A NEVROSE DA COR - Conto Clássico de Terror - Júlia Lopes de Almeida
A
NEVROSE DA COR
(Fantasia
Egípcia)
Júlia
Lopes de Almeida
(1862
– 1934)
Desenrolando
o papiro, um velho sacerdote sentou-se ao lado da bela princesa Issira e
principiou a ler-lhe uns conselhos, escritos por um sábio antigo. Ela ouvia-o
indolente, deitada sobre as dobras moles e fundas de um manto de púrpura; os
grandes olhos negros cerrados, os braços nus cruzados sobre a nuca, os pés
trigueiros e descalços unidos à braçadeira de ouro lavrado do leito.
Pelos
vidros de cores brilhantes das janelas, entrava iriada a luz do sol, o ardente
sol do Egito, pondo reflexos fugitivos nas longas barbas prateadas do velho e
nos cabelos escuros da princesa, esparsos sobre a sua túnica de linho fino.
O
sacerdote, sentado em um tamborete baixo, continuava a ler no papiro,
convictamente; entretanto a princesa, inclinando a cabeça para traz, adormecia!
Ele
lembrava-lhe:
—
“A pureza na mulher é como o aroma na flor!”
“Ide
confessar a vossa alma ao grande Osíris, para a terdes limpa de toda a mácula e
poderdes dizer no fim da vida: ‘Eu não fiz derramar lágrimas; eu não causei
terror!’”
“Quanto
mais elevada é a posição da mulher, maior é o seu dever de bem se comportar.”
“Curvai-vos
perante a cólera dos deuses! Lavai de lágrimas as dores alheias para que sejam
perdoadas as vossas culpas!”
“Evitai
a peste e tende horror ao sangue...” Notai bem, princesa:
—
“E tende horror ao sangue!”
A princesa sonhava: ia navegando num lago vermelho, onde o
sol estendia móvel e quebradiça uma rede dourada. Recostava-se em um barco de coral
polido, de toldo matizado sobre varais crivados de rubis; levava os pés mergulhados
em uma alcatifa de papoulas e os cabelos semeados de estrelas...
Quando acordou, o sacerdote, já de pé, enrolava o papiro,
sorrindo com ironia.
—Ainda estás aqui?
— Para vos repetir: Arrependei-vos, não abuseis da vossa posição
de noiva do senhor de todo o Egito... lavai para sempre as vossas mãos do sangue...
A princesa fez um gesto de enfado, voltando para o outro lado
o rosto; e o sacerdote saiu.
Issira levantou-se e, arqueando o busto para traz, estendeu
os braços, em um espreguiçamento voluptuoso.
Uma escrava entrou, abriu de par em par a larga janela do
fundo, colocou em frente a cadeira de espaldar de marfim com desenhos e hieróglifos
na moldura, pôs no chão a almofada para os pés, e ao lado a caçoula de onde se evolava,
enervante e entontecedor, um aroma oriental.
Issira sentou-se, e, descansando o seu formoso rosto na
mão, olhou demoradamente para a paisagem. A viração brincava-lhe com a túnica,
e o fumo da caçoula envolvia-a toda.
O céu, azul-escuro, não tinha nem um leve traço de
nuvem. A cidade de Tebas parecia radiante.
Os vidros e os metais deitavam chispas de fogo, como se aqui, ali e acolá,
houvesse incêndio; e ao fundo, entre as folhagens escuras das árvores ou as paredes
do casario, serpeava, como uma larga fita de aço batida de luz, o rio Nilo.
Princesa de raça, neta de um faraó, Issira era orgulhosa;
odiava todas as castas, exceto a dos reis e a dos sacerdotes. Fora dada para esposa
ao filho de Ramazés, e, sem amá-lo, aceitava-o, para ser rainha.
Era formosa, indomável, mas vítima de uma doença singular:
a nevrose da cor. O vermelho fascinava-a.
Muito antes de ser a prometida do futuro rei, chegava a cair
em convulsões ou delírios ao ver flores de romãzeiras que não pudesse atingir, ou
as listas encarnadas dos kalasiris[1]
dos homens do povo.
A medicina egípcia consultou as suas teorias, pôs em prática
todos os seus recursos e curvou-se vencida diante da persistência do mal.
Issira, entretanto, degolava as ovelhinhas brancas,
bebia-lhes o sangue, e só plantava nos seus jardins papoulas rubras.
Na aldeia em que nascera e em que tinha vivido, Karnac, forrara
de linho vermelho os seus aposentos; era neles que ela bebia em taças de ouro o
precioso líquido.
Princesa e formosa, a fama levou-lhe o nome ao herdeiro de
um Ramazés; e logo o príncipe, curioso, seguiu para essa terra.
O seu primeiro encontro foi no templo. Ele esperava-a no centro
do enorme pátio, entre as galerias de colunas, ansiosamente. Ela vinha no seu palanquim
de seda, coberta de pérolas de púrpura, passando radiante e indolente entre as seiscentas
esfinges que flanqueavam a rua.
Dias depois, morria o pai de Issira, último descendente dos
faraós, após a sua costumada refeição de leite e mel. O príncipe Ramazés
solicitou a mão da órfã e fê-la transportar para o palácio real, em Tebas.
A beleza de Issira deslumbrou a corte; a sua altivez fê-la
respeitada e temida; a paixão do príncipe rodeou-a de prestígio e a condescendência
do rei acabou de lhe dar toda a soberania.
O seu porte majestoso, o seu olhar, ora de veludo ora de fogo,
mas sempre impenetrável e sempre dominador, impunham-na à obediência e ao
servilismo dos que a cercavam.
Esquecera a placidez de Karnac. Lamentava só as
ovelhinhas brancas que ela imolava nos seus jardins das papoulas rubras.
A loucura do encarnado aumentou.
Os seus aposentos cobriram-se de tapeçarias vermelhas. Eram
vermelhos os vidros das janelas; pelas colunas dos longos corredores enrolavam-se
hastes de flores cor de sangue.
Descia às catacumbas iluminada por fogos encarnados, cortando
a grandiosa soturnidade daqueles enormes e sombrios edifícios, como uma nuvem do
fogo que ia tingindo, deslumbradora e fugidia, os sarcófagos de porfírio ou de
granito negro.
Não lhe bastava isso; Issira queria beber e inundar-se em
sangue. Não já o sangue das ovelhinhas mansas, brancas e submissas, que iam de olhar
sereno para o sacrifício, mas o sangue quente dos escravos revoltados, conscientes
da sua desgraça; o sangue fermentado pelo azedume do ódio, sangue espumante, e embriagador!
Um dia, depois de assistir no palácio a uma cena de pantominas
e arlequinadas, Issira recolheu-se doente aos seus aposentos; tinha a boca seca,
os membros crispados, os olhos muito brilhantes e o rosto extremamente pálido.
O noivo andava por longe a visitar provinciais e a caçar hienas.
Issira, estendida sobre os coxins de seda, não conseguia adormecer. Levantava-se,
volteava no seu amplo quarto, desesperadamente, como uma pantera ferida a lutar
com a morte.
Faltava-lhe o ar; encostou-se a uma grande coluna, ornamentada
com inverossímeis figuras de animais entre folhas de palmeira e de lodão; e ali,
de pé, movendo os lábios secos, com os olhos cerrados e o corpo em febre, deliberou
mandar chamar um escravo.
A um canto do quarto, estendida no chão, sobre a alcatifa,
dormia a primeira serva de Issira.
A princesa despertou-a com a ponta do pé.
Uma hora mais tarde, um escravo, obedecendo-lhe, estendia-lhe
o braço robusto, e ela, arregaçando-lhe ainda mais a manga já curta do kalasiris, picava-lhe a artéria, abaixava
rapidamente a cabeça, e sugava com sôfrego prazer o sangue muito rubro e quente!
O escravo passou assim da dor ao desmaio e do desmaio à morte;
vendo-o extinto, Issira ordenou que o removessem dali, e adormeceu.
Desde então entrou a dizimar escravos, como dizimara ovelhas.
Subiam
queixas ao rei; mas Ramazés, já velho, cansado e fraco, parecia indiferente a tudo.
Ouvia
com tristeza os lamentos do povo, fazendo-lhe promessas que não realizava
nunca.
Não
queria desgostar a futura rainha do Egito; temia-a. Guardava a doce esperança
da imortalidade do seu nome. E essa imortalidade, Issira poderia cortá-la como
a um frágil fio de cabelo. Formosa e altiva, quando ele, Ramazés, morresse,
ela, por vingança, fascinaria a tal ponto os quarenta juízes do julgamento dos
mortos, que eles procederiam a um inquérito fantástico dos atos do finado,
apagando-lhe o nome em todos os monumentos, dizendo ter mal cumprido os seus
deveres de rei!
Não!
Ramazés não oporia a sua força à vontade da neta de um faraó! Que a maldita
casta dos escravos desaparecesse, que todo o seu sangue fosse sorvido com
avidez pela boca rosada e fresca da princesa. Que lhe importava, e que era isso
em relação à perpetuidade do seu nome na história?
As
queixas rolavam a seus pés, como ondas marulhosas e amargas: ele sofria-lhes o
embate, mas deixava-as passar!
Issira,
encostada à mão, olhava ainda pela janela aberta para a cidade de Tebas, esplendidamente
iluminada pelo sol, quando um sacerdote lhe foi dizer, em nome do rei, que
viera da província a triste notícia de ter morrido o príncipe desastrosamente.
Recebeu
a princesa com animo forte tão inesperada nova. Enrolou-se num grande véu e foi
beijar a mão do velho Ramazés.
O
rei estava só; a sua fisionomia mudara, não para a dolorosa expressão de um pai
sentido pela perda de um filho, mas para um modo de audaciosa e inflexível
autoridade. Aceitou com frieza a condolência de Issira, aconselhando-a a que se
retirasse para os seus domínios em Karnac.
A
egípcia voltou aos seus aposentos, e foi sentar-se pensativa no dorso de uma
esfinge de granito rosado, a um canto do salão.
A
tarde foi caindo lentamente; o azul do céu esmaecia; as estrelas iam a pouco e
pouco aparecendo, e o Nilo estendia-se cristalino e pálido entre a verdura
negra da folhagem. Fez-se noite. Imóvel no dorso da esfinge, Issira olhava para
o espaço enegrecido, com os olhos úmidos, as narinas dilatadas, a respiração
ofegante.
Pensava
na volta a Karnac, no seu futuro repentinamente extinto, nesse glorioso amanhã
que se cobrira de crepes e que lhe parecia agora interminável e vazio! Morto o
noivo, nada mais tinha a fazer na corte. Ramazés dissera-lhe:
—
Ide para as vossas terras; deixai-me só...
Issira
debruçou-se da janela – tudo negro! Sentiu rumor no quarto, voltou-se. Era a
serva que lhe acendera a lâmpada.
Olhou
fixamente para a luz; a cabeça ardia-lhe, e procurou repousar. Deitando-se
entre as sedas escarlates do leito, com os olhos cerrados e as mãos pendentes,
viu, em pensamento, o noivo morto, estendido no campo, com uma ferida na
fronte, de onde brotava em gotas espessas o seu belo sangue de príncipe e de
moço.
A
visão foi-se tornando cada vez mais clara, mais distinta, quase palpável.
Soerguendo-se no leito, encostada ao cotovelo, Issira via-o, positivamente, a
seus pés. O sangue já se não desfiava em gotas, uma a uma, como pequenas contas
de coral; caia às duas, às quatro, às seis, avolumando-se, até que saia em
borbotões, muito vermelho e forte; Issira sentia-lhe o calor, aspirava-lhe o
cheiro, movia os lábios secos, buscando-lhe a umidade e o sabor.
A
insônia foi cruel. Ao alvorecer, chamando a serva, mandou vir um escravo.
Mas
o escravo não foi. Ramazés atendia enfim ao seu povo, proibindo à egípcia a
morte dos seus súditos. Um sacerdote foi aconselhá-la.
–
Cuidado! A justiça do Egito é severa, e vos já não sois a futura rainha...
Issira
despediu-o.
Perseguia-a
a imagem do noivo, coberto de sangue. A proibição do rei revoltava-a,
acendendo-lhe mais a febre do encarnado.
Como
na véspera, o sol entrava gloriosamente pelo aposento através dos vidros de
cor. A princesa mordia as suas cobertas de seda, torcendo-se sobre a púrpura do
manto. De repente levantou-se, transfigurada, e mandou vir de fora braçadas de
papoulas, que espalhou sobre o leito de púrpura e ouro.
Depois,
sozinha, deitou-se de bruços, estirou um braço e picou-o bem fundo na artéria.
O sangue saltou vermelho e quente.
A
princesa olhou num êxtase para aquele fio coleante que lhe escorria pelo braço,
e abaixando a cabeça uniu os lábios ao golpe.
Quando
à noite a serva entrou no quarto, absteve-se de fazer barulho, acendeu a
lâmpada de rubins, e sentou-se na alcatifa, com os olhos espantados para aquele
sono da princesa, tão longo, tão longo...
Conto originalmente
publicado em “Gazeta de Notícias” (RJ), edição de 15 de abril de 1895.
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