A PRESENÇA - Conto Insólito - Sonia Regina Rocha Rodrigues
A PRESENÇA
Sonia Regina Rocha Rodrigues
Sou uma mulher doente. Muitas vezes sou
desagradável. Não sei evitar esta inquietação que me domina e me indispõe
contra toda gente alegre que encontro em meu caminho.
Olhar indiferentemente ou mesmo com alegria a
felicidade alheia, para quem dela se sabe privado para sempre, é um desafio.
As pessoas sociáveis, aquelas que cresceram em
famílias numerosas, que na infância nunca ficaram sozinhos, e pela mocidade
afora até os dias atuais se vêem cercadas de amigos, ou pelo menos de
conhecidos bem intencionados, nem imaginam quão dolorosa é a solidão do que não
teve irmãos para compartilhar sua meninice.
Desde bem pequena, eu sinto esta presença faltando
a meu lado. Parece complicado de entender, falando assim no negativo, mas é
isto mesmo que eu sinto desde que me conheço por gente: uma ausência de alguém
que deveria estar aqui. Eu me lembro, eu ria, conversava, virava para o lado
para compartilhar a vida com... quem? Bem, não havia ninguém por perto, mas
deveria haver. E a constatação de que eu estava sozinha doía imensamente.
Quando fui para a escola compreendi que o que eu
buscava era um irmão, e perguntei insistentemente a minha mãe pelo meu
irmãozinho. Eu havia por força de ter um irmãozinho em algum lugar. Não, dizia
mamãe, você é filha única, nunca teve irmão nenhum. Debalde. A presença deste
irmão estava bem ali, palpável, eu quase podia sentir sua respiração. Eu fora
adotada? Bem, descobri logo que depois de perguntar ‘uma bobagem dessas’ eu
devia sumir por horas da frente de minha inconsolável e indignada mãe, e,
portanto, descartei esta possibilidade.
Quando cresci mais um pouco, perguntei a meus pais
se eu havia tido um irmão que morrera, ou se eu havia sido o gêmeo sobrevivente
de alguma catástrofe uterina. Olharam-me horrorizados, negaram veementemente e
pediram que eu tirasse estas idéias estranhas de minha cabeça.
Mas a presença estava ali, constante, quase a
suplicar que viesse brincar e conversar, e eu bem que queria, mas com quem?
E nos momentos em que eu estava triste, em que
estava, por exemplo, de castigo, sentindo-me injustiçada – quantas vezes são as
crianças punidas por coisas que não fizeram nem disseram, sem poder contradizer
os adultos – bem, nesses momentos, a presença estava ali quase palpável, quase
a tocar fisicamente meus ombros, a consolar-me: sim, eu entendo, estou a seu
lado, conte comigo, sim, eu me importo com você.
Enquanto eu crescia, sempre que me via em
dificuldades, atrapalhada para atravessar uma rua ou para resolver um problema
de álgebra, podia afirmar que ouvia a voz amiga a dizer: estou aqui. E eu
olhava ao redor, inquieta, angustiada, procurando pela pessoa invisível que eu
queria tanto conhecer.
Assim passou-se a infância, e a adolescência correu
célere rumo à juventude, em meio a tantos livros e cursos, tanta coisa que
inventavam para me por longe das tentações do sexo oposto – como se as danças e
os risos pudessem engravidar ou estragar uma mulher.
Bem poderiam se poupar ao trabalho de me vigiar,
meus pais, professores e parentes. Eu, tão sozinha, tão desagradável, tão
inepta no trato social, tão apavorada com os comportamentos de namoro dos quais
não entendia nada, que preferia me trancar horas e horas em meu quarto a
escutar sinfonias, óperas, ler os clássicos, enfim, tornar-me dia a dia mais
esquisita do que me julgavam os de minha idade. No entanto, alguém me
compreendia e me apreciava — o outro, este outro que um dia eu identifiquei, logo
se entenderá o porquê, como masculino.
Uma grande confusão se formou em minha mente a
partir do momento em que os pensamentos deste outro se misturavam agora
claramente aos meus, em um dialogar incessante sobre tudo, amigável,
inteligente, um tanto irônico, a amenizar a terrível solidão moral em que eu
vivia. Sua voz estava sempre presente, e me confundia com idéias e observações
masculinas que me faziam por vezes corar: olha, a tua amiga Maria, tão bela,
seus lábios carnudos são um convite tentador a um beijo mordido. E eu sentia
meu rosto quente, confusa.
Eu me interessava muito por psicologia, lia
sofregamente tudo que me caísse nas mãos sobre comportamento humano, Freud,
Jung, Reich, Lowen. Piaget. Maria Montessori. Quase desabei quando descobri o
caos que pode se abater sobre a libido humana. A intersexualidade me deixava
perplexa. Então não somos, homens e mulheres, distintos em nossa intimidade
celular, pois simplesmente um braço curto em um par cromossômico e temos os
mesmos hormônios - testosterona e
progesterona - em nossos corpos, e apenas suas doses relativas é o que nos
torna tão dessemelhantes.
Eu não sabia mais o que eu era. A meus pensamentos amorosos de maternidade se
misturavam estranhos desejos libidinosos pela beleza feminina, sem que, no
entanto, eu de fato não sentisse nenhuma atração por outras mulheres. E a voz
se ria de mim, e eu sabia que estes pensamentos estranhos todos não eram meus, e
sim dessa presença oculta em minha vida.
E foi assim que eu soube que meu gêmeo era homem.
Pois embora minha mãe e meu pai negassem, e até se
aborrecessem com minha insistência, a única explicação que eu encontrava para
este estranho fenômeno era que eu houvesse tido um gêmeo. E lá no íntimo
crescia esta certeza, de que eu era a gêmea de um rapazinho tão solitário e
desejoso de companhia quanto eu.
Sofri muito na adolescência, imaginando uma outra
possibilidade, a esquizofrenia. Os esquizofrênicos ouvem vozes. E eu me
contorcia de terror ao pensar nesta possibilidade, mas o outro ria. Ora, que
bobagem! Eu estou aqui, e me importo, e sinto um bocado a sua falta.
E eu li. As vozes esquizofrênicas, todas, tem lá
suas intenções ocultas, mandam as pessoas matarem, mentirem, fugirem. A minha
voz não era delirante. Era uma voz tranqüila que simplesmente estava ali e me
chamava a conversar, para matar a solidão. Nunca falou mal de ninguém, nunca me
incitou ao mal.
Também não se parecia em nada com aquela voz da
consciência, nascida das experiências de infância com papai e mamãe, sendo na
realidade a internalização dos ensinamentos recebidos de nossos amorosos
cuidadores, aquela voz que grita em nosso ouvido quando estamos a atravessar a
rua distraidamente: Cuidado! Preste atenção no sinal! A minha voz também não se
parecia com a intuição que nos fala em momentos especiais – Pega um
guarda-chuva, pode chover – ou coisas banais e úteis como esta.
Não, a minha voz não se enquadrava nas descrições
dos psiquiatras, psicólogos nem teólogos. Eu não era, definitivamente, nem a
versão feminina de Mr. Hyde nem uma nova Joana d’Arc.
Eu apenas sofria, e como sofria, por ser tão
diferente e tão sozinha.
Cresci, assim, ocultando o meu segredo. Fiz
medicina. E nos livros descobri mistérios biológicos. Como o da mulher que
tinha filhos cujos DNA não eram compatíveis com o dela, até que um estudo
genético demonstrou que seus ovários e seu sangue forneciam duas leituras
cromossômicas diferentes. E o do homem cujo sêmen não era compatível com o
resto de suas células. E aquele outro, em cujos órgãos se liam duas linhagens
gênicas distintas. Mais incrível do que qualquer ficção, a espécie humana vez
por outra cria indivíduos mosaicos.
A explicação chegou aos cientistas através de
certas crianças com tumores estranhos, dentro dos quais se encontravam dentes,
olhos, por vezes um membro inteiro, fragmentos de cérebro e até cabelos.
Teratomas. Fetus in fetus. Em raríssimos casos, uma gestação gemelar se
interrompe pela morte de um dos fetos, que é absorvido pelo outro, cresce
dentro do outro, e, se em estágio bem recente, quando ainda tem apenas oito ou
dezesseis células, é assimilado e cresce par a par com as células de seu gêmeo
vivo, originando um mosaico – duas linhagens de células funcionantes com carga
genética distinta. E foi assim que eu finalmente sosseguei. Descobri a causa de
minha anômala personalidade, de minha incansável busca pela presença ausente,
tão desejada, tão querida e tão impossível como a história mitológica de Castor
e Pólux.
Castor e Pólux, os gêmeos nascidos da mesma mãe,
porém de diferentes ovos.
O nome científico de minha rara condição vem também
do grego. Eu sou uma quimera.
Sonia Regina Rocha Rodrigues é escritora e
médica especializada em Pediatria e Medicina do Trabalho. Idealizou o jornal Um Dedo de Prosa e foi
coeditora da revista literária Chapéu-de-Sol, que circulou em Santos de 1996 a 2001, juntamente
com as também escritoras Madô Martins, Neiva Pavesi e Mehelen Madureira. É
autora do livro de contos "Dias de Verão" (1998), “É suave a
noite” (2014), “Coisas de médicos, poetas, doidos e afins” (2014) e um de
programação neurolinguística "O Que Você Diz a Seu Filho? (1999). Foi uma das vencedoras do Concurso Bram Stoker de
Contos de Terror com o conto “Sentimento
de Mãe”.
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