, já que eu não podia, pessoalmente, orgulhar-me de ter assassinado
Nassin, o Mago, a tiro.
Tudo
aquilo ocorreu poucos meses depois que assumi o cargo do consulado de Tânger.
Era,
à época, um jovem incompetente, que ocultava a sua incompetência sob uma capa
de gravidade sumamente frágil.
A
primeira pessoa que se deu conta disto foi Nassin, o Egípcio.
Nassim,
o Mago, vivia na rua dos Ni-Ziaguin e vendia ervas medicinais e tabaco. Ou
melhor, o ponto do tabaco estava ao lado da loja, mas lhe pertencia, assim como
o comércio de ervas medicinais, com atendimento a cargo um homem negro
gigantesco, cuja estatura inquietante dissimulava, no fundo escuro do antro,
uma transparente cortina de seda vermelha.
Nassin,
o Egípcio, era um homem alto. Ao estilo de seus compatriotas, exibia ombros
largos e uma cintura de vespa. Andava com um turbante de razoável diâmetro e
seu rosto amarelo era salpicado de varíolas, ou, melhor dizendo, as varíolas
pareciam espezinhar particularmente o seu nariz, o que lhe dava um aspecto
repugnante. Quando estava excitado ou encolerizado, sua voz se tornava
sibilante e seus olhos brilhavam como os de um réptil. Para compensar estas
condições negativas, seus modos eram sedutores e sua educação requintada. Não
se alterava jamais visivelmente; ao contrário, quanto mais colérico se sentia
contra o seu interlocutor, mais fina e sibilante se tornava a sua voz e mais brilhantes
ficavam os seus olhos.
Ele
foi o homem com quem meu desgraçado destino me fez travar relações.
Certa
feita, parei em sua loja para comprar tabaco. Já ia embora, porque ninguém
atendia ao balcão. De repente, assomou por cima das caixas de tabaco a cabeça
de réptil do egípcio. Ao vê-lo aparecer assim, tão bruscamente, fiquei
atordoado, como se tivesse metido a mão num ninho de uma cobra. O egípcio
pareceu dar-se conta do efeito que a sua presença causara sobre a minha sensibilidade,
porque, quando parti, “senti” que ele continuava a mirar-me na nuca e, embora
eu experimentasse uma violenta tentação de virar a cabeça, não o fiz, já que semelhante atitude seria como confirmar
a Nassin o seu poder hipnótico sobre mim.
Todavia,
noutro dia, voltou a repetir-se o endiabrado jogo. Desejava vencer esse
complexo de timidez que nascia em mim na presença do maldito egípcio.
Violentando a minha natureza, fui comprar novamente cigarros na loja de Nassin.
Como de costume, não havia ninguém no balcão. Já ia retirar-me quando, como uma
mola disparada de uma caixinha de surpresas afora, apareceu a cabeça de
serpente do egípcio.
Entregou-me
o maço de cigarros, saudando-me com requintada inclinação, e eu me retirei sem
atrever-me a virar a cabeça em meio à multidão que passava ao meu lado, porque
sabia que, de longe, no fundo da rua, estava o egípcio com o olhar cravado em
mim.
Aquela
era uma situação estranha. Antes de terminar violentamente, deveria
complicar-se. Não me enganei. Certa manhã, parei em frente ao ponto de Nassin.
Este assomou bruscamente a cabeça por cima do balcão. Como de costume, fiquei
paralisado. Nassin notou minha perturbação, a parálise de meu coração, a
palidez de meu rosto e, aproveitando-se daquele choque nervoso, apoiou
suavemente suas mãos entre as minhas, e, tendo-me assim, como se eu fosse uma
garota e não um robusto sócio do Tânger Tenis Club, disse-me:
—
Você virá, esta noite, tomar chá comigo? Eu lhe mostrarei uma curiosidade que
lhe interessará extraordinariamente.
Entreguei-lhe
as moedas, que por justiça correspondiam ao seu tabaco, e, sem responder-lhe,
retirei-me apressadamente de seu ponto. Estava envergonhado, como se me
tivessem surpreendido a cometer uma má ação. Mas, o que eu podia fazer? Havia
caído sob a autoridade secreta do egípcio.
Não
me convinha enganar a mim mesmo. Nassin, o Mago, era o único homem sobre a
terra que podia exercer sobre mim esse domínio invisível, inibidor, torturante,
que se denomina “ação hipnótica”. Não me convinha fugir dele, porque eu ficaria
humilhado por toda vida. Além disso, meu cargo de cônsul não me permitia
abandonar Tânger a capricho. Tinha de ficar ali, desafiar o encontro com o egípcio
e, ademais, vencê-lo.
Não
me restava dúvida: Nassin queria dominar-me. Converter-me em um escravo seu.
Para Nissan, era indispensável que eu obedecesse a ele cegamente, como se eu
fosse um escravo que ele comprara numa caravana de árabes. Seu convite para que
eu fosse à noite tomar chá com ele era a última formalidade que o egípcio
cumpria para cerrar a corrente com a qual me amarraria à sua tremenda e
misteriosa vontade.
Impacientemente,
esperei durante todo o dia que chegasse a noite. Estava angustiado e irritado,
como se, em mim, duas naturezas contrapostas se combatessem. Recordo que
inspecionei cuidadosamente a minha pistola automática e lubrifiquei as suas
molas. Iria travar uma luta sem quartel: Nassin me dominaria e, então, eu
cairia aos seus pés e beijaria o chão em que ele pisava; ou, então, eu
triunfaria e faria sua cabeça voar em pedaços. E para que, efetivamente, a sua
cabeça pudesse voar em pedaços, lembro-me de que levei a um ferreiro as balas
de aço de minha pistola e fi-las converter em dundum. Queria ver voar em
pedaços a cabeça de serpente do egípcio.
Às
dez da noite, pus em marcha o meu automóvel e, depois de deixar para atrás a
praia e as muralhas da época da dominação portuguesa, detive-me em frente à
loja do egípcio. Como de costume, ele não estava ali, mas, de repente, a sua
cabeça assomou por detrás do balcão, e seus olhos brilhantes e frios ficaram a
contemplar-me, imóveis, enquanto as suas mãos, arrastando-se sobre os pacotes
de tabaco, tomavam as minhas. Ficou a me olhar, assim, por um instante, como se
eu fosse o princípio e o fim de sua vida. Depois, precipitadamente, abandonou o
balcão, abriu uma portinhola e, fazendo-me uma imensa inclinação, como se eu
fosse o Comendador dos Crentes[2], fez-me
passar ao interior da loja. Afastou um cortinado dourado e me encontrei num
passadiço escuro. Um gigantesco homem negro, mais alto que uma torre, pançudo
como uma baleia, tomou-me por uma mão e me conduziu a uma sala. O negro era o
que atendia à loja das ervas medicinais.
Entrei
na sala. O chão estava coberto de tapetes, almofadas, almofadões, colchonetes.
Em um canto fumegava um incensário. Sentei-me em uma almofada e pus-me a
esperar.
Quanto tempo permaneci ensimesmado, talvez
pelo efeito aromático das ervas que fumegavam e se consumiam no incensário, não
sei. Ao levantar as pálpebras, surpreendi o egípcio, também sentado, à minha
frente, de cócoras. Olhava-me em silêncio, sem irritação ou malevolência, mas o
seu olhar era frio, tão ultrajante por sua própria frieza, que me produziu
raivosos desejos de execrar-lhe a cara com os mais atrozes insultos. Mas não
abri os lábios e segui com os olhos um sinal de seu dedo indicador: mostrava-me
uma bola de vidro.
A
bola de vidro parecia iluminada em seu interior por uma fagulha esférica que
crescia imperceptivelmente à medida que se fazia mais e mais escura a penumbra
da sala. Houve um momento em que não vi mais o egípcio, nem as espeças colgaduras
do entorno, mas apenas a bola de vidro, um vidro que parecia de chumbo
transparente, que se transformava numa lâmina de prata, cintilante e única na
infinitude de um mundo negro. E eu não tinha forças para apartar os olhos da
bola de vidro até que, de repente, tive a consciência de que o egípcio
estava-me transmitindo um desejo claro e concreto:
“Vá ao cemitério cristão e me traga o ataúde
em que hoje foi sepultada uma jovenzinha.”
Pus-me
de pé. O negro gigantesco se inclinou à minha frente, correndo a cortina dourada que me permitia sair da
tabacaria. Subi no meu automóvel e, sem vacilar, me dirigir ao cemitério.
Era
uma ideia minha o que eu acreditava ser um desejo de Nassin? Estava eu
transtornado e atribuía ao egípcio certas monstruosas fantasias que nasciam em
mim?
Os
procedimentos da magia negra são, apesar da incredulidade dos racionalistas,
processos de sugestão e de ampliação da própria ferocidade. Os magos são homens
de uma crueldade ilimitada, e exercem a magia para ampliá-la, porque ela é o
único prazer efetivo que lhes é dado saborear sobre a terra. Claro está: nenhum
mago pode pôr em jogo nem se fazer obedecer por forças cósmicas.
“Vá
ao cemitério cristão e me traga o ataúde em que hoje foi sepultada uma
jovenzinha”. Era aquela uma ordem do mago ou uma sugestão nascida de meu
desequilíbrio?
Teria
a prova muito em breve.
Dirigi meu automóvel até o cemitério
cristão. Era segunda-feira, um dos quatro dias da semana em que não é feriado
em Tânger, porque sexta-feira é o domingo muçulmano; o sábado, o domingo judeu; e o domingo, o domingo cristão.
Chegando
em frente do cemitério, parei o automóvel na parte do muro derrubado há poucos
dias por um caminhão que ali abalroara. Removi umas tábuas e, tomando uma maça
e um corta-frio de minha caixa de ferramentas, comecei a vagar entre as tumbas.
Onde estava sepultada a jovenzinha, eu não sabia. Caminhei a esmo até que, de
súbito, senti uma voz que me murmurava ao ouvido:
“Aqui”.
Estava
diante de um mausoléu cuja cancela forcei rapidamente. Derrubei, valendo-me de
minha maça, várias lápides de mármore, deixando a descoberto o ataúde. Sem
vacilar, alcei o caixão fúnebre às espáduas (foi um milagre não ter sido visto
por ninguém, porque a Lua brilhava intensamente) e, sufocado como um estivador
pelo peso do ataúde, saí vacilante, depositei o féretro em meu automóvel e me
dirigi para a casa do egípcio.
Vou
interromper o meu relato com esta pergunta:
—
O que vocês fariam se um cliente lhes trouxesse a sua casa, à noite, um morto
dentro de um ataúde?
Estou
certo de que o expulsariam com gestos raivosos, não é mesmo? De modo algum
permitiriam vocês que o cliente se introduzisse em seu lar com o cadáver do
desconhecido.
Pois
bem. Quando eu parei em frente à casa do mago egípcio, este apareceu à porta e,
em vez de expulsar-me, recebeu-me atenciosamente.
Era
muito avançada a noite e não havia perigo de que alguém nos visse.
Apressadamente, o egípcio abriu as folhas da porta e, quase sem sentir sobre
mim o tremendo peso do ataúde, depositei o caixão do morto no chão e, com um
lenço, tranquilamente, fiquei a enxugar o suor de minha testa.
O
egípcio voltou armado de uma alavanca, introduziu a sua cunha entre a junção da
tampa com o corpo do caixão, e logo o ataúde inteiro estalou, expulsando a
tampa pelos ares.
Cometida
esta violação, o egípcio acendeu um candelabro de três braços, guarnecido de
três círios negros, colocou-os, de viés, em direção à Meca, e, depois,
revestindo-se de uma estola negra bordada com símbolos hieroglíficos, com uma
faca cortou a fina cobertura de estanho que tapava o ataúde.
Não
pude conter minha curiosidade. Assomando-me sobre suas costas, inclinei-me
sobre o féretro e descobri que, “casualmente”, eu havia roubado do cemitério um
ataúde que continha uma jovenzinha.
Não
me restou nenhuma dúvida: o egípcio se dedicava à magia. Fora ele quem me havia
ordenado, mentalmente, a roubar um cadáver. Vacilar era perder-me para sempre.
Meti a mão no bolso, tirei a pistola, coloquei o seu cano horizontalmente na
nuca de Nassin e puxei o gatilho. A cabeça do egípcio voou em pedaços. Seu
corpo, ajoelhado e descabeçado, vacilou um instante e depois tombou.
No
dia seguinte, ao passar em frente à tabacaria do egípcio, vi que estava
fechada. Um pequeno cartaz pendia do muro:
“Fechada porque Nassin, o Egípcio, está viajando”.
[1]
Filme de 1932, dirigido por Karl Freund (1890 – 1969) e estrelado por Boris
Karlof (1887 – 1969).
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